Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, processo e formalismo
José Maria Tesheiner1Comentamos, neste artigo, o livro de Carlos Alberto de Oliveira, intitulado 'Do formalismo no processo civil'2, tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo, em dezembro de 1996, aprovada com a nota máxima com louvor, em banca constituída pelos professores Cândido Rangel Dinamarco, Egas Moniz de Aragão, José Rogério Cruz e Tucci, Humberto Theodoro Júnior e Carlos Alberto Bittar.Da equivocidade do conceito de forma, 'um dos mais maleáveis da história das idéias', no dizer do Autor (p. 2), resulta uma dificuldade inicial, qual seja, a de determinar o objeto da obra. Contornamo-la, examinando os temas nela tratados, ignorando metodicamente as referências ao formalismo e às formas em sentido amplo ou restrito.De que assuntos trata o Autor? Do processo civil em geral: sua história, relações com a Constituição, Direito Comparado, seus valores e normas. Em suma, expõe o Autor suas concepções sobre o ser e o dever ser do processo. Destacamos algumas de suas idéias:1. Sobre a questão axiológicaA estrutura do processo civil depende dos valores adotados. Não se trata de uma simples adaptação técnica do instrumento processual a um objetivo determinado, mas especialmente de uma escolha de natureza política, ligado ao objetivo da própria administração judicial (p. 74). Alinham-se, entre os valores mais importantes para o processo, a justiça, a paz social, a segurança e a efetividade (p. 65).O valor justiça relaciona-se intimamente com a atuação concreta do direito material, que é a finalidade jurídica do processo. Servindo o processo para a realização do direito material, não pode a lei processual estabelecer regulação que, por motivos meramente processuais, ponha em perigo, com o risco até de eliminá-la, a igualdade jurídica assegurada na norma material. Segue-se, daí, não se poder conceder espaço, no processo, a um poder incondicional do órgão judicial, como se este pudesse ser o 'senhor do processo', autorizado a estabelecer a seu bel-prazer as regras processuais a serem aplicadas no caso concreto. Além dos inconvenientes ligados ao exercício arbitrário do poder, atitude dessa ordem poderia conduzir à desigual realização do direito material (p. 66).O valor segurança reclama respeito ao direito objetivo como um todo, matéria que concerne aos escopos políticos do processo. Atendem a esse valor o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, a ação direta de inconstitucionalidade e o instituto da uniformização de jurisprudência. Em tais hipóteses, embora em jogo o direito da parte, subjaz no fundo o interesse estatal em diminuir as possibilidades de erros e contradições, incrementando, assim, a confiança do cidadão na autoridade do Estado (p. 67).O valor paz social leva a que se tente eliminar com presteza o conflito, mediante o emprego de meios idôneos (p. 67). Além de poder do Estado, a jurisdição vem assumindo, nos tempos recentes, a característica de serviço público. Não se trata de 'consumir' a justiça, visão amoral e mercantilista, mas de distribuí-la adequadamente (p. 69).O valor efetividade justifica o inaudito elastecimento da tutela cautelar em nossa época, assim como a concepção de remédios jurisdicionais de índole provisória, autônomos ou não, com caráter antecipatório e satisfativo do pretendido direito (p. 70).2. Sobre os princípios processuaisRepresentam o papel de 'direitos fundamentais' das partes em face do juiz, do adversário e de terceiros (p. 77).O princípio dispositivo decorre da imparcialidade do julgador, que impõe a alheação e indiferença do órgão julgador ao objeto da lide, donde a provável origem da regra nemo judex in re sua. Desse primogênito e primordial princípio decorrem, como corolários, o direito exclusivo da parte de iniciar a ação e determinar a sua matéria (nemo judex sine actore 3: ne eat judex ultra petita et allegata a partibus4: da minhi factum, dabo tibi jus5. Ao mesmo sistema lógico pertence a proposição sententia debet esse conformis libello6 (p. 77-8).O princípio do direito de defesa (audiatur et altera pars7) é o núcleo inicial da garantia do contraditório (p. 78).O princípio do juiz natural é moderno: garante a independência do juiz também perante o Executivo (p. 79).O princípio da publicidade, abandonado, no século XII, pelo direito canônico, desgraçadamente seguido nos juízos seculares, voltou a estabelecer-se plenamente depois da Revolução Francesa, tendo a opinião pública se voltado contra os juízos penais secretos e inquisitoriais do regime anterior, tema que durante mais de cinqüenta anos ocupou o centro da cena nos debates continentais sobre a organização judicial (p. 79-80).O princípio da submissão do juiz à lei visa a circunscrever e limitar a prepotência estatal com a adoção da idéia de que o juiz não se deve reportar a cânones de valoração por ele criados arbitrariamente para o caso submetido a sua decisão, mas sim a modelos pré-constituídos (p. 80-1).Também o princípio do livre convencimento tem por desiderato circunscrever o arbítrio judicial, vinculando-se à necessidade de motivação dos pronunciamentos judiciais (p. 81).São técnicas e não princípios a oralidade, imediação, identidade física do juiz, concentração, prova racional, impulso de ofício, tratação e admissão de processos especiais (p. 82).3. Sobre as relações do processo com o Direito ConstitucionalO Autor adota a distinção, hoje geralmente aceita, entre os direitos do homem consagrados na Constituição e as 'garantias' referentes a esses direitos, consistentes nos meios procedimentais dispostos para sua proteção, com o fito de outorgar-lhes efetiva existência (p. 84, nota 62).Entre as garantias constitucionais avulta a do devido processo legal, que praticamente abrange as demais de natureza processual (p. 85).A garantia do juiz natural impede a alteração da competência do órgão judicial ou a criação de tribunal especial, após a existência do fato gerador do processo, colocando em risco os direitos e garantias das partes, tanto no plano processual quanto material (p. 87-8).A garantia da motivação das decisões judiciais compreende não só o enunciado das escolhas do juiz em relação à individuação das normas aplicáveis ao caso concreto e às correspondentes conseqüências jurídicas, como os nexos de implicação e coerência entre esses enunciados, com vistas a possibilitar o controle do pronunciamento judicial pelas partes e pela sociedade (p. 88-9).A garantia do acesso à jurisdição leva o Autor a examinar, no Direito comparado, os vários sistemas adotados com vistas ao julgamento dos litígios em que contendam Estado e particular. Conclui observando que o exame do sistema jurídico brasileiro demonstra: a) a ausência de qualquer obstáculo ao exame do excesso de poder pelo Judiciário: b) inexistir óbice de qualquer espécie para o emprego de ação constitutiva positiva e também para a desconstituição dos atos da administração pelo Poder Judiciário: c) a ilimitada possibilidade de revisão judicial do ato praticado pela administração, seja qual for a autoridade responsável. Significa isso não só a maior amplitude do processo civil brasileiro em relação a outros sistemas, mas também que o cidadão brasileiro está, pelo menos teoricamente, mais apto a se defender contra os abusos do poder estatal emanados do Legislativo ou do Executivo. (p. 103).Anota o Autor que o atual Código de Processo Civil, com seu caráter individualístico e liberal, inspirado em modelos legislativos e ensinamentos doutrinários da Europa continental, encontra-se em aberta contradição com as linhas mestras do sistema constitucional e as tradições do direito brasileiro, o que se evidencia na exclusiva preocupação com a regulação de litígios puramente individuais, sem qualquer referência às demandas de cunho social e coletivas, a se refletir na extensão da legitimidade, da coisa julgada, nos poderes do juiz e de modo geral em toda a conformação do próprio Código (p. 106-7).4. Sobre o procedimentoO procedimento é, no direito processual, o leito natural onde vão desaguar os valores e princípios dominantes em determinada sociedade (p. 108). O conceito de 'procedimento' implica certamente a noção de uma seqüência legal de atos a ser observada pelo juiz e pelas partes. Mas não é só isso. Compreende também as faculdades e deveres das partes e do tribunal, em mútua e recíproca relação (p. 111). Essa (digamos assim) 'ampliação' do conceito, leva o Autor a desprezar a idéia do processo como relação jurídica. Em tom crítico, diz:'Mesmo no âmbito dos defensores do conceito da relação jurídica processual, desde muito se reconhece constituir-se ela de diversas posições jurídicas subjetivas aí concentradas (poderes, faculdades, ônus, sujeições), representando o verdadeiro tecido interno do processo. Tal admissão torna, no fundo, apenas nominal a adesão dessa corrente ao conceito de relação jurídica processual, diante da manifesta insuficiência desta concepção em explicar o fator temporal, com a conseqüente ausência de justificativa para a dinamicidade ínsita ao processo.' (p. 112).Com relação à organização do procedimento, diz o Autor, vigora o princípio fundamental da adequação, também chamado da adaptabilidade, que se apresenta sob os aspectos subjetivo, objetivo e teleológico (p. 116). Do ponto de vista subjetivo, podem, por exemplo, variar as normas conforme se tratar de capaz ou incapaz, de pessoa física ou jurídica, privada ou pública, ou de sujeito sem personalidade (p. 117). No concernente ao aspecto objetivo, a disponibilidade sobre o objeto repercute gradativamente nos direitos e deveres processuais das partes, nos efeitos da aquiescência, na natureza da preclusão e da coisa julgada, nos vícios do ato processual, etc. (p. 117). Feição relevante adquire a adequação teleológica a interferir tanto na adaptação do procedimento às diversas funções da jurisdição quanto nos ritos internos a cada um dos processos. A existência de regras especiais para determinados procedimentos, em função da relação jurídica substancial submetida à apreciação do órgão jurisdicional, revela exatamente a necessidade de adequação do processo ao direito material (p. 119).Ao estudar o procedimento, disserta o Autor sobre as técnicas eventualmente utilizadas em sua conformação: a da oralidade, imediação e identidade física do juiz (p. 126-7): a do impulso processual da parte, do juiz ou de ambos: a das nulidades e da instrumentalidade das formas: a da preclusão e da perempção (p. 129): a do duplo grau de jurisdição (p. 130), etc.O Autor refere-se, de passagem, ao que se pode chamar, um tanto paradoxalmente, de imediação virtual, ao qualificar, como grave 'a possibilidade, recentemente implantada no Estado de São Paulo, de os juizes criminais ‘ouvirem’ réus presos por meio de computador: a nosso parecer, o simples ‘ouvir’ (ou ler na tela da máquina a resposta dada) acaba com a imediação porque não permite ao magistrado sentir a entonação da voz do depoente e, especialmente, apreender sua linguagem corporal, muitas vezes mais importante e autêntica do que a própria linguagem oral.' (p. 128). A fundamentação exposta deixa entrever que o Autor admitiria a inquirição de partes e testemunhas por videoconferência, com transmissão de som e imagem em tempo real.5. Sobre os sujeitos do processoEm razão da íntima e inafastável vinculação entre a atividade das partes e a do juiz, seguidas vezes a abordagem de uma implica a da outra (p. 133).Demonstrando notável conhecimento de história do processo e de Direito comparado, o autor examina, no Capítulo III, entre outras, as seguintes questões: o princípio da demanda (nemo iudex sine actore3), a inalterabilidade do pedido e da causa de pedir, a regra da eventualidade, as preclusões, os poderes do juiz na investigação dos fatos da causa, o fato e o direito supervenientes, a valoração judicial das provas, a oposição entre verdade material e formal (não se trata de alcançar certeza sobre as alegações de fato, em prol do mito da verdade material, travestida de finalidade do processo). Sustenta a necessidade de haver, entre juiz e partes, não confronto, mas colaboração, tanto na pesquisa dos fatos quanto na valorização jurídica da causa.'Colaboração essa, acentue-se, vivificada por permanente diálogo, com a comunicação das idéias subministradas por cada um deles: juízos históricos e valorizações jurídicas capazes de ser empregados convenientemente na decisão. Semelhante cooperação, ressalte-se, mais ainda se justifica pela complexidade da vida atual. Entendimento contrário padeceria de vício dogmático e positivista, mormente porque a integração da regula iuris, no mundo moderno, só pode nascer de uma compreensão integrada entre o sujeito e a norma, geralmente não unívoca, com forte carga de subjetividade.'Intitula-se 'formalismo e justiça' o último capítulo do livro. Já não podemos mais continuar contornando o problema suscitado pelo conceito de formalismo. Cumpre enfrentá-lo. Tendo-se já apontado os temas tratados no curso da obra, constata-se que formalismo, para o Autor, é, praticamente, o próprio processo: a velha idéia de que processo é forma. Melhor, porém, que se dê a palavra ao próprio Autor:6. Sobre a forma em sentido estrito'A forma em sentido estrito é o invólucro do ato procesual, a maneira como deve este se exteriorizar: cuida-se portanto do conjunto de signos pelos quais a vontade se manifesta e dos requisitos a serem observados na sua celebração.A doutrina, além disso, distingue a forma em sentido estrito, acima definida, da forma em sentido amplo, incluindo nesta última acepção, além do meio de expressão (da língua), também as condições de lugar e tempo em que se leva a efeito o ato processual.Todavia, a rigor tais condições não são intrínsecas ao ato, logo são circunstâncias, que, por delimitarem os poderes dos sujeitos processuais e organizarem o processo, integram o formalismo processual, mas não a forma em sentido estrito. Essas circunstâncias, consideradas como ato, fato ou prazo previsto por uma norma geral a fim de condicionar o exercício das funcões de um órgão ou de um agente.' (p. 5).7. Sobre a forma em sentido amplo'O formalismo, ou forma em sentido amplo (...) mostra-se mais abrangente e mesmo indispensável, a implicar a totalidade formal do processo, compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente, a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais. A forma em sentido amplo investe-se, assim, da tarefa de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento.' (p. 7).Observa o Autor que, nesse sentido, o conceito de 'forma' é diferente daquele empregado no sentido aristotélico-escolástico (p. 7, nota 13).Seja como for, o certo é que não se pode falar em forma sem evocar a idéia de substância. São palavras correlatas. A idéia mais simples decorre da observação de que com o mesmo barro (substância), podem-se fazer vasos de formas muito diferentes.Põe-se, então, uma pergunta fundamental, não respondida pelo Autor: se o processo é forma, qual a sua substância? Deixemos de lado a idéia, ultrapassada, de que o processo seja forma e substância, o direito material. A substância do processo é (a nosso ver) a relação jurídica processual: na sua expressão mais simples, a relação autor-juiz-réu. Essa substância, essa relação assume, no tempo e no espaço, uma imensa variedade de formas, em decorrência da diversidade de disciplina jurídica que lhe imprime cada legislação(8). Fica, assim, bem determinado o objeto dos estudos do Autor:'não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais' (p. 7).Notas1Livre-Docente e Doutor em Direito pela UFRGS, Desembargador aposentado, Professor Orientador no Curso de Mestrado da PUC-RS.2São Paulo, Saraiva, 19973Ninguém é juiz sem um autor.4Não vá o juiz além dos pedidos e alegações das partes.5Dá-me o fato, dar-te-ei o direito6A sentença deve ser conforme o libelo (pedido).7Ouça-se também a outra parte.8 Referida aos atos processuais (forma em sentido estrito), substância é o ato processual. Referida ao processo (forma em sentido amplo), substância é a relação jurídica processual, o que inclui os sujeitos do processo, tema tratado pelo Autor no capítulo III.Em 28/12/99
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, processo e formalismo. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 0, nº 6, 30 de Junho de 2000. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/carlos-alberto-alvaro-de-oliveira-processo-e-formalismo.html