15.05.01 | José Maria Rosa Tesheiner

Coisa julgada inconstitucional

Realizou-se, em Porto Alegre, nos dias 4 a 6 de maio deste ano de 2001, a 'Jornada Nacional Processual Civil Prof. Galeno Lacerda', com cerca de 1.200 inscritos, que lotaram o Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRGS e assistiram aos painéis e conferências em telões dispostos em outras salas.

O Professor Humberto Theodoro Júnior proferiu conferência intitulada 'A coisa julgada inconstitucional'. Podemos sintetizá-la: tão grave quanto a lei inconstitucional é a sentença inconstitucional. A Constituição, pilar de nosso sistema jurídico, assim como não tolera a inconstitucionalidade de lei, não pode tolerar a inconstitucionalidade de sentença, ainda que transita em julgado, pois tal importaria em atribuir-se ao Juiz poder igual ou superior ao da própria Constituição. A sentença inconstitucional é inexistente ou nula, o que pode ser declarado a qualquer tempo, independentemente de ação rescisória e, sobretudo, sem subordinação ao exíguo prazo de 2 anos para ela previsto. Não se pode objetar, dizendo-se que a coisa julgada é protegida pela própria Constituição, porque não há definição constitucional de coisa julgada. Trata-se de instituto inteiramente regulado pela legislação infraconstitucional. Além disso, a própria Constituição admite ação rescisória, mostrando assim a relatividade da coisa julgada.

A tese é errada, quanto ao direito posto e inconveniente :de jure condendo. Não se trata de julgar seu Autor, jurista nacionalmente consagrado, mas de refutar objetivamente sua proposição.

Não é por ser nova, que se há de rejeitar a tese. Mas tampouco por ser nova se há de aceitá-la. (Não nos esqueçamos de que o direito fundado na vontade suprema de Hitler foi entusiasticamente recebido na Alemanha como 'renovação do direito').

A sentença inconstitucional não é inexistente, tampouco nula. Se admitirmos que é inexistente, estaremos a admitir que, a pretexto de inconstitucionalidade, qualquer pessoa do povo se recuse a respeitá-la. Não é verdade que as nulidades :ipso jure resistam ao trânsito em julgado da sentença e ao decurso do prazo para a ação rescisória. Isso ocorre num único caso, que é o da sentença proferida à revelia, em processo de conhecimento em que o réu não foi validamente citado (CPC, art. 741, I). Se admitirmos que é nula, estaremos a admitir que, a pretexto de inconstitucionalidade, qualquer juiz ignore a coisa julgada, ainda que decorrente de decisão proferida por tribunal superior. É certo que a Constituição não define a coisa julgada, mas isso não significa que se trate de expressão vazia, que se possa encher com qualquer conteúdo. Ainda que se discuta se a coisa julgada é qualidade ou efeito da sentença, se são imutáveis seus efeitos ou apenas seu elemento declaratório, quais seus limites objetivos e subjetivos, coisa julgada tem, na Constituição, um conteúdo mínimo, decorrente de mais de 2.000 anos de História do Direito. Sobretudo não é verdade que coisa julgada, na Constituição, signifique apenas irrecorribilidade da sentença, a chamada coisa julgada formal, que, aliás, não é por ela assegurada. É certo que a Constituição prevê a ação rescisória, mas isso não autoriza o intérprete a criar outras limitações à coisa julgada e, muito menos, a dispensar a ação rescisória prevista na Constituição.

Theodoro Júnior parte de um pressuposto não declarado, que é falso, qual seja o de que a inconstitucionalidade exista objetivamente, como um vício da sentença. Na verdade, a inconstitucionalidade, assim da sentença como da lei, só existe objetivamente depois de declarada. Antes, o que existe é a alegação de inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade não é algo evidente, que qualquer um possa ver. Ela é construída pela intérprete e se vincula à sua visão do mundo do Direito. É por isso que não se declara a inconstitucionalidade de uma lei sem votos vencidos, às vezes numerosos.

O problema da sentença inconstitucional não é substancialmente diverso do problema da sentença ilegal. Aliás, o vício da ilegalidade é também um vício de inconstitucionalidade, dada a consagração constitucional do princípio da legalidade.

Imaginemos vitoriosa a tese de Theodoro Júnior. Depois de todos os recursos ordinários e extraordinários, que já não são poucos, depois das ações autônomas de impugnação de sentenças, previstas na lei ou consagradas pela doutrina, teríamos ainda uma ação de desconstituição de sentença por inconstitucionalidade, perpétua, porque sem prazo. A parte vencida sempre veria uma inconstitucionalidade na sentença que lhe foi desfavorável e não faltariam juizes que, a pretexto de inconstitucionalidade, desprezariam sentenças proferidas por seus colegas ou mesmo pelos tribunais superiores.

Por fim, se o temor é o de que a inviolabilidade da coisa julgada situe o juiz acima da Constituição, será inadequado o remédio proposto, porque será outro juiz que fará a Constituição dizer o que ele quer. Começará dizendo que a Constituição não tutela a coisa julgada...

Meu caro Humberto! A Constituição é fundamento da ordem jurídica. Não é instrumento para a destruição dessa mesma ordem jurídica.


TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Coisa julgada inconstitucional. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 1, nº 35, 15 de Mai de 2001. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/coisa-julgada-inconstitucional.html
Compartilhe esta notícia:
Coisa julgada inconstitucional - Realizou-se, em Porto Alegre, nos dias 4 a 6 de maio deste ano de 2001, a 'Jornada Nacional Processual Civil Prof....

Editores: 
José Maria Tesheiner
(Prof. Dir. Proc. Civil PUC-RS Aposentado)

Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha

Advogada e Professora Universitária

ACESSE NOSSAS REDES

Excelência em conteúdo jurídico desde o ano de 2000 | ISSN 1981-1578