Crime sem castigo (descriminalização de fato)
Às vezes não é fácil absolver o réu, mas absolver é preciso.
No caso, foi o réu processado por uso de documento falso. Era um brasileiro, querendo emigrar para os Estados Unidos. Residente em Ipatinga, Minas Gerais, desempregado há mais de seis meses, fez uso de suas parcas economias para, como turista, ingressar em solo americano e lá permanecer, clandestinamente, exercendo alguma atividade laborativa. Sua fotografia foi aposta no lugar de outra, com o objetivo de iludir as autoridades alfandegárias americanas. Não deu certo. Lá foi apanhado e recambiado para cá.
A sentença de 1o grau absolveu-o, com fundamento no art. 386, IV, do Código Penal, tendo em vista que o agente, provavelmente desconhecendo as elementares exigências e proibições do ordenamento jurídico, utilizou o documento falso não para obter lucro ou furtar-se à responsabilização penal em solo pátrio, mas tão-somente para tentar se livrar da marginalidade social e econômica a que estava condenado no Brasil e tentar encontrar condições de vida mais satisfatórias em outro país, tendo sido suficientemente punido com o constrangimento e humilhação sofridos quando da deportação dos EUA, sendo a conduta por ele praticada de pequena lesividade, não podendo ser vislumbrada a utilidade de uma ação penal em face de um simples imigrante frustrado.
Apelou o Ministério Público, dizendo inadmissível, no caso, a tese do erro de proibição, já que qualquer pessoa, seja qual for o seu grau de instrução, tem consciência de estar agindo errado ao apresentar às autoridades publicadas documento que contenha sua foto, mas expedido em nome de outra pessoa. Dificuldades econômicas, apresentadas como fator que tornou inexigível outra conduta do acusado, não são, por si sós, suficientes para configurar causa de exclusão de culpabilidade, não havendo que se falar, tampouco, em pequena lesividade da conduta praticada, tendo em vista que aquele que compra o documento falsificado contribui para a perpetração da falsificação, devendo-se, ademais, preservar a fé pública, que é o objeto jurídico tutelado no tipo em tela.
O Tribunal, porém, negou provimento ao apelo e confirmou a sentença, argumentando com a moderna tendência de redução da área de incidência do direito penal, que deve manter-se conectado com as razões de política criminal, sob pena de transmudar-se em instrumento de cunho apenas formal, em confronto com o princípio constitucional do devido processo legal substantivo. As normas penas incriminadoras são engendradas com o escopo de tutelar bens jurídicos, e não apenas como instrumento distanciado dos fatos sociais a que se propõem resguardar. Já não se fala tão-somente em culpabilidade, e sim na união desta com a prevenção, a dimensionar seu aspecto substancial, para configurar-se a responsabilidade penal. Invocou a tese conhecida na doutrina como :descriminalização de fato:
'Existe descriminalización de facto (...) cuando el sistema penal deja de accionar sin que formalmente haya perdido competencia para ello, es decir: desde el punto de vista técnico-jurídico queda en estos casos intacto el caráter de ilícito penal, eliminándose sólamente la aplicación efectiva de la pena'. :(TRF da 2ª Região, 4a Turma, Apelação 98.02.427555-1-RJ, Rogério Vieira de Carvalho, relator, j. 31.05.2000 (Revista dos Tribunais, São Paulo (787): 721-5, maio/2001).
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Crime sem castigo (descriminalização de fato). Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 1, nº 39, 15 de Julho de 2001. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/crime-sem-castigo-descriminalizacao-de-fato.html