A FALSA COMPLEXIDADE DA LIQUIDEZ NOS TÍTULOS EXECUTIVOS
Jerônimo Roberto F. dos Santos – Juiz de Direito
Sumário
I. A guisa de introdução.
II. Exposição preliminar.
III. Antecedentes ao pedido de tutela executiva.
IV. Aspecto conceitual do predicamento de 'liquidez'.
V. A posição da jurisprudência em relação a matéria.
VI. Considerações finais.
VII. Bibliografia.
I. A guisa de introdução
Direito, a mais eficiente técnica de vida e de acomodação das relações intersubjetivas, não recepciona as controvérsias que tenham por pano de fundo ingredientes de ordem subjetiva, tipo: medo, amor, emoção ou paixão. E, não vejo, sinceramente, como se possa pretender conduzir um bom debate na arena do direito sem que seja orientado pelo total espírito de isenção na acepção mais completa da palavra.
Mais grave e sem sentido, é permitir que as conveniências da ocasião sejam elevadas a condição de teses fechadas a serem defendidas, a qualquer custo, ainda que colidente com os mais elementares princípios da lógica jurídica.
Portanto, é com certa apreensão que tenho observado, em face de demandas executivas, a reiterada e no mais das vezes abusiva, argumentação voltada para descaracterizar a 'liquidez' do elemento fundamental do pedido de tutela executiva, que é o título.
E aí, o que se constitui em gravidade é o fato de que essa linha de defesa, regra geral, descansa em argumentos que na prática se constituem em verdadeiros abusos não só por improcedentes, mas e sobretudo por sugerir uma autêntica litigância de má fé.
II. Exposição preliminar.
Hélio Tornaghi, decerto, o mais humanista dos nossos pensadores jurídicos, com sensibilidade e proficiência já o dissera: 'O processo existe para que os homens não vejam inimigos nos antagonistas, mas os encarem como outros homens e, melhor que isso, como irmãos'.
E Carnelutti, com o pensamento voltado para a exortação de Pio XII na sua recomendação de 'Paz com Justiça' fez consignar: 'O Direito processual aperfeiçoou os costumes, poliu os sentimentos, requintou as maneiras e criou hábitos de cavalheirismo e lealdade. Com isso, ele tornou a vida mais fácil e a humanidade mais feliz. Melhor seria que não houvesse litígios. Mas esse ideal só é atingível na vida eterna. Homens não são anjos: de suas limitações decorrerão sempre, infelizmente, a incompreensão, que é o vício da inteligência, e o egoísmo, que é defeito da vontade. A paixão, por seu turno, ofuscará a primeira e enfraquecerá a outra. Ainda de boa fé, e quanto mais sem ela, eles se desentenderão e surgirão os dissídios.'
E foi visando a própria preservação do homem na face da terra que o Estado trouxe para si o monopólio da justiça. E ao fazê-lo, consolidou, decerto, a mais eficiente forma de contenção das pretensões resistidas e/ou insatisfeitas em face das relações intersubjetivas.
No que respeita a tutela jurisdicional executiva, pode-se dizer que não incorrerá em equívoco apontá-la como o momento culminante da atividade pacificadora estatal. E o é, face a verdade de que são os provimentos executivos, em ultima instância os que efetivamente realizam a ordem jurídica.
Portanto, qualquer sistema processual que se pretenda sério, respeitado e eficiente deve, sem recalcitrância, disponibilizar para o cidadão a pronta atuação da tutela jurisdicional executiva e que seja suficiente para garantir a efetivação, no plano concreto, dos direitos certificados e, eventualmente, desatendidos pelos obrigados.
E é verdade! De que serviria o aperfeiçoamento dos mecanismos de cognição se ao final, a realização do direito declarado não dispusesse de mecanismos igualmente ágeis, eficientes e enérgicos para garantir o atendimento prático da relação material subjacente?
A propósito, Humberto Theodoro Júnior, com objetividade lançou argumentos: '... na maioria das vezes, as pessoas que têm de usar o processo como meio de defesa ou realização de direito subjetivo, quase nunca o fazem em busca de uma sentença apenas. O que move o comum dos homens a procurar a Justiça é, realmente, o desejo de obter uma tutela que seja efetiva na realização da prestação material devida pelo inadimplente ou na restauração do bem da vida agredido pelo demandado ou na recuperação daquilo que lhe foi indevidamente subtraído. Todos estes desígnios somente se concretizam quando a atividade jurisdicional entra no plano da concretude, pondo em ação as medidas de alteração compulsória do mundo fático para adequá-lo ao direito subjetivo reconhecido à parte. E isto é a meta específica do processo de execução, de sorte que, na maioria das vezes, a tutela jurisdicional prometida pelo Estado, como garantia constitucional, somente se realizará quando a execução forçada se ultimar. Daí a relevância :notória e irrecusável desse tipo de função jurisdicional, no Estado Democrático de Direito.'
III. Antecedentes ao pedido de tutela executiva.
O direito processual moderno, sem embargo dos significativos progressos já alcançados, ainda não conseguiu estabilizar de forma confortável a necessidade de ser célere nos seus provimentos, sem que com isso reste enfraquecido, na segurança, quanto ao acertamento do direito.
E foi com o fito de inibir aventuras ou injustiças que, na execução, o legislador instrumental voltou-se para fixar antecedentes necessários, verdadeiros pressupostos autorizadores da movimentação do aparelho judiciário estatal, e sem os quais a função judiciária repele e não aceita o assestamento de demanda executiva.
Assim, o atual sistema processual somente permite a utilização da via executiva quando presentes dois pressupostos indispensáveis, é dizer: a) o título executivo, judicial ou extrajudicial e b) o inadimplemento do devedor.
Portanto, toda e qualquer movimentação executiva resta, de plano, fadada ao insucesso na medida em que se encontre ausente o título executivo :(nulla executio sine titulo).
Ainda por relevante e a teor do art. 586 do CPC, tenha-se em conta que o instrumento hábil para o movimento executório não é apenas aquele que contenha a denominação e alguns requisitos formais fixados no texto legal, há ainda de ter os predicamentos de certeza, liquidez e exigibilidade.
Nesta realidade, diga-se com Calamandrei, in El procedimiento monitório, ed. 1953, pág. 105'... é fácil compreender que não se pode proceder à realização forçada de um crédito senão quando ele esteja provido dos três requisitos acima', isto é, a via da execução forçada só se abre ao credor que se apresente munido :'de uma declaração de certeza, provinda de ato de autoridade ou de contrato, da qual resulte (pelo menos, provisoriamente) fora de controvérsia, não só a existência e o valor do crédito, como também o direito do credor de obter sem dilação a satisfação respectiva' (Calamandrei, ob. cit., loc. cit.).
Em relação aos atributos de certeza, liquidez e exigibilidade do crédito, Theodoro Júnior, ainda na esteira dos ensinamentos de Calamandrei, informou a não deixar dúvidas:'...ocorre a certeza do crédito quando não há controvérsia sobre sua existência: a liquidez, quando é determinada a importância da prestação (quantum): e a exigibilidade, quando o seu pagamento não depende de termo ou condição, nem está sujeito a outras limitações...' Na seqüência, delineou objetivamente:'A certeza refere-se ao órgão judicial, e não às partes. Decorre, normalmente, da perfeição formal do título e da ausência de reservas à sua plena eficácia. A liquidez consiste no 'plus' que se acrescenta à certeza da obrigação. Por ela demonstra-se que não somente se sabe que 'se deve', mas também 'quanto se deve' ou 'o que se deve'. E continua o mestre:'... :Não são, porém, ilíqüidos os títulos que, sem mencionar diretamente a quantia exata da dívida, indicam todos os elementos para apurá-la mediante simples operação aritmética em torno de dados do próprio documento. Destarte, a cláusula de juros, por exemplo, não retira a liquidez do título. A exigibilidade, finalmente, refere-se ao vencimento da dívida. 'Obrigação exigível é, portanto, a que está vencida', seja porque se verificou o termo, seja porque se verificou a condição a cuja ocorrência a eficácia do negócio jurídico estava subordinada.' (evidência nossa)
IV. Aspecto conceitual do predicamento de 'liquidez'
Francisco de Paula Lacerda de Almeida, já em 1916 nos lembrava que a dívida, qualquer que seja a sua origem, sempre encerrará três elementos fundamentais: a) certeza de sua existência: b) cifra do seu montante: c) determinação da natureza do objeto com que deva ser paga. E mais adiante, esclareceu que ocorre redundância ao se falar em dívida líquida e certa, na medida em que a liquidez pressupõe a certeza e nem toda dívida certa é liquida. :'Líquida é a dívida determinada na sua espécie, qualidade ou quantidade: e certa, a que é provada pelos meios competentes.' (Francisco de Paula Lacerda de Almeida. Obrigações. Tipografia Revista dos Tribunais. Rio, 1916).
A rigor, é possível se fixar um ponto comum no que respeita a caracterização de um dado título executivo como líquido, ou seja, doutrina e jurisprudência são uníssonas na expressão - Cálculo aritmético x Possibilidade de determinação do valor da obrigação
Diga-se melhor com Araken de Assim, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VI, pág. 187: ' ... basta à configuração da liquidez, nos títulos extrajudiciais, quanto às prestações, a simples capacidade de se determinar o valor (quantum debeatur) mediante cálculos aritméticos... '
E Shimura, na sua conceituada monografia 'Título Executivo', também caminha na mesmíssima senda. Confira-se: '... É suficiente que a quantia seja determinável, isto é, que contenha os indicativos suficientes para que, mediante simples operação aritmética, chegue-se ao valor correspondente...'
E poderíamos trazer à colação uma infinidade de autorizadas vozes, todas, sem exceção, objetivando a liquidez dos títulos no binômio acima declinado.
Logo, não se há esconder a existência de uma falsa percepção por parte de um significativo número de operadores do direito ao tratar do tema. E para tanto, veja-se que estatísticamente, em cada 10 movimentos direcionados para inibir uma pretensão executiva, pelos menos 06, apontam linha de defesa para fulminar o título na sua expressão de iliquidez.
V. A posição da jurisprudência em relação a matéria.
A jurisprudência, e todos o sabem, tem a máxima função de oxigenar e dar vida aos textos legais, até porque, estes, se encontram irremediavelmente presos à frialdade inorgânica das letras e portanto, sem vida.
Assim, ao lado da doutrina, as decisões dos nossos pretórios se constituem no grande norte para se desvendar de forma objetiva o 'mito da iliquidez' nos títulos executivos.
E nesse patamar foi que o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, no REsp n° 139.412 – MG – 4ª T. DJU 21.06.1999, assim consignou:'... Como bem assinalou o v. acórdão impugnado, 'ilíquido não é o título, que contém o valor do principal da dívida e as informações necessárias ao cálculo dos respectivos acessórios, a serem apurados por simples cálculo do contador'... '
O Desembargador Munir Feguri do TJ/MT, como relator no Ac. n° 19.940 de 04.03.98, não divergiu:'... Não há se falar em iliquidez quando se pode chegar ao valor do título executado mediante simples cálculo aritmético... '
Bastante elucidativo, por sua vez, foi o Des. Wellington Medeiros com supedâneo no entendimento de Cândido Rangel Dinamarco, por ocasião do Ac. n° 134790 - TJ-DF de 05.02.2001. Veja-se:'... I – A liquidez é um conceito de direito material. É líquida a obrigação quando a determinação do quantum debeatur não depende de investigação :de fatos exteriores ao título que a institui ou corporifica. Seja porque no título já vem indicado o seu valor, seja porque a revelação deste pode ser obtida mediante simples operações aritméticas com parcelas, índices ou coeficientes ali declarados ou notórios ...' (grifo nosso)
Por fim, de forma singela, pedagógica e objetiva o Des. Jeronymo de Souza em sede da Ap.Civ. 3682295-DF de 26.02.96, assim o disse: '... :PROCESSO CIVIL. TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL. LIQUIDEZ. É líquido o título que nos fornece todos os elementos para que se possa apurar o valor exato do crédito mediante simples operação aritmética.' (evidenciei)
Vê-se pois, que em tema de liquidez não se há falar em meditações profundas ou dificuldades de ordem periférica, basta que o bom senso e a razoabilidade estejam presentes nos requerimentos e no modo ver os elementos integrativos do título apresentado.
VI. Considerações finais.
Todos nós, operadores do direito, que vivenciamos diuturnamente a atividade prática da justiça, somos, com freqüência, tomados por um profunda descrença quanto a expectativa de demandas ágeis e justas.
Vários e vários expedientes estão a exigir, uma vez detectados, posições firmes de todos, mas muito especialmente dos magistrados verdadeiramente comprometidos com uma correta prestação jurisdicional.
E neste desiderato, impõe-se que todos tenham a visão de progresso, de eficiência, sem preconceitos e sem apego aos movimentos retrógrados, que, se tolerados, concorrem para determinar o desprestígio da Justiça.
Finalmente, por absoluta conveniência, cabe ter em boa lembrança as palavras do eminente Magistrado paulista Dr. Francisco Rebouças:'Quem conhece o Judiciário sabe que a sua verdadeira reforma há de implicar no abandono de praxes, sendo imprescindível renovar métodos, aniquilar tabus, romper com as ferrugens do teorismo que, invertendo valores, entrava a realização do direito, mas não se envergonha da chicana. Além disso, é preciso ser prático, isto é, alcançar rapidamente o resultado específico da atividade que se desenvolve, ao menos naquilo que é simples pela própria natureza, realizando o serviço público com prestigiamento do Poder. É necessário intuir, se vedada for a dedução, que o processo judicial não é mera burocracia, não é o instrumento da fraude, do dano e do engodo, não é seqüela do Estado cartorário, nem pode ser confundido com sintoma do Estado autocrático. Trata-se de simples extensão, viva e atuante, das garantias constitucionais. Quer na ciência, quer no texto do Código, a verdadeira idéia e a única norma de procedimento serão aquelas capazes de impedir essas confusões.
Assim, vemos de forma assaz objetiva que a iliquidez do título, eventualmente, é colacionada, não com base na realidade factual, mas, tão somente na intenção de estabelecer linha de defesa protelatória.
Portanto, juízes e advogados devem estar atentos e vigilantes para inibir a dificuldade posta e daí, alcançar rapidamente a atividade fim do judiciário, que é dar uma prestação jurisdicional rápida e eficiente, sem perder de vista a necessária segurança.
VII. Bibliografia
1. Tornaghi, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. :I,
2. Assis, Araken. :Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VI, Rio de Janeiro, 2000.
3. Shimura, Sérgio. Título Executivo, São Paulo, 1997
4. Nery, Nelson e Rosa Maria de Andrade, Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante em vigor, 5ª ed., Revista dos Tribunais, São Paulo.
5. Júnior, Humberto Theodoro, Processo de Execução, 18ª ed., Leud, São Paulo.
6. Jurisprudência variada.
(http://www.netsupri.com.br/jr/profissionais/jrliquidez.html - copiado em 25.06.01)
SANTOS, Jerônimo Roberto F. dos Santos. A FALSA COMPLEXIDADE DA LIQUIDEZ NOS TÍTULOS EXECUTIVOS. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 1, nº 38, 02 de Julho de 2001. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/a-falsa-complexidade-da-liquidez-nos-titulos-executivos.html