ACESSO À JUSTIÇA É IMPACTADO PELA VULNERABILIDADE DIGITAL
Na segunda metade do século XX, mais especificamente na década de setenta, era publicada a célebre obra Acesso à Justiça[2], primeiro volume – correspondente ao relatório e introdução geral – dos estudos realizados no denominado Projeto de Florença. Ali já se observava que a justiça social, tal como almejada pela sociedade moderna, tinha como pressuposto o efetivo acesso. Evidenciava-se a dimensão social do processo, apontando-se os obstáculos a serem transpostos, assim como as soluções para os problemas identificados, através das famosas ondas renovatórias.
Desde então, a questão evoluiu. Novos impedimentos surgiram - ou foram identificados – e, consequentemente, foram revisitados os institutos colocados como instrumentos voltados à superação daqueles estorvos que dificultam ou impedem o efetivo acesso à justiça. Os textos do próprio Cappelletti podem exemplificar. Com efeito, no livro supramencionado, escrito em coautoria com Bryant Garth, a primeira onda renovatória refere-se à 'assistência judiciária'[3] aos pobres. Já na década de noventa, encontramos referência do autor à 'assistência jurídica' gratuita[4], termo mais amplo, que vai além do patrocínio em uma ação perante o Poder Judiciário.
No Brasil, a questão envolve os estudos acerca do conceito de necessitado, destinatário dos serviços prestados pela Defensoria Pública, instituição nacionalizada com o advento da Constituição Federal de 1988 e responsável pela efetivação do direito fundamental à assistência jurídica gratuita, corolário do princípio do acesso à justiça, segundo o modelo de pessoal assalariado (salaried staff model) adotado no país (conforme o artigo 134 da CF/88)[5].
A experiência vivenciada por mais de três décadas, desde a constitucionalização institucional, evidenciou que o conceito de necessitado, no início fortemente atrelado à carência econômica, também mereceu ser revisitado, o que ficou a cargo da doutrina e da jurisprudência, em razão de tratar-se de conceito jurídico aberto, que não encontra definição precisa na norma escrita. Foi feliz o constituinte, neste ponto, ao permitir que o a expressão acompanhe as mudanças sociais, cada vez mais céleres e abruptas, sendo constantemente atualizado para atender às demandas de um país periférico, de modernidade tardia, onde o Estado Social (Democrático) de Direito ainda não atingiu os patamares minimamente desejáveis[6].
Não demorou até se perceber que ao lado dos necessitados tradicionais, que eram – e ainda são – os carentes econômicos, acrescentam-se outros, identificados, já na década de noventa, pela professora Ada Pellegrine Grinover, ao referir-se aos carentes de recursos jurídicos, fazendo referência à Mauro Cappelleti, quando se refere aos carentes organizacionais, pessoas que apresentam uma particular vulnerabilidade em face das relações socio-jurídicas existentes na sociedade contemporânea[7]. Não é difícil notar que a 'insuficiência de recursos' - expressão usada no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal para caracterizar aquele que faz jus à assistência jurídica gratuita – não se resume aos recursos financeiros, senão seja gênero do qual a última é espécie.
Mais modernamente, aponta-se a íntima relação entre o conceito de necessitado e a vulnerabilidade do indivíduo[8]. Sendo a vulnerabilidade decorrência de um fato ou contingência social, sua identificação ocorre diante do caso concreto, mediante a análise dos fatores determinantes da vulnerabilidade[9], quem podem representar sério obstáculo ao acesso à justiça, quando, então, estará configurada a necessidade para fins de assistência jurídica gratuita[10].
A vulnerabilidade digital, também denominada tecnológica[11], evidenciou-se durante a pandemia causada pela disseminação do COVID-19. No Brasil, o governo federal, ao estabelecer benefício assistencial destinado às pessoas que tiveram sua renda comprometida no período e se enquadrem nos demais critérios econômicos estabelecidos, vinculou o recebimento à necessidade do beneficiário possuir aparelho celular e endereço de e-mail, baixar aplicativo do programa e receber mensagem via SMS (serviço de mensagens curtas) para acioná-lo, o que gerou graves empecilhos de acesso ao direito por parte de grupos vulneráveis e levou a Defensoria Pública a ajuizar Ação Civil Pública visando superar tais exigências.
Mesmo antes da dispersão vírus, a questão já era abordada, conforme transcreve-se a seguir:
Mais modernamente, tem-se identificado novas espécies, a exemplo vulnerabilidade digital, que engloba tanto o modo analógico (off-line) – a exemplo da coleta de dados em estabelecimentos comerciais – como o modo digital (on-line ou cibervulnerabilidade) – quando, por exemplo, há coleta de dados através do uso de smartphones. A vulnerabilidade digital tem sido objeto de debate entre defensores públicos de todo o país através de grupo de aplicativo de comunicação (WhatsApp). Em diálogo ali estabelecido, os defensores públicos Roger Feichas e Bheron Rocha observaram que este possivelmente será o novo desafio da Defensoria Pública, principalmente no que diz respeito aos dados sensíveis previstos na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018)[12].
Enquanto para muitos de nós entrar em ambientes virtuais se tornou parte da rotina, o período de isolamento fez também mais visível a vulnerabilidade digital. No tocante ao acesso à justiça, outro exemplo que pode ser citado ocorreu em caso envolvendo indígenas da Laranjeira Ñanderu, que, por não compreenderem e não conseguirem acompanhar a realização de julgamento em ambiente eletrônico, solicitaram que fosse assegurado o direito de verem reunidos, fisicamente, os Desembargadores Federais em Plenário, permitindo que suas lideranças pudessem assistir ao julgamento, na cidade de São Paulo, o que levou a Defensoria Pública a intervir nos autos, na qualidade de custos vulnerabilis, sendo o pedido (de intervenção e para a suspensão da audiência) acolhido pelo Tribunal Regional Federal da Terceira Região (processo n. 5029327-50.2018.4.03.0000).
Como fica cada vez mais claro, a tecnologia gera uma nova categoria de vulneráveis e impacta no acesso à justiça. Os obstáculos identificados no século XX, assim com as ondas de superação, já não são mais os mesmos[13]. A velocidade com que as mudanças ocorrem jamais foram experimentadas – o que nos permite falar, até mesmo, em uma espécie de vulnerabilidade líquida, parafraseando Zygmunt Balman[14] - e reforçam a ideia de que a análise deve ser realizada a partir de cada caso posto, levando em conta fatores econômicos, socais, culturais, territoriais, transitórios, de pertencimento a grupos minoritários etc. O sistema de justiça não parece estar preparado para enfrentar este desafio pós-moderno. Medidas devem ser adotadas de forma imediata, o que demandará tempo (por mais contraditório que isto possa parecer) e aportes financeiros, ambos escassos no atual cenário.
[1] Edilson Santana Gonçalves Filho - Pesquisador, escritor e professor convidado de cursos de pós-graduação e preparatórios para carreiras jurídicas. Defensor Público Federal.
[2] CAPPELLETI, Mauro: GARTH, Brian. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Grace. Porto Alegre: Sérgio Fabbri, 1988.
[3] É isto que consta na tradução brasileira: CAPPELLETI, Mauro: GARTH, Brian. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Grace. Porto Alegre: Sérgio Fabbri, 1988. p. 31.
[4] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 84.
[5] Sobre os modelos de assistência jurídica ver: ALVES, Cleber Francisco Alves. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, França e Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[6] Neste sentido, constatando que o Brasil é um país de modernidade tardia: SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais entre proibição de retrocesso e avanço do poder judiciário? Contributo para uma discussão. In NETTO, Luísa Cristina Pinto: BITENCOURT NETO, Eurico (Coord.) Direito administrativo e direitos fundamentais: diálogos necessários. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 175-214.
[7] GRINOVER, Ada Pellegrini. Acesso à justiça e o Código de Defesa do Consumidor. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 116-117.
[8] Por todos, ver: GONÇALVES FILHO, Edilson: MAIA, Maurílio Casas: ROCHA, Jorge Bheron. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI, 2020.
[9] O modelo de fatores determinantes de vulnerabilidade foi melhor desenvolvido em: GONÇALVES FILHO, Edilson. Defensoria Pública e a tutela coletiva dos direitos: teoria e prática. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 187
[10][10] Buscando catalogar os diversos tipos de vulnerabilidade: ESTEVES, Diogo: SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da defensoria pública. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 303-. No nosso entender, trata-se de enumeração não exaustiva.
[11] Esta última expressão foi usada, dentre outros, por Fernanda Tartuce, em transmissão realizada via Instagram, disponível nas publicações deste autor naquela plataforma.
[12] GONÇALVES FILHO, Edilson. Defensoria Pública e a tutela coletiva dos direitos: teoria e prática. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 184.
[13] Neste aspecto, é digno de nota o projeto de Global Access to Justice, que busca atualizar os estudos sobre o acesso à justiça realizados pelo Projeto de Florença, em escala mundial.
[14] BAUMAN, Zygmunt. Plínio Dentzien (trad.). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FILHO, Edilson Santana Gonçalves Filho. ACESSO À JUSTIÇA É IMPACTADO PELA VULNERABILIDADE DIGITAL. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1480, 07 de Março de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/acesso-a-justica-e-impactado-pela-vulnerabilidade-digital.html