15.10.00 | Fernando Guimarães Ferreira

A consolidação da personalidade judiciária dos Poderes Judiciário e Legislativo

Fernando Guimarães Ferreira - Procurador da Assembléía Legisiativa do Rio Grande do Sule membro da Associação Americana de Juristas/RS.

 

 

'Uma constituição não deve ser interpretada mediante princípios estritos e técnicos, mas liberalmente, tendo-se em vista linhas gerais, de modo que ela possa alcançar os objetivos para os quais foi estabelecida, tomando efetivos os grandes princípios de governo. 'J. H. Meirelles Teixeira

 

O ordenamento jurídico, como instrumento de manutenção do Estado, deve ser suficientemente perene para garantir a estabilidade deste, não constituindo, no entanto, uma barreira ao desenvolvimento de suas estruturas. Como exemplo dessa interconexão (estruturas sociais e ordenamento jurídico) pode ser apontada a instalação de uma Assembléia Nacional Constituinte, através da qual uma nação estabelece :o regramento constitucional norteador de seu desenvolvimento.

Como conseqüência da promulgação de um novo texto constitucional - tal como ocorreu neste País em 1988 -, todo o ordenamento jurídico até então vigente estará, em regra, revogado. No entanto, em função do princípio da continuidade do ordenamento jurídico, 'as normas de hierarquia inferior, preexistentes à mudança do sistema constitucional, subsistirão se puderem encontrar, na nova ordem, seu fundamento de validade' (1).

Assim, após um processo constituinte, todo o ordenamento jurídico deve ser, necessariamente, criticado e reinterpretado, objetivando que se alcancem, de forma efetiva, seus objetivos, tendo-se o cuidado de não valorar a nova regra constitucional com os princípios contidos na anterior, pois assim será anulado todo o avanço pretendido. A ordem jurídica deve, pois, ser compreendida dentro da própria dinâmica social, motivo pelo qual é necessária a adoção de um posicionamento crítico a respeito de todas as idéias tidas como dogmáticas, especialmente no tocante à estrutura do Estado, ainda mais pela substancial alteração introduzida no panorama político e jurídico do País pela Constituição Federal de 1988,

Os Poderes Legislativo e Judiciário, tanto no âmbito federal como estadual, têm enfrentado, nos pretórios nacionais, discussão sobre a possibilidade de eles próprios, por titularem autonomias constitucionais (direitos subjetivos públicos), realizarem suas defesas ou postularem diretamente em juízo, quando em jogo seus interesses ou prerrogativas. Tal tarefa, segundo os defensores da hipertrofia do Poder Executivo, caberia, de forma exclusiva, no caso dos estados, às denominadas Procuradorias Gerais dos estados. Esta questão há muito tem sido enfrentada pela doutrina e pela jurisprudência pátrias. Existe entendimento pacificado no sentido da legitimidade passiva e ativa desses poderes para a impetração de mandados de segurança, tendo-lhes sido reconhecida a qualidade de possuírem personalidade judiciária (capacidade processual).

Com fundamento na doutrina, bem como na jurisprudência nacional, pretende-se demonstrar que a personalidade judiciária (capacidade processual) dos Poderes Judiciário e legislativo não está adstrita tão-somente aos mandados de segurança, mas igualmente a todas as ações judiciais, por força das inovações introduzidas no cenário jurídico nacional pela Constituição Federal de 1988 no âmbito das autonomias dos poderes.

A concepção contrária à legitimidade processual dos Poderes Judiciário e Legislativo demonstra-se equivocada face, respectivamente, ao disposto no :caput dos artigos 22 e 99 da Constituição Federal de 1 988 (Judiciário) e ao disposto no :caput dos artigos 22, 51 e 52 da mesma Constituição (Legislativo). Cumpre, neste ponto, esclarecer que não se discute, de forma alguma, a concepção de o Estado ser representado pelo chefe do Poder Executivo, mas sim a possibilidade de os Poderes Judiciário e Legislativo defenderem suas prerrogativas e autonomias em juízo sem a dependência do Poder Executivo, até mesmo porque este, em situações concretas, poderia defender posições conflitantes em detrimento daqueles.

A Constituição Federal de 1988 aboliu a concentração, imposta pela Emenda Constitucional 1/69, das prerrogativas estatais no Poder Executivo, restabelecendo a relação de independência e autonomia entre os poderes. De forma que a permanência dessa concepção centralista configura um injustificado retorno ao passado, ou seja, a uma doutrina violadora dos princípios do efetivo Estado de Direito, na qual ocorria verdadeira :capitis diminutio dos Poderes Judiciário e Legislativo.

Não há como ser negada, no caso dos estados, a situação de a Procuradoria Geral ser um órgão do Poder Executivo, integrante do gabinete do governador do estado, ou seja, a seu exclusivo dispor. O Supremo Tribunal Federal, nessa matéria, através de voto do ilustre ministro Alckmim (RTJ 69/475), firmou o entendimento de que as Procuradorias Judiciais dos estados zelam pelos interesses do Poder Executivo, não podendo os Poderes Judiciário e Legislativo determinar-lhes a atuação para a defesa do que entendam ser seus direitos. Ressalta-se que tal decisão foi proferida anteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988.

Assim, não podemos mais confundir o Estado com a figura do Poder Executivo, uma vez que esta concepção não mais se adequa ao atual princípio da independência e harmonia entre os poderes, face à alteração em seu conteúdo introduzida pela Constituição Federal de 1988 (alargamento da autonomia administrativa e financeira dos Poderes Judiciário e Legislativo). Alegam, no entanto, os defensores da hegemonia do Poder Executivo, que aqueles poderes possuem representatividade jurídica somente para algumas espécies de ações (mandados de segurança e ações de inconstitucionalidade) e não para outras, mesmo que em discussão suas prerrogativas. Tal argumento não prospera, entre outros motivos, por constituir-se em regra básica do Direito a lição de que a todo direito corresponde uma ação, que o assegura (Código Civil, art. 75).

A rigor, somente quem possui personalidade jurídica é apto a ajuizar uma ação mandamental. Contudo, a jurisprudência tem admitido tal legitimidade aos Poderes Judiciário e Legislativo, por reconhecer que estes titulam uma personalidade judiciária, mesmo não possuindo personalidade jurídica. Nesse caso, foi reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina que esses poderes podem ser, individualmente, titulares de direitos subjetivos. Se os Poderes Judiciário e Legislativo possuem, agora, o direito, constitucionalmente previsto, de plenamente exercerem sua autonomia administrativa e financeira, como pode lhes ser negado o direito de assegurar, em juízo, o exercício dessas prerrogativas, reconquistadas em 1988? A não garantia do exercício pleno de suas prerrogativas significa o não atendimento de previsão expressa da Constituição Federal no que tange à autonomia e independência.

A Assembléia Constituinte de 1988 teve, como fundamento de validade, a necessidade de adaptar o País ao processo de redemocratização que se iniciava. Se não fosse objetivada uma verdadeira modificação na estrutura do Estado, não seria necessária uma Constituinte, mas apenas algumas modificações na Emenda Constitucional 1/69.

Em momento algum deste texto pretende-se concluir que os Poderes Legislativo e Judiciário poderiam realizar a representação do Estado em juízo, mas sim a representação de seus próprios direitos subjetivos públicos, evitando-se a indevida ingerência do Poder Executivo quando a demanda envolver qualquer uma das suas autonomias e prerrogativas legalmente previstas, cujo rol foi alargado em 1988.

A doutrina brasileira muito tem contribuído para o reconhecimento da personalidade judiciária dos Poderes Judiciário e Legislativo. O promotor público Gabriel Nettuzzi Perez, por exemplo, em artigo intitulado '0 significado da quase pessoa jurídica no Direito Público Interno' (2), aborda a possibilidade de ser conferida parcela de autonomia às partes integrantes da universalidade conhecida como Estado, reconhecendo a existência de parcelas atuantes, às quais seria correto conceder certa soma de competência, o que não prejudicaria o Estado: 'Em razão de suas múltiplas funções, sempre inesgotáveis, o Estado pluriparte-se em parcelas atuantes, sendo que, com freqüência, algumas delas se tornam individualizadas e perfeitamente caracterizadas, como a Polícia, o Ministério Público, a Câmara dos Deputados, o Senado e tantas outras, cuja menção seria extremamente exaustiva, que possuem atributos personalíssimos inconfundíveis e destacáveis do todo. É injustificável denegar-se a concessão de certa soma de competência e individualização a tais parcelas, que não prejudicaria o aspecto unitário do Estado.'

Mais além, aduz seu conceito para o que denominou de 'quase personalidade jurídica', caracterizando esta como uma personalidade limitada, não enquadrável no conceito de pessoa jurídica, não apresentando, contudo, uma impessoalidade absoluta: 'É de convir-se que um residual substrato de personalidade alcança essas parcelas individualizadas do Estado, de molde a merecer alguma atenção especial. Assim, conquanto o entendimento dominante seja no sentido de negar-lhes personalidade jurídica, o certo e insofismável é que contêm uma quase personalidade, denominada por outros de individualidade jurídica que, sob determinados aspectos, as erige à categoria de pessoas jurídicas imperfeitas.'

Face aos críticos, faz o autor paralelo com a situação do nascituro, aduzindo que a personalidade tem início apenas com o nascimento mas, no entanto, a ele são reconhecidos diversos direitos, como se possuísse personalidade, conquanto suscetível de graduação e fracionamento: 'É bem verdade que há quem se oponha a qualquer graduação ou limitação da personalidade, acrescentando que ela ou existe plenamente ou deixa de existir. Esse radicalismo intransigente, porém, não encontra apoio quer na personalidade emergente das pessoas naturais ou físicas. Tanto isso é exato que, malgrado a personalidade das pessoas naturais tenha início com o nascimento da vida, já ao nascituro, que não preenche tal requisito, se reconhecem vários direitos atribuídos àquelas. Ressalta-se que a 'quase pessoa jurídica' está para a pessoa jurídica na mesma proporção que o nascituro para a pessoa natural ou física.'

Aponta, por fim, a situação observada no direito privado no que tange aos 'grupos não personificados' (massa falida, herança jacente sociedade de fato), aos quais são reconhecidos atributos de personalidade, embora, legalmente não cheguem a constituir uma personalidade plena (3), sugerindo a denominação 'quase pessoa jurídica de direito público' interno.O ilustre mestre Hely Lopes Meirelles, em diversas oportunidades, apresentou considerações a respeito da possibilidade de entes despersonalizados virem a juízo para a defesa do que entendam ser seus direitos (4). Sua maior contribuição encontra-se exatamente na constatação de que a personalidade jurídica e a personalidade judiciária não são necessariamente coincidentes, podendo haver personalidade judiciária ou seja, a capacidade de estar em juízo, sem existência de uma personalidade jurídica: 'Toda pessoa física ou jurídica tem, necessariamente, capacidade processual, mas para postularem juízo nem sempre é exigida personalidade jurídica: basta a personalidade judiciária, isto é, a possibilidade de ser parte para defesa de direitos próprios.'

Na obra :Direito Municipal brasileiro (5), retoma esta questão, sob o prisma da legitimidade das Câmaras Municipais para impetrarem mandados de segurança, reconhecendo, novamente, a possibilidade destas titularem direitos subjetivos, suscetíveis de defesa na esfera jurisdicional: 'A capacidade processual da Câmara para a defesa de suas prerrogativas funcionais é hoje pacificamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Certo é que a Câmara não tem personalidade jurídica, mas tem personalidade judiciária. Mas nem por isso se há de negar capacidade processual, ativa e passiva, à edilidade, para ingressar em juízo quando tenha prerrogativas ou direitos próprios a defender.'

No artigo 'Mandado de segurança de prefeito contra a Câmara'(6), mais uma vez se manifesta quanto à personalidade judiciária: 'Na verdade, o prefeito e a Câmara não são órgãos juridicamente personalizados. Mas nem por isso se há de negar personalidade judiciária a ambos os órgãos da administração local, para o acertamento de questões administrativas que afetem os seus direitos e prerrogativas funcionais.' E conclui que as controvérsias do presente não podem ser julgadas com os critérios do passado.

Em Comentários do Código de Processo Civil (7) o renomado mestre Pontes de Miranda, como não poderia deixar de acontecer, deixou contribuição neste tema, realizando crítica ao art. 12 do Código de Processo Civil. Em seu entender, a União pode ser representada em juízo por qualquer um de seus procuradores e não apenas pelos denominados procuradores da República, uma vez que a referência legal é genérica. Adota idêntica posição para os procuradores dos estados membros: 'lei para todo o País, o Código de Processo Civil alude à prática geral da legislação federal brasileira, que atribui aos procuradores a função de órgão de representação processual na União. (... ) Tem-se de perguntar se a Constituição estadual pode permitir que a lei atribua tal função a funcionário público que não seja, na terminologia mais corrente, o procurador do estado membro. Tal funcionário procurador é, mesmo sem o nome típico.'

José Cretella Júnior (8) , a seu turno, constatou, igualmente, a necessidade de determinados entes públicos, despersonalizados no que diz respeito à postulação em juízo de suas prerrogativas, deterem personalidade judiciária: 'Mais ainda: não é necessário que tenha a entidade uma personalidade jurídica, bastando que tenha capacidade para postular em juízo. Cumpre a respeito ressaltar que personalidade jurídica não se confunde com personalidade judiciária.'

O saudoso ministro do STF Victor Nunes Leal, por sua vez, elaborou, em 1949, artigo (9) versando exatamente sobre a personalidade judiciária dos Poderes Legislativos municipais, segundo o qual a ausência de personalidade jurídica não poderia ser impeditiva do exercício da personalidade judiciária, sendo ambas, portanto, independentes entre si: 'Também entre nós a ausência de personalidade jurídica não é, em certos casos, impeditiva da personalidade judiciária, como ocorre, por exemplo, com a massa falida e a herança indivisa. Já foram indicados, portanto, vários exemplos nos quais, mesmo em nosso direito positivo, a personalidade judiciária é independente da personalidade jurídica, muito embora a personalidade jurídica se complete sempre com a judiciária.'

Além de todos os fundamentos apresentados agrega-se, ainda, o argumento de que a própria Constituição Federal (1 988) reconheceu, expressamente, às Assembléias Legislativas, legitimidade para, a teor do inciso IV do art. 103, propor ação de inconstitucionalidade. E não há que se tratar de legitimidade excepcionalmente conferida pela Constituição Federal, mas irrestrita, como decidido pelo STF na Adin 127.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a legitimidade processual de entes estatais despersonalizados para a defesa de seus interesses, não exigindo a atuação da Advocacia Geral da União ou das Procuradorias Gerais dos estados, como pode ser observado no recurso extraordinário 74.836 (10).

O supra mencionado aresto é extraordinário no sentido de reconhecer a personalidade judiciária de entes estatais despersonalizados, como é o caso do Tribunal de Contas do Estado do Ceará, e de admitir a não obrigatoriedade de a impetração ser realizada através da Procuradoria Judicial do Estado, uma vez que reconhece ser tal procuradoria vinculada diretamente aos interesses exclusivos do Poder Executivo estadual e não aos dos demais poderes, além de reconhecer o direito subjetivo público de os entes estatais não personalizados defenderem o exercício de suas funções constitucionalmente conferidas (11) .

Na ação direta de inconstitucionalidade 127, o STF entendeu que as autoridades e entidades enumeradas nos incisos I a VII do art. 103 da CF/ 88 possuem capacidade processual e postulatória plenas, além da legitimidade para a instauração de ações de inconstitucionalidade: 'O governador do estado e as demais autoridades e entidades referidas no art. 103, incisos I a VII, da Constituição Federal, além de ativamente legitimados à instauração do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos, federais e estaduais, mediante ajuizamento da ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, possuem capacidade processual plena e dispõem, :ex vi da própria norma constitucional, de capacidade postulatória.' (12)

Podemos colecionar, ainda o agravo regimental em suspensão de segurança 300, do Tribunal Pleno, em cuja decisão foi admitida a legitimidade de uma Assembléia Legislativa postular, em nome próprio, em processo autônomo, a suspensão de medida liminar concedida em uma ação mandamental. Observa-se, claramente, que o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Assembléia legislativa possuía legitimidade para postular a cassação da liminar concedida, reconhecendo a esta a capacidade processual para o exercício de tal faculdade processual. Aponta-se, ainda, recente decisão do STF na Adin 175-2 :(DJU de 08.10.93), que, entendeu ser constitucional - em relação ao art. 132 da Constituição Federal de 1988 e art. 69 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - o art. 56 da Constituição do Paraná, o qual prevê a existência de carreiras jurídicas especiais voltadas à prestação de atividades jurídicas específicas do interesse de cada um dos poderes do Estado. Assim, seria constitucional a existência de carreiras jurídicas especiais, paralelas à de procurador do Estado e que prestam serviços de natureza jurídica e judiciária aos poderes aos quais pertencem.

Quando do exame da medida liminar pleiteada - indeferida - o Supremo Tribunal Federal considerou que os ocupantes de cargos de procuradores do Poder Judiciário ou do Poder Legislativo exercem função que a Constituição Federal denominou de Advocacia de Estado, não havendo, portanto, justificativa legal para o deferimento de uma liminar objetivando manter a situação privilegiada para aqueles que detinham o título de procuradores do Estado (voto do ministro Sepúlveda Pertence, referido pelo próprio no julgamento do agravo regimental em suspensão de segurança 955-9, :DJU de 25.10.96).

-No mérito, a ação foi julgada improcedente, sendo relevante o voto do ministro Octávio Gallotti no que tange à capacidade processual dos Poderes Judiciário e legislativo: 'É certo que não possuindo - as assembléias e os tribunais - personalidade jurídica própria, sua representação, em juízo, é normalmente exercida pelos procuradores do Estado. Mas têm, excepcionalmente, aqueles órgãos, quando esteja em causa a autonomia do Poder, reconhecida capacidade processual, suscetível de ser desempenhada por meio de procuradorias especiais (se tanto for julgado conveniente, por seus dirigentes), às quais também podem ser cometidos encargos de assessoramento jurídico das atividades técnicas e administrativas dos poderes em questão (assembléias e tribunais).'

O Pleno do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do mandado de segurança 21.239 :(DJU de 23.04.93), entendeu que o Ministério Público Federal poderia impetrar mandado de segurança contra qualquer ato que ofendesse sua autonomia: 'A legitimidade :ad causam no mandado de segurança pressupõe que o impetrante se afirme titular de um direito subjetivo próprio, violado ou ameaçado por ato de autoridade: no entanto, segundo assentado pela doutrina mais autorizada (cf. Jellinek, Malberg, Duguit, Dabin, Santi Romano), entre os direitos públicos subjetivos incluem-se os chamados direitos-função, que têm por objeto a posse e o exercício da função pública pelo titular que a detenha, em toda a extensão das competências e prerrogativas que a substantivem: incensurável, pois, a jurisprudência brasileira, quando reconhece a legitimação do titular de uma função pública para requerer segurança contra ato do detentor de outra, tendente a obstar ou usurpar o exercício da integralidade de seus poderes ou competências: a solução negativa importaria em subtrair da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.'

A jurisprudência - com amplo respaldo doutrinário (vg., Victor Nunes, Meirelles, Buzaid) tem reconhecido a capacidade ou 'personalidade judiciária' de órgãos coletivos não personalizados e a propriedade do mandado de segurança para a defesa do exercício de suas competências e do gozo de suas prerrogativas: 'Não obstante despido de personalidade jurídica, porque é órgão ou complexo de órgãos estatais, a capacidade ou personalidade judiciária do ministério lhe é inerente - porque instrumento essencial de sua atuação - e não se pode dissolver na personalidade jurídica do estado, tanto que a ele freqüentemente se contrapõe em juízo se, para a defesa de suas atribuições finalísticas, os tribunais têm assentado o cabimento do mandado de segurança, este igualmente deve ser posto a serviço da salvaguarda dos predicados da autonomia e independência do Ministério Público, que constituem, na Constituição, meios necessários ao bom desempenho de suas funções institucionais.'

A jurisprudência dos estados é profícua quanto ao tema da personalidade judiciária dos entes estatais despersonalizados, em especial das Câmaras Municipais. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pode ser apontado como fonte de duas importantes decisões. Diz a RDA 98/202: 'A Câmara Municipal não tem personalidade jurídica, mas goza de capacidade processual. Embora sem personalidade jurídica, as Câmaras têm personalidade judiciária. A falta daquela não interfere na capacidade processual reconhecida às edilidades precisamente para a defesa de suas prerrogativas político-administrativas, como, no caso, o seu direito ao pleno funcionamento, tolhido pelo descumprimento das requisições de suas verbas orçamentárias.' Diz a RT 364/161 sobre mandado de segurança: 'Impetração por Câmara Municipal: Admissibilidade em princípio. O direito de requerer mandado de segurança interfere por sua analogia com o problema das condições da ação. Assim é que, todo aquele que pode usar das ações cíveis, pode, igualmente, requerer mandado de segurança. Às entidades de direito público, isto é, às pessoas jurídicas de direito público assiste, pois, em princípio, o direito à impetração. Se não existe restrição legal, como observa Seabra Fagundes, não há como impedir-se o recurso ao remédio constitucional. Pela admissibilidade da impetração manifesta-se Hely Lopes Meireiles, acentuando que as Câmara Municipais dispõem de capacidade processual ativa e passiva, para a defesa de suas prerrogativas institucionais.'

O Tribunal Regional do Trabalho da 12a. Região (Santa Catarina), por sua vez, teve a oportunidade (Acórdão TP 1.2229/94-TRT/SC/RO-E-V 2.590/90 de emitir pronunciamento (13) sobre a possibilidade de a Assembléia legislativa do Estado vir a juizo, em reclamatória trabalhista, para a defesa de seus direitos, sem que isso importasse em qualquer violação ao art. 132 da Constituição Federal de 1988.

O voto do relator aborda a compatibilidade da carreira de procurador da Assembléia Legislativa com a de procurador do Estado, inclusive no terreno da representação judicial dos poderes (o STF, no mandado de segurança 21.239 :(DJU de 23/04/93, pág. 6920), adotou semelhante abordagem): 'Cinge-se a presente controvérsia a decidir se o art. 37 da Constituição Estadual de Santa Catarina é ou não inconstitucional frente ao art. 132 da Constituição Federal. Primeiramente, apenas para desmistificar certas interpretações errôneas sobre tal dispositivo, ressalto que este não tratou de conferir personalidade jurídica à Assembléia legislativa, mas tão somente atribuiu a seu presidente a representação judicial e extrajudicial, através da procuradoria respectiva, nos processos referentes àquele órgão. Não olvido do mandamento insculpido no art. 132 da Constituição Federal que estabelece caber aos procuradores do Estado a representação judicial da respectiva unidade federada. Entendo que o art. 37 da Constituição Estadual em hipótese alguma fere o disposto no art. 132 da Constituição Federal. O art. 132 tratou apenas de estabelecer que a representação dos estados federados caberia aos procuradores do Estado. O legislador constituinte, ao se utilizar do termo procuradores do Estado, o fez de forma genérica, sem, no entanto, atentar para as peculiaridades de cada estado, pois são raras as unidades federadas que possuem quadro específico de procuradores para alguns de seus órgãos. A argüição de inconstitucionalidade do art. 37 da Constituição Estadual deriva de um excessivo apego aos critérios técnicos e terminológicos que viola os consagrados princípios de interpretação constitucional. Portanto, a determinação para que os procuradores da Assembléia Legislativa atuem em processos relativos àquele órgão nada possui de inconstitucional, sendo até salutar, pois o Poder Executivo não pode responder por um ato do qual não participou, qual seja: a admissão e demissão de funcionários. Destarte, entendo que a argüição de inconstitucionalidade do art. 37 da Constituição Estadual frente ao art. 132 da Constituição Federal é totalmente ilógica, pois, além de a Assembléia Legislativa possuir um quadro específico de procuradores, a matéria suscitada não se coaduna com os princípios de interpretação constitucional, muito menos com o art. 25 da CF que concedeu aos Estados Federados autonomia para se organizarem e se regerem. Ante o exposto, rejeito a argüição de inconstitucionalidade do art. 37 da Constituição do Estado de Santa Catarina.'

O Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul possui extraordinária lição sobre a legitimidade processual de Câmaras de Vereadores, consubstanciada no acórdão referente ao mandado de segurança 27.998 (RJTJRS 73/239). O eminente desembargador Hermann Homem de Carvalho Roenick apresenta com maestria a problemática da participação em juízo de legislativos municipais, sendo dispensada a presença da municipalidade: 'Ademais, e cumpre que se afirme, a capacidade de ser 'parte', no sentido material, não se confunde com a capacidade de resistir em juízo, ou seja, a de índole processual. Esta, no sentido da doutrina, é menos do que aquela. A :legitimatio ad causam se relaciona, ativa ou passivamente, com a pretensão de direito material que foi apontada no processo e que constitui o seu exclusivo objeto. Ao contrário, a :legitimatio ad processum diz com a capacidade de residir em juízo, em nome próprio ou por conta de outrem. Posta a questão nessa ordem de raciocínio, tem que o art. 12, do vigente CPC, assim como o art. 87 do revogado estatuto processual - que se assemelham - regulam apenas a matéria relativa à representação processual e jamais a questão da :legitimatio ad causam. Não se pode, aprioristicamente, dizer que às Câmaras Municipais falece capacidade de ser parte, em assuntos de interesse municipal, só pelo fato de não significarem pessoas de direito público interno, ou, porque órgãos do município, só a este, pela sua representação legal, é que compete residir em juízo. Nem se compreenderia que um órgão, mesmo sem personalidade jurídica, se fosse titular de direitos subjetivos, não se pudesse valer dos meios judiciais adequados para defendê-los. Tenho que, nesse plano de ordem estritamente político, as legitimações :ad causam e ad processum não podem ser vislumbradas restritivamente. No caso, pois, a legitimação :ad causam da edilidade não pode ser obscurecida, pois corresponde à defesa de uma prerrogativa que considera exclusivamente sua. Se o é, ou não, é problema de mérito, que não se antepõe ao de uma das condições da ação.'

Nestes termos, toda entidade dotada de autonomia possuiria capacidade para, em juízo, defender seus interesses próprios, pois, do contrário, a autonomia que lhe é conferida restaria anulada ou, ao menos, diminuída no seu conteúdo e desfalcada em sua substância (desembargador Ladislau Fernando Rohnelt). Importante apontar que essa decisão foi proferida na vigência da Emenda Constitucional l de 1969, quando os municípios eram meros órgãos administrativos e não, como hoje, entidades componentes do Estado Federal. Em sendo o Poder Executivo (através da Procuradoria Geral do Estado) o defensor em juízo das autonomias e prerrogativas dos Tribunais de Justiça e das Mesas de Assembléias Legislativas, aquele, terminaria, contrariamente ao princípio da autonomia dos poderes, por interferir profundamente nas decisões pertinentes a esses poderes, em prejuízo de toda a sociedade, uma vez que a teoria de tripartição dos poderes objetivou exatamente a fragmentação do poder, evitando-se a hipertrofia de um poder em relação aos outros.

Em sendo encerrada a presente exposição, podem ser apresentadas, resumidamente, as seguintes conclusões:

a) a Constituição Federal de 1988, dentro do processo de redemocratização nacional - como reação ao centralismo da Emenda Constitucional l de 1969 - alterou de forma substancial o conteúdo dos princípios da autonomia e da independência dos poderes, no que tange ao exercício das prerrogativas próprias de cada um desses, sendo concedida aos Poderes Judiciário e Legislativo uma autonomia administrativa e financeira antes concentrada no Poder Executivo (hipertrofia do Poder Executivo), de forma que o entendimento pela incapacidade processual absoluta desses poderes não encontra seu pressuposto de validade no atual diploma constitucional, além de representar sério risco ao fortalecimento da democracia no País, uma vez que esses poderes não teriam a possibilidade de defender, de forma real e efetiva, suas prerrogativas, constitucionalmente previstas:

b) a jurisprudência nacional - inclusive do Supremo Tribunal Federal - e a doutrina nacional são vastas ao reconhecer, expressamente, aos Poderes Judiciário e legislativo - mesmo anteriormente à Constituição Federal de 1988 - personalidade judiciária (capacidade processual), por titularem direitos subjetivos públicos, podendo comparecer em juízo, em qualquer espécie de ação judicial, para a defesa de suas autonomias e prerrogativas institucionais, as quais foram alargadas pelo novo diploma constitucional federal.

O presente trabalho não esgota o tema proposto - nem é essa a sua pretensão - possuindo o escopo de apenas, numa visão inicial, alertar para a questão da representação, em juízo, dos Poderes Judiciário e Legislativo, como instrumento de contraposição à hipertrofia do Poder Executivo - combatida esta pela Constituinte de 1988 - com a finalidade de ser restabelecido, neste Pais, o verdadeiro Estado de Direito.

1. Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, :Controle de constitucionalidade e teoria da recepção, Malheiros Editores, São Paulo, l. edição,l995, pág. 56.

2. Revista :Justitia, vol. 75, págs. 139 a 141.

3. 'Parece que de maneira similar, o Direito Administrativo não pode ignorar a figura da quase pessoa jurídica de direito público, porque também nesse ramo do Direito o fenômeno ocorre.'

4. Mandado de segurança, ação popular e ação civil púbíica, RT, l l. edição, págs. 4 e 5.

5. Malheiros Editores, 6. edição atualizada, págs. 444 e 445.

6. Assuntos municipais, instituto de Direito Municipal, Porto Alegre, 1965, págs. 610 a 612.

7. Tomo I, Editora Forense, 1974, págs. 319 e seguintes.

8. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo, Editora Forense, 3L' edição, págs. 362 a 369.

9. Personalidade Judiciária das Câmaras de Vereadores, RDA 15146.

10. RTJ 69/475: 'Primeiramente, não é exato que somente as pessoas físicas e jurídicas tenham capacidade de ser parte e de estar em juízo. Não se vê, pois, razão para que se lhe negue a qualidade de parte formal ativa, desde que demonstre interesse em estar em juízo. E, como conseqüência, lícito lhe é fazer representar-se por profissional habilitado. Já temos aqui admitido a intervenção de tribunal, por meio de advogados. A Procuradoria Judicial dos estados zela pelos interesses da Administração e os 'os do legislativo, como os do Judiciário, não têm o poder de determinar-lhes a atuação para a defesa do que entendam seus direitos. Legitima, assim, é a representação da impetrante.'

11. 'Legitimidade ativa. Órgão público despersonalizado é parte formal. Defesa do exercício da função constitucionalmente deferida ao Tribunal de Contas. Poder jurídico, abrangido no conceito de direito público subjetivo.

12. Diário de Justiça da União de 04.12.92, págs.23.057 e seguintes.

13. Ementa: 'Inconstitucionalidade. Art. 37 da Constituição Estadual de Santa Catarina frente ao art. 132 da Constituição Federal. O objetivo do legislador constituinte ao redigir o art. 132 da Constituição Federal foi tão-somente o de assegurar a representação judicial dos estados, sendo indiferente que seja efetuada por procuradores do Estado ou por procuradores do órgão do qual se originou a demanda, pois são raras as unidades federadas que possuem quadro específico de procuradores para alguns de seus órgãos.'

 

(Transcrito de :Cidadania e Justiça - Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, Rio de Janeiro (8): 149-59, 1o semestre/2000).


FERREIRA, Fernando Guimarães Ferreira. A consolidação da personalidade judiciária dos Poderes Judiciário e Legislativo. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 0, nº 21, 15 de Outubro de 2000. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/a-consolidacao-da-personalidade-judiciaria-dos-poderes-judiciario-e-legislativo.html
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Editores: 
José Maria Tesheiner
(Prof. Dir. Proc. Civil PUC-RS Aposentado)

Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha

Advogada e Professora Universitária

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