A APLICABILIDADE DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS – UMA NECESSIDADE
RESUMO
O artigo tem como tema a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas na sociedade de risco, demonstrando a necessidade de aplicabilidade direta desses direitos, tendo em vista a sociedade complexa e eivada de riscos como a atual. Divide-se o texto em duas partes, sendo que a primeira trata da aplicabilidade dos direitos fundamentais, teorias, evolução e conceitos e, a segunda, trata da teoria da sociedade de riscos, assentada na obra de Ulrich Beck. A metodologia utilizada é a dedutiva, baseada em documentação indireta. Conclui-se pela defesa mais premente dos direitos fundamentais, bem como pela sua efetiva presença nas relações privadas, pois os riscos atuais abrangem a todos, repercutindo nas esferas individuais. Não há como dimensionar os perigos a serem enfrentados, mas é fundamental que o Direito possa corresponder de alguma forma, harmonizando a vida social.
Palavras-chave: Aplicabilidade direta. Direitos fundamentais. Sociedade de Risco.
 :1 Aspectos introdutórios
 :  :  :  :  :  :Na evolução histórica da sociedade, a criação do Estado e da Constituição passou por ‘passos’, assim definida a passagem das dimensões de direitos fundamentais sentidas no decorrer dos anos. A liberdade, a igualdade e a fraternidade espelham uma gama de direitos que foram se acumulando nos textos constitucionais ao longo dos anos e a partir do Estado Liberal.
Teorias quanto a sua aplicabilidade nas relações privadas também foram construídas, eis que de início não se pensava que os direitos fundamentais eram de aplicação entre os particulares, mas regra que deveria ser atendida unicamente entre Estado e particular. No entanto, as novas relações desencadearam a necessidade de que os indivíduos não só respeitassem os direitos dos demais, mas também que cumprissem com a legitimidade deles.
Cada vez mais a aplicabilidade dos direitos fundamentais é medida imperiosa para as relações sociais, especialmente quando se analisa a sociedade de risco que se vive, os dilemas existenciais que se apresentam e os problemas que se terá que enfrentar. A sociedade atual, com todas as suas complexidades, traz incerteza do que esperar, sendo função do Direito se preparar não só legiferando, mas salvaguardando os direitos já existentes. Ademais, a solidariedade desponta como grande motriz para que se possa superar o medo de um futuro incerto, cercado por dúvidas não só acerca das descobertas que virão, mas do que esperar dos resultados obtidos.
2 Aplicabilidade dos direitos fundamentais nos institutos de direito privado
O processo de positivação dos direitos fundamentais ocorreu de maneira gradativa nos textos constitucionais contemporâneos.[2] Dessa maneira, a partir de uma lenta e paulatina sequência de fatos sociais é que os primados mais importantes da sociedade humana passaram a constar da Constituição (GORCZEVSKI, 2009, p. 131).
Assim, a afirmação dogmática dos direitos fundamentais ocorreu de modos diferenciados, tendo em vista as mutações históricas sociais (LEAL, 1997, p. 59). Por primeiro, os direitos de liberdade foram positivados e, consequentemente, atingiram o status de proteção merecido. Na sequência, os direitos de igualdade também foram garantidos. Em momento posterior, os direitos de fraternidade foram objeto de proteção, refletindo o lema francês que esteve à frente da Revolução Francesa, no século XVIII: liberdade, igualdade e fraternidade (SARLET, 2007, p. 66).
Quanto à terminologia desse processo, a doutrina se divide, sendo que alguns doutrinadores entendem se tratar de “gerações”, outros de “dimensões” dos direitos fundamentais. O trabalho não tem como escopo adentrar na referida questão. Os que defendem a ideia de “gerações”, o fazem por se tratar da inserção lenta e gradativa nos textos constitucionais.
De outra banda, existem autores que aduzem não ser essa a nomenclatura mais correta, pois o termo “gerações” acabaria expressando a ideia de que um grupo de direitos fundamentais excluiria o grupo anterior. Por tal razão, os críticos ao referido termo acreditam que o mais correto seria utilizar a terminologia “dimensões” de direitos fundamentais. Contudo, esta também não se encontra imune a críticas, ensejando ideias outras acerca de tal terminologia, cujas teorias não serão esmiuçadas, pois se necessitaria, para tal, de um trabalho mais detalhado. Desse modo, ambos os termos, “gerações” e “dimensões”, serão utilizados como sinônimos. Afinal,
[...] essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas como propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. [...] A visão dos direitos fundamentais em termos de gerações indica o caráter cumulativo da evolução desses direitos no tempo. Não se deve deixar de situar todos os direitos num contexto de unidade e indivisibilidade. Cada direito de cada geração interage com os das outras e, nesse processo, dá-se à compreensão (BRANCO: COELHO: MENDES, 2010, p. 310).
O termo direitos fundamentais é por vezes utilizado como sinônimo de direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, entre outros. O próprio texto constitucional brasileiro apresenta esta diferenciação terminológica ao utilizar. no inciso II do artigo 4º, a expressão direitos humanos: no Título II e no parágrafo 1º do artigo 5º, o termo direitos e garantias fundamentais: e nos artigos 5º, inciso LXXI, e 60, parágrafo 4º, inciso IV, as terminologias direitos e liberdades constitucionais e direitos e garantias individuais (GORCZEVSKI, 2009, p. 131). Por isso, no decorrer do texto poderá se adotar os termos citados como sinônimos, mesmo que existam doutrinadores que façam distinção entre os mesmos.
Ao contrário do que possa parecer, o caráter de aplicação dos Direitos Fundamentais nas relações privadas não é matéria pacificada. O que se tem é a ideia de que os particulares estão vinculados aos Direitos supramencionados, pois “independentemente de qual a perspectiva adotada, a existência de uma vinculação dos particulares (seja qual for sua forma e seu alcance) parece ser, portanto, inquestionável” (SARLET, 2000, p. 119), mas a forma como isso ocorrerá gera uma celeuma na doutrina.
O trabalho, tendo em vista sua extensão, não abordará todas as teorias existentes acerca da vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais, bem pelo contrário, deixa desde o início claro que ao abordar a temática opta-se pela vinculação direta ou imediata dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, eis que “a opção por uma eficácia direta traduz uma decisão política em prol de um constitucionalismo da igualdade, objetivando a efetividade do sistema de direitos e garantias fundamentais no âmbito do Estado social de Direito” (SARLET, 2000, p. 119).
Sarmento (2006, p. 330) refere que “no direito brasileiro, não há maiores dificuldades processuais para a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, diante do exercício, [...] da jurisdição constitucional”. Logo, “a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é antes uma tarefa de interpretação da lei fundamental, uma pré-compreensão das normas fundamentais, seu conteúdo e sua extensão” (MOREIRA, 2007, p. 47).
Afinal, aplicar os Direitos Fundamentais de maneira direta nas relações privadas é usual e se torna tarefa primeira do intérprete, que utilizará dos recursos hermenêuticos para tanto, necessitando para isso, logicamente, um processo de ponderação que sopesará os valores envolvidos, tendo em vista a relação existente (PEREIRA, 2006, p. 167).
Não se deve esquecer que com a entrada em vigor da Constituição Federal, em 1988, os institutos do Direito Privado sofreram mudanças significativas, sendo assim, a visão a ser adotada carece ser mais vasta, impregnada de valores previstos, expressamente ou implicitamente, no texto constitucional (SARMENTO, 2006).
Contudo, embora esta seja a atitude que deve ser adotada pelo intérprete, é sabido que os interesses envolvidos são muitos, necessitando, por consequência de bom senso no sopesamento dos elementos jurídicos existentes e desta nova concepção, pois a importância das relações contratuais para a construção da sociedade deve ser reconhecida e respeitada, eis que se torna o meio para a circulação de riquezas e, também, cumpre uma função civilizadora (AHRENS, 2008).
Assim, a compreensão de que a liberdade individual de contratar e a autonomia da vontade dos contratantes são as regras máximas na seara contratual privada foi substituída no decorrer do tempo. Atualmente, existe a necessidade de se harmonizar os princípios inseridos no ordenamento jurídico brasileiro com os princípios clássicos. Dessa maneira, para que se possa concretizar os ditames constitucionais, é importante que se aplique a boa-fé objetiva, o equilíbrio financeiro e a função social, preceitos inseridos no sistema legislativo nos últimos anos, com a liberdade de contratar, com a força obrigatória dos contratos e com a eficácia relativa da convenção, presentes nas relações contratuais há anos (SARMENTO, 2006).
O que somente ocorrerá com a vinculação direta dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, isso significa que:
[...] a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas significa bem mais do que um mero esclarecimento de sentido no âmbito de um projeto geral de sentido dos direitos fundamentais, representando, isto sim, algo como um novo “horizonte hermenêutico”, implicando uma leitura completamente nova do sentido das normas constitucionais definidoras de direitos e garantias fundamentais (SARLET, 2000, p. 160).
Os contratantes devem cooperar para que o resultado do avençado entre eles seja bem sucedido, pois a “persecução de interesses contrapostos não é empecilho para a construção de um ambiente contratual ético e compatível com a ordem jurídica” (TEPEDINO, 2005, p. 51).
A necessidade de se exigir respeito ao princípio da boa-fé objetiva não, de modo algum, o princípio da força obrigatória dos contratos. Outro não poderia ser o entendimento, eis o pactuado entre os contratantes somente poderá ser revisto quando houver ilegalidade ou abuso, isto é, quando não atender aos preceitos do sistema jurídico (MARTINS-COSTA, 2002).
A relação contratual será analisada desde sua pré-concepção. Assim, a boa-fé objetiva e o princípio da solidariedade, coirmãos, embora aquele derive deste, carecerão estarem presentes nas fases contratuais (pré-contrato, contrato e pós-contrato). Somente assim, o contrato ocupará a posição que lhe é pertinente, qual seja, de instrumento para a edificação de uma sociedade solidária (NALIN, 2008).
Lembra-se que não se deve usar injustificadamente esses preceitos, sob pena de se gerar insegurança jurídica. Logo, o Judiciário aplicará, quando for necessário, tais noções, pois “a boa-fé não deve ser vista como fonte de poder para o juiz criar [...], sem clara autorização da lei, obrigações substancialmente diversas das que foram objeto do contrato concebido pela vontade dos contratantes” (THEODORO JÚNIOR, 2008, p. 164).
Ademais, frisa-se que os Direitos Fundamentais estão não só presentes na interpretação como, também, na aplicação de cláusulas gerais e conceitos jurídicos. Portanto, “conceitos como boa-fé, ordem pública, interesse público, abuso de direito, bons costumes, dentre tantos outros, abrem-se, pela sua plasticidade, a uma verdadeira reconstrução, edificada à luz dos direitos fundamentais” (SARMENTO, 2006, p. 127).
Desse modo, a aplicação do princípio da solidariedade no âmbito contratual é fundamental para que se possa estabelecer valores abarcados pelo sistema jurídico, tendo em vista que “todos os direitos fundamentais [...] são, ademais, eficazes (vinculantes) no âmbito das relações entre particulares” (SARLET, 2000, p. 160).
De tal modo que a aplicabilidade dos direitos fundamentais se irradia na interpretação e aplicação de cláusulas, conceitos e dispositivos jurídicos, permitindo uma reconstrução desses preceitos, sendo imperiosa a interpretação correta para que então se possa aplicar de maneira inequívoca o princípio da solidariedade nas relações particulares (SARMENTO, 2006).
3 A sociedade de risco e as relações privadas
A ideia de sociedade de risco[3] está enlaçada com o conceito de globalização, pois ‘o risco’ não escolhe nações ou classes sociais, não respeita os espaços geográficos, o que gera transformações variadas, geradas por processos que não são lineares. Catástrofes, guerras, pobreza em massa, podem ser verificados em qualquer lugar. Nessa senda, pode-se dividir as ameaças globais em pelo menos três tipos, que podem se complementar e, inclusive, acentuar as ameaças já existentes, quais sejam: os riscos de conflitos bads (decorrentes do desenvolvimento industrial e que afetam o meio ambiente): os problemas relacionados à pobreza ou de crises financeiras: e os decorrentes de NBC (nuclear biological chemical), ou seja, os derivados de ameaças terroristas. Todos estão presentes na sociedade atual, mas apenas o último dos riscos citados é verificado de modo intencional, enquanto os demais são acidentais.
Importa referir que em todos os casos as relações privadas são afetadas, porque repercute na esfera individual questões como as ventiladas acima.
A ideia básica por trás disso é das mais simples: tudo o que ameaça a vida neste planeta, estará ameaçando também os interesses de propriedade e de comercialização daqueles que vivem da mercantilização da vida e dos víveres. Surge, dessa maneira, uma genuína contradição, que sistematicamente se aprofunda, entre os interesses de lucro e propriedade que impulsionam o processo de industrialização e suas diversas consequências ameaçadoras, que comprometem e desapropriam inclusive os lucros e a propriedade (para não falar propriedade da própria vida) (BECK, 2010, p. 46).
Os riscos globais são fruto de conflitos, que podem estar assentados em questões raciais, étnicas, entre outras, e que afetam os processos de modernização, embora não sejam irreversíveis. A contramodernidade, decorrente de diversos fatores presentes na sociedade industrial, é parte da modernidade, influindo em seu processo, pois há incertezas no que se apresenta na atualidade e no porvir (BECK, 2010).
Ao produzir riqueza se está produzindo também riscos, assim há conflito na sociedade desencadeados pelo mercado produtivo, marcado por escassez de materiais e que não possui condições de verificar as ameaças derivadas desses processos.
O risco compõe o presente e o futuro humano, numa relação de oportunidade e perigo, quase como uma caixa de Pandora, ao decidir por um caminho pode haver muitos deslindes e não se sabe o quanto isso pode vir a interferir na humanidade. Logo, exige-se que se faça uma pesagem entre o que se pretende e as perdas derivadas dessa escolha.
Ao ‘abrir a caixa’ se estará correndo o risco, pois não se sabe o que ela contém, é assim que se vive na atualidade. Os modos de informações, as novas tecnologias, as ideologias raciais e étnicas, as convicções religiosas, todas essas noções preenchem a ‘caixa’ e a tornam tão perigosa quanto desejada. Não há como a sociedade se esquivar dela, tal qual Pandora no mito grego, o que resta, assim como no conto, é a esperança.
Por risco, tem-se um componente futuro, logo, é “fundamentalmente que ver com antecipação, com destruições que ainda não ocorreram mas que são iminentes, e que, justamente nesse sentido, já são reais hoje” (BECK, 2010, p. 39). Neste sentido, difere-se da catástrofe, porque esta tem delimitação no tempo e no espaço, o que não há no risco, que está sempre baseado numa não concretude.
Ao se ter ciência de que se vive numa sociedade do risco, não é dimensionar sua segurança, mas exigir uma atuação estatal mais ativa para que se previna catástrofes. Nesse sentido, deve-se calcular o risco, para que se possa reagir, tendo em vista que um dos problemas a ser enfrentado é a insuficiência de informações.
A partir desses pressupostos haverá a percepção de um novo conceito: a sociedade global de risco. Esta sociedade está baseada na reflexividade da incerteza e no momento cosmopolita, porque quanto mais se avança tecnologicamente e quanto mais conhecimento se desvela, mas riscos se criam e estes passam as fronteiras nacionais e repercutem no mundo. Assim, o século XXI está marcado por experiências e conflitos que modificam a existência coletiva, pela necessidade de modificação das instituições frente ao risco, pelas mudanças culturais, por uma nova ética de responsabilidade planetária e por mudanças sociais, que irá modifica a vida social.
As garantias e normas jurídicas são formas de impedir que esse ciclo se transforme em algo variável. A liberdade, a igualdade e, especialmente, a fraternidade, são pressupostos que devem ser garantidos. Nesse sentido, existe semelhança entre igualdade e cidadania, sendo ambas responsáveis pela solidariedade na atualidade. Entretanto, nem sempre foi assim. Com a teoria de Durkheim é que se formou a passagem da “solidariedade mecânica” para a “solidariedade orgânica”. Para o sociólogo citado, a diferenciação da sociedade dava-se pela divisão do trabalho, eis que a mesma
[...] não serviria apenas para dotar nossas sociedades de luxo, invejável talvez, mas supérfluo: ela seria uma condição de sua existência. Por ela, ou, pelo menos, sobretudo por ela, é que seria garantida sua coesão: ela é que determinaria as características essenciais da sua constituição. Por isso mesmo, e embora ainda não estejamos em condições de resolver a questão com rigor, podemos porém entrever desde já que, se é esta de fato a função da divisão do trabalho, ela deve ter um caráter moral, porque as necessidades de ordem, de harmonia e de solidariedade social são geralmente tidas como morais (DURKHEIM, 2004, p. 30).
 :Durkheim (2004), mesmo abordando de modo acessório as relações de solidariedade, não deixou de ser respeitável para a mesma. Assim, refletiu-se, nessa teoria e em outras que a seguiram, a complexidade e a pluralidade das sociedades contemporâneas, apresentando subsídios que puderam uni-las, posto que as grandes revoluções, Americana e Francesa, desencadearam as alterações que refletiram no imaginário social moderno.
A visão holística sobre esses fatores e as categorias ativas é que idealizam esse modelo novo, com feitos de interação complexa e potencial de transição mútua. E, a partir dessa correlação de ideias, as declarações de direito oriundas do pós II Guerra incidem a ser revelações por meio das quais se apresentava a nova ideia de moral independente da política (TAYLOR, 2010), assumindo o Direito papel de destaque ao estabelecer valores solidarísticos em suas normas.
Para Domingues (2002, p. 186), a solidariedade se refere a
[...] processos sociais específicos, por meio dos quais os indivíduos e as coletividades são reconhecidos socialmente em seus direitos e deveres justos perante outros indivíduos e coletividades, isto é, ele define, de formas extremamente variadas, o pertencimento de tais indivíduos e coletividades a um todo mais inclusivo. A solidariedade pode ser atingida por caminhos distintos, e possui aspectos imaginários bem como institucionais, os quais ora se reforçam, ora podem estar em conflito uns com os outros.
Assim, a solidariedade não é somente como um processo que se modifica de acordo com o desenvolvimento da “divisão do trabalho”, não obstante que não se satisfaz com uma acepção de “sentimentos” ou construções imaginárias. Ela, a solidariedade, necessita do corpo institucional para que adquira efetividade (DOMINGUES, 2002).
Nesse sentido, necessita-se que a solidariedade seja equivalente à integração social, abarcando as relações tanto entre indivíduos quanto entre coletividades, pertencendo a todos os domínios da vida social. De tal modo, que “a solidariedade deve ser divisada em diversas dimensões concretas da vida social: em laços familiares e geracionais, na cidadania e na política social, na nação e na classe, assim como no Estado e nas relações econômicas” (DOMINGUES, 2002, p. 189).
O valor da solidariedade, na atual sociedade, “assume um relevo muito especial. Ela, a solidariedade, refere-se à participação de todos na gestão das formações sociais, como objetivo de permitir o pleno desenvolvimento da pessoa” (CORDEIRO, 2009, p. 228).
Afinal, em uma sociedade de risco, como a que se vive, as diferenças sociais e o medo estão cada vez mais visíveis, o que dificulta a definição da igualdade. A solidariedade serve como um laço de união, que se incute nas bases e nos institutos sociais, já que se está em uma sociedade o pluralista, cosmopolita e fragmentada, o que produz novas “tribos modernas” (DOMINGUES, 2002, p. 194-210).
A solidariedade se alimenta da cidadania, da virtude cívica e do engajamento social. Porém, o processo de globalização, modifica a estrutura do Estado de Bem-Estar Social, o que transforma o conceito de cidadania. Assim, a solidariedade social acabou permanecendo centrada no Estado, o que na atualidade, é incompatível com o Estado Contemporâneo. O que exige da ideia polarizada entre individualismo e estatismo sua superação, transformando a solidariedade (DOMINGUES, 2002).
A complexidade das relações sociais está cada vez desenvolvendo mais, notadamente se a análise incidir sobre a pluralização social e a abertura das identidades. Nessa sociedade, busca-se uma ação de instrumento aliada a novas formas de solidariedade social. Nesse processo, o Estado e o mercado terão um papel importante, de modo coordenado, necessitando existir uma nova visão da solidariedade, da modernidade e da coordenação social, numa perspectiva multidimensional (DOMINGUES, 2002).
Na verdade a solidariedade implica o reconhecimento de que, embora cada um de nós componha uma individualidade, irredutível ao todo, estamos também todos juntos, de alguma forma irmanados por um destino comum. Ela significa que a sociedade não de ser o locus da concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconhecem como tais. É em razão da solidariedade que faz o sentido da máxima de que ’a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça para a justiça em todos os lugares’ (SARMENTO, 2006, p. 296).
Estado e sociedade devem ter uma relação fluida e plural, com novas formas de identidade e laços particularistas de solidariedade. As ideologias e pensamentos devem se transformar, permitindo a abertura de partidos políticos e Estado, que estão fechados, à participação dos movimentos sociais atuais. A colaboração será propulsora da solidariedade, que pode e deve ser solidificada pelo Direito.
Desse modo, a solidariedade seria “estar aberto ao outro, tentar atingir alguém, engajar-se com outras pessoas, com outras coletividades, ao menos em certo grau em seus próprios termos” (DOMINGUES, 2002, p. 239). Parece utópico, mas a esperança, assim como na caixa de Pandora, ainda está presente no pensamento de cada componente social. Desse modo, Reis e Fontana (2011, p. 188) afirmam que a solidariedade surge
[...] de uma não normatividade, mas, sobretudo, de ações que movimentam e transformam a sociedade, por meio de práticas interventivas dos conflitos sociais. Teve sua noção de assistência mútua alicerçada no século XIX, quando passou a designar uma nova maneira de pensar a relação indivíduo-sociedade, todavia não se confunde com caridade, já que o objetivo é pensar a solidariedade como veículo condutor da concretização dos direitos sociais. É por meio de uma democracia realizada solidariamente que a sociedade se encontra na sua missão social.
Desse modo, “cada forma de solidariedade implica a ação social bem como um tipo específico de exercício da responsabilidade, que remete a distintas concepções de liberdade, e assim, de igualdade” (DOMINGUES, 2002, p. 241). Logo, percebe-se que existe a necessidade de se construir uma sociedade solidária, sendo que sua realização está numa idealização. Compete ao jurista, à sociedade, ao Estado e ao legislador desencadearem papéis que serão fundamentais para que essa solidariedade seja atingida, em especial nas relações entre particulares, tendo em vista a sua natureza individualista e o meio em que se vive, cada vez mais complexo e permeado de riscos, derivados das mais variáveis relações sociais.
A sociedade de risco pensada por Beck é presente e possível, mas talvez a única solução para que não haja ainda mais efeitos colaterais é que se uma na defesa de direitos e garantias fundamentais, pautados por uma caráter ético e solidário dado pelo Direito.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de inserção dos direitos fundamentais nas relações privadas, ou seja, a constitucionalização do direito privado, aparece como um dos maiores acontecimentos jurídicos dos últimos tempos, porque aprimorou a visão dada pelo Direito, transformando como se interpreta e se aplica as normas jurídicas. Valores como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a solidariedade, entre outros, são importantes fomentadores de uma sociedade melhor, livre do medo, que faz parte da atual sociedade.
A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas é um dos aspectos mais evidentes no processo de constitucionalização do direito privado, pois as três teorias fundamentais quanto à temática: teoria da eficácia direita, indireta e ineficácia dos direitos fundamentais nas relações entre indivíduos, perfaz uma nítida ideia de como se evolui nesse campo. Nesse trabalho, pautou-se pela aplicabilidade direta, por ser ela a que melhor se coaduna com os direitos individuais/sociais/ fraternos, nas relações de entre privados, de um sistema constitucionalizado, pautado por valores e que pretende transformar uma sociedade de risco em um lugar melhor.
A realização de uma sociedade melhor passa pela garantia dos direitos sociais e a vinculação dos particulares na sua concretização, sendo esta a melhor interpretação a ser dada aos princípios constitucionais e valores expressos na Constituição brasileira em vigência, pois não se pode pensar em desenvolvimento pleno sem preservação e garantia dos direitos dos indivíduos.
Pensamento diferente ensejaria numa divergência de conteúdo com o que se tem no ordenamento jurídico do País, pois ao se ler a Constituição resta claro a mudança paradigmática passada pelo sistema brasileiro, pautado nos valores mais caros que se pode imaginar para uma sociedade. Desse modo, deve haver engajamento para que as modificações necessárias sejam realizadas, de modo a permitir que o momento político se transforme, o que certamente ajudará na construção de um País melhor, com igualdade material entre seus cidadãos e laços mais solidários. Em que o risco não seja constante e não transforme o dia-a-dia em medo constante e que os reflexos não sejam sentidos por todos, pois esse é o maior problema de um mundo globalizado como o atual.
REFERÊNCIAS
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[1] :Grace Kellen Corrêa de Freitas - :Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com bolsa CAPES (PROSUP/Modalidade I). Graduada em Direito. Professora da UNISC. Professora orientadora do Gabinete de Assistência Jurídica da UNISC Sobradinho e Venâncio Aires. Subcoordenadora dos Cursos de Direito da Unisc Sobradinho e Venâncio Aires. Especialista em Direito Processual Civil e Empresarial. Delegada da Escola Superior da Advocacia e Conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Rio Grande do Sul - Subseção de Rio Pardo. Mediadora e conciliadora do TJ/RS. Participante dos grupos de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo (Linha de pesquisa em Intersecções Jurídicas entre o Público e o Privado) (UNISC). Advogada. Endereço eletrônico: gracekellenp@gmail.com.
[2] Para Reis (2003, p. 786-787) “o processo de constitucionalização objetiva submeter o direito positivo aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos, ou seja, é fazer uma releitura do direito civil à luz dos princípios e regras constitucionais. É interpretar o direito civil à luz da constituição e não o contrário. Assim, as normas infraconstitucionais tinham se der moldadas a esse novo paradigma do direito pátrio, determinado pelos princípios constitucionais, muito especialmente, como já se disse, os dos direitos fundamentais, da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial. Dessa forma, as normas anteriores à Constituição e que com ela conflitassem estavam revogadas, as posteriores se com ela conflitassem eram inconstitucionais e, em consequência, sem efetividade no mundo jurídico, em obediência ao princípio hermenêutico da hierarquia das leis, cabendo ao Poder Judiciário a competência de verificar a constitucionalidade da norma privada quando em desacordo com a Constituição Federal, através do Controle Difuso de Constitucionalidade”.
[3] “A sociedade do risco é, nesse sentido, também a sociedade da ciência, da mídia e da informação. Nela, escancaram-se novas oposições entre aqueles que produzem definições de risco e aqueles que as consomem. Essas tensões, entre subtração do risco e comércio, produção e consumo de definições de risco, atravessam todos os âmbitos de atuação social. Encontram-se aí as origens primárias das ‘disputas definitórias’ em torno da extensão, do grau e da urgência dos riscos. [...] Apesar de tudo, diferente das riquezas, os riscos polarizam de modo invariavelmente parcial, isto é, a partir das vantagens que eles também produzem, e num estágio mais recuado de seu desenvolvimento. Tão logo o teor de ameaça se torne visível e cresça, dissolvem-se as vantagens e diferenças”. (BECK, 2010, p. 56).
A APLICABILIDADE DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS – UMA NECESSIDADEFREITAS, Grace Kellen Corrêa de Freitas. A APLICABILIDADE DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS – UMA NECESSIDADE. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 20, nº 1468, 07 de Dezembro de 2020. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/a-aplicabilidade-direta-dos-direitos-fundamentais-nas-relacoes-privadas-uma-necessidade.html