Direito Constitucional e os Litígios Climáticos
Introdução
O texto da Constituição Federal de 1988, no seu art. 225, consagra um direito constitucional fundamental ao meio ambiente equilibrado, a ser tutelado no interesse das presentes e das futuras gerações, conforme reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais Superiores. Todavia, essa garantia constitucional, embora importante, nesta era de mudanças climáticas de causas antrópicas, demonstra ser insuficiente em virtude do aumento dos oceanos, das secas, das enchentes, das chuvas torrenciais que, além de gerarem danos ambientais, também causam danos sociais, econômicos e problemas diplomáticos. Ciclones chegam a atingir o território brasileiro, o que era impossível faz poucos anos. Neste cenário, o desmatamento e as queimadas na Amazônia, impulsionados pelo agronegócio irresponsável e pela comercialização ilegal de madeira, dão a dimensão da encruzilhada que está diante de nossa nação que não pode errar o caminho e frustrar as metas e os objetivos avençados na COP21.
Desse modo, para além dos poderes estatais, executivo e legislativo, que precisam enfrentar a emergência climática, o poder judiciário também está sendo desafiado por pleitos que estão chegando para a sua apreciação, notadamente, no egrégio Supremo Tribunal Federal que, na expressão de John Rawls, exerce razão pública em suas decisões. Não existe dúvida que os litígios climáticos julgados por Cortes Constitucionais no exterior apontam para a necessidade da constitucionalização deste debate e, muito provavelmente, para o reconhecimento do direito constitucional fundamental ao clima estável. A ecologização do direito ambiental, defendida nas pesquisas do professor José Rubens Morato Leite[1], por sinal, é essencial para o enfrentamento jurídico do atual estágio de aquecimento global demonstrado pelo relatório do IPCC divulgado este ano. O presente artigo consiste em uma breve análise do referido relatório e da necessária constitucionalização do direito das mudanças climáticas brasileiro.
- Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (2021)
O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), foi criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e pela Organização Meteorológica Mundial, em 1988, com o objetivo de fornecer aos formuladores de políticas avaliações científicas regulares sobre as mudanças do clima, suas implicações e possíveis riscos futuros, bem como para propor opções de adaptação e de mitigação. Atualmente, o IPCC possui 195 países-membros, entre eles o Brasil.
Por meio de suas avaliações, o IPCC determina o estado do conhecimento sobre as mudanças do clima, identifica onde há consenso na comunidade científica, e em que áreas mais pesquisas são necessárias. Os relatórios resultantes da avaliação do IPCC devem ser neutros, relevantes para a política, e não devem ser prescritivos. Além disso, as avaliações constituem insumos fundamentais para as negociações internacionais que visam o enfrentamento das mudanças do clima.
Os relatórios de avaliação do IPCC consistem nas contribuições de três grupos de trabalho e em um relatório de síntese que integra essas contribuições e quaisquer relatórios especiais preparados durante o mesmo ciclo de avaliação. Os relatórios especiais do IPCC tratam de questões específicas acordadas entre os países membros, e os relatórios de metodologia fornecem diretrizes práticas para a preparação de inventários de gases de efeito-estufa.[2]
Pois bem, recentemente, o IPCC divulgou um novo relatório (IPCC WG1-AR6) concluindo que o mundo não pode evitar alguns dos impactos devastadores das mudanças climáticas. A boa notícia é que ainda existe um pequeno espaço e um escasso tempo para se evitar ao aumento da crise ambiental que pode ter, com o seu aprofundamento, efeitos catastróficos para a humanidade e para os demais seres vivos. [3]
O relatório apresentado é abrangente, pontual, pois embasado na análise criteriosa e científica de mais de 14 mil estudos. Sem qualquer dúvida é o resumo mais claro e criterioso sobre a ciência das mudanças do clima elaborado até o momento. Os especialistas fazem um inventário do clima, desde um passado remoto até os dias atuais. Fica nítido no levantamento como as ações antrópicas podem afetar o clima no presente e, especialmente, no futuro, através de decisões, comissivas e omissivas, dos seres humanos. É claro que estas decisões podem ser positivas para as presentes e futuras gerações na medida que têm o potencial de reduzir as emissões de dióxido de carbono e outros gases que retêm o calor, mas também negativas quando influenciadas por vieses[4], pelas polarizações[5], por noises[6], pela ganância, e pelo raciocínio utilitário e não solidário.[7]
O relatório apresenta cinco conclusões básicas que precisam ser mencionadas de modo mais detalhado:
A primeira delas é que os seres humanos contribuíram para o aquecimento do planeta. O relatório, importante grifar, é a sexta avaliação realizada pelo grupo convocado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, ao contrário dos estudos anteriores, este elimina toda e qualquer dúvida sobre quem ou o que é responsável pelo aquecimento global. Resta consolidado no texto que a influência humana aqueceu a atmosfera, o oceano e a terra. Os aumentos de dióxido de carbono verificados na atmosfera, desde 1750, estão diretamente ligados à atividade humana, em grande parte devido à queima de carvão, do petróleo e de outros combustíveis fósseis. Esse fenômeno, não é demais referir, acelerou no mesmo passo que a industrialização mundial. O volume das emissões, portanto, tem aumentado exponencialmente nos últimos anos, e a Terra ficado cada vez mais quente. Os impactos negativos decorrentes desta triste realidade estão atingindo todas as regiões do mundo sem qualquer exceção.
A segunda conclusão é que a ciência climática está sendo desenvolvida com novas tecnologias, tornando-se melhor e, notadamente, mais precisa. São evidentes os avanços das pesquisas. Estas são uníssonas no sentido de que os seres humanos causam o agravamento do aquecimento global. Existe um melhor e maior detalhamento neste relatório se comparado, por exemplo, com o que foi divulgado oito anos atrás. Alguns pontos podem ser facilmente observados, como o avanço na sofisticação tecnológica das medições das temperaturas. A modernização proporcionou, outrossim, um upgrade na qualidade dos instrumentos de medição, o que permite a redução de antigas incertezas sobre o que está de fato acontecendo. Essa nova era na tecnologia do clima mapeou partes do globo que historicamente eram de difícil acesso ou até inacessíveis para a coleta de dados climáticos.
Os modelos computacionais que simulam o clima — e seus extremos —também melhoraram muito, e existem softwares cada vez mais precisos para executar referidas simulações rapidamente, o que viabiliza a repetição das mesmas. Repetição que, como sabido e consabido, em ciência é fundamental. Esses avanços tecnológicos permitem, nessa toada, o aumento da capacidade de conexão de dados aos modelos existentes. Essa realidade, como consequência, gera na comunidade científica maior confiança nos modelos computacionais que fazem a previsão do clima no futuro. Na última década, de acordo com o relatório, houve grandes avanços nas pesquisas de atribuição. Esse tipo de pesquisa visa a examinar possíveis nexos de causalidade entre as mudanças climáticas e os eventos extremos específicos como as ondas de calor e as chuvas fortes. As equipes de pesquisa podem agora analisar quase que instantaneamente um evento e determinar se o aquecimento global o causou ou quais as probabilidades de tê-lo causado. Isso é fantástico. Essa nova realidade aumenta a credibilidade das constatações científicas sobre a natureza das mudanças climáticas e a sua extensão.
A terceira conclusão é que a humanidade está vinculada inexoravelmente a um período futuro de 30 anos de agravamento dos impactos climáticos negativos do aquecimento global, não importa o que nossa civilização venha a fazer. É fato cediço que o mundo aqueceu cerca de 1,1° Celsius desde o século 19. No relatório não existem tergiversações, mas a conclusão de que os seres humanos colocaram tanto dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa na atmosfera que o aquecimento do planeta continuará pelo menos até meados do século, mesmo que as nações tomem medidas imediatas para reduzir drasticamente as emissões. Isso significa que as atuais secas extremas, ondas de calor severas, incêndios, chuvas e inundações catastróficas continuarão a piorar nos próximos 30 anos. Outros impactos, lamentavelmente, continuarão por muito mais tempo. As camadas de gelo situadas na Groenlândia e na Antártida Ocidental continuarão a derreter pelo menos até o final do século. O nível do mar continuará a subir por pelo menos dois mil anos.
A quarta constatação é que as mudanças climáticas estão acontecendo rapidamente se considerado o longo prazo. De acordo com o relatório algumas das mudanças atuais são incomparavelmente maiores se comparadas com períodos de tempo anteriores que não são apenas de alguns séculos, mas de milênios. A concentração de dióxido de carbono na atmosfera, apenas a título de exemplo, é superior a qualquer outro momento se considerados os últimos dois milhões de anos. A extensão do gelo marinho no Ártico ao final do verão, constatada nas últimas décadas, é a menor do que em qualquer outro momento nos últimos mil anos.
Por fim, a quinta constatação é que as mudanças estão acontecendo mais rapidamente agora do que em um passado muito recente. A taxa de elevação do nível do mar praticamente dobrou desde 2006. Cada uma das últimas quatro décadas tem sido sucessivamente mais quente do que a anterior. As ondas de calor em terra se tornaram significativamente mais quentes desde 1950 e as temperaturas nos oceanos estão duas vezes mais elevadas nas últimas quatro décadas. Esse fato acaba por gerar explosões de calor extremo, o que pode liquidar com a vida marinha em um futuro bem próximo.[8]
A boa notícia, se é que isso é possível, como já referido no início do texto, é que existe uma janela na qual os seres humanos podem alterar a trajetória do clima para um cenário bem mais positivo, solidário e sustentável.
O relatório apresenta cinco cenários para o futuro do clima, nestes os seres humanos tomam medidas variadas para reduzir as emissões que causam o aquecimento global. Em todos eles, o mundo atingirá 1,5° de aumento das temperaturas — esse é o mais ambicioso dos objetivos estabelecidos pelo Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas — até 2040.
Na maioria dos cenários discutidos no relatório, o aquecimento continuará muito além de 2040, até o restante do século. No cenário do pior dos casos, onde o mundo faz pouco para reduzir as emissões, as temperaturas em 2100 podem alcançar um aumento de 3° a 6° Celsius acima dos níveis pré-industriais. Isso teria consequências realmente catastróficas e cuja real extensão sequer pode ser prevista com exatidão.
O relatório, no entanto, mostra que cortes agressivos, rápidos e generalizados das emissões, a partir de agora, podem limitar o aquecimento até 2050. O cenário mais otimista, que significa chegar a emissões líquidas zero, pode até mesmo trazer o aquecimento para patamares ligeiramente inferiores aos 1,5° Celsius na segunda metade do século.[9] Aliás, essa é uma necessidade reforçada por duas obras de fôlego lançadas este ano, uma de autoria de Bill Gates, "How to Avoid a Climate Disaster", e outra de Cass Sunstein, "Averting Catastrophe: Decision Theory for Covid-19, Climate Change, and Potential Disasters of All Kinds".[10]
O relatório, em sendo analisado sob o ponto de vista jurídico, certamente terá reflexos práticos imediatos nos litígios climáticos em tramitação, e nos que serão ajuizados nos próximos anos, nos seguintes aspectos: a) facilitará a aplicação dos princípios da precaução e da prevenção pelos juízes, em virtude das evidências científicas pontuadas, em especial, as que constatam os riscos iminentes de catástrofes e de desastres nos próximos anos; b) torna tangível a verificação do nexo de causalidade jurídica nas demandas, deixando mais claras as relações de causa (emissões) e efeitos (danos) nos eventos climáticos extremos; c) torna não apenas possível, mas gera uma necessidade imediata do reconhecimento, por parte do Estado-juiz, de um direito fundamental e humano ao clima estável como já defendido, aliás, pelos juristas Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer no Supremo Tribunal Federal, na audiência do Fundo Clima em recente artigo. [11] Aliás, na referida audiência, o ministro Luís Roberto Barroso, com suas costumeiras elegância e sensibilidade jurídica, referiu que "o Brasil precisa de uma agenda efetiva de desenvolvimento de baixo carbono. Isto é a coisa certa a fazer pelo nosso país, pelos cidadãos e pelos nossos filhos".[12]
Em suma, embora trazendo dados alarmantes e sombrios, o relatório do IPCC, pelo realismo e seriedade, vai servir certamente de fundamento e norte nos processos de tomada de decisão, não apenas para os players que elaboram e executam políticas públicas relacionadas à governança climática, mas especialmente para os juízes nos litígios climáticos. Os julgadores, por certo, terão elementos científicos mais sólidos e detalhados para decidir e delimitar os fatos sobre os quais vão incidir as normas infraconstitucionais, constitucionais e os precedentes climáticos nas suas sentenças e votos.
- O Supremo Tribunal Federal e os litígios climáticos
Vivemos em uma geração acostumada a festejar a Carta Política de 1988 que, para além de possuir uma redação democrática, garantiu expressamente direitos constitucionais fundamentais multidimensionais e, ainda, pela riqueza de suas palavras, deixou o texto em aberto para que os hermeneutas, em uma perspectiva intergeracional, pudessem conferir-lhe apropriada interpretação e, até mesmo, ampliar o rol de direitos e garantias e não permitir, evidentemente, o retrocesso dos mesmos. No art. 102 inserto no Título IV, do Capítulo III, da Seção II, da CF, o Poder Constituinte prevê a estrutura e a competência constitucional do egrégio Supremo Tribunal Federal. Ao excelso pretório, portanto, é conferida, entre outras atribuições, a guarda da Constituição e o controle originário de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (inc. I, alínea “a”).
Neste contexto, parece evidente que caberá ao STF criar os parâmetros e as definições do direito das mudanças climáticas brasileiro. Historicamente, aliás, o STF tem suprido com qualidade, erudição e elegância, lacunas deixadas pelos Poderes Executivo e Legislativo que, não raras vezes, temem por desagradar setores da sociedade em temas polêmicos e, em última ratio, o seu próprio eleitorado, o que, igualmente, não deixa de ser compreensível no aspecto político. O aquecimento global e a sua regulação, por certo, é um destes temas sensíveis com os quais o STF já está literalmente convivendo.
No Brasil, por outro lado, o tema das mudanças climáticas ainda é tratado de forma tímida pela doutrina[13] e, de igual modo, os litígios climáticos ainda são incipientes. Contudo, há uma perspectiva sólida de aumento desse tipo de demanda, considerando que o governo federal vem se omitindo no cumprimento dos compromissos assumidos para manter a estabilidade do clima. Apenas a título de exemplo, entre outras, existem ações em trâmite no STF e uma, em particular, na Justiça Federal, de cunho eminentemente constitucional, que evidenciam pautas atreladas diretamente às mudanças climáticas.[14]
Nesse prisma, a ADI 6.446/DF, ajuizada pela Advocacia-Geral da União (AGU) perante o Supremo Tribunal Federal (STF)[15], postula a declaração de nulidade de dispositivos do Código Florestal (Lei 12.651/2012) e da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006). Seu objetivo é afastar interpretações que, segundo a AGU, esvaziam o conteúdo do direito de propriedade e afrontam a segurança jurídica. Contudo, a Procuradoria-Geral da República, além de várias entidades ambientalistas que atuam no caso como amicus curiae, contestam o objeto da ADI, sustentam que eventual declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos poderá ensejar retrocesso ambiental, inclusive no que tange às políticas de preservação florestal e das mudanças climáticas. Em acalentado parecer jurídico solicitado pelas organizações não governamentais que atuam como amicus curiae na referida ADI, os juristas Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer destacam:
A proteção do bioma da Mata Atlântica, nesse sentido, tem um papel fundamental para a integridade do sistema climático, de sorte que a discussão lançada na ADI 6.446/DF também diz respeito a caso de litigância climática e possível violação ao direito fundamental a um clima estável.[16]
Outro litígio climático, em destaque no STF, envolve a ADPF 708, originariamente ajuizada como Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 60), onde são apontadas omissões do Governo Federal por não adotar providências para o funcionamento do Fundo Clima, que teria sido indevidamente paralisado em 2019 e 2020, além de diversas outras ações e omissões na área ambiental que estariam levando a uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental.
Conforme ementa da ADPF, “[...] A mudança climática, o aquecimento da Terra e a preservação das florestas tropicais são questões que se encontram no topo da agenda global. Deficiências no tratamento dessas matérias têm atraído para o Brasil reprovação mundial”, sendo complementado que, se o quadro descrito na petição inicial for confirmado, revelará “[...] a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural. Vale reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional”.[17]
Em decisão preliminar, na referida ação, sua excelência, o Ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu que são graves as consequências econômicas e sociais oriundas de políticas ambientais não cumpridas pelo Brasil mesmo após assumir compromissos internacionais, destacando, a partir de dados técnicos, que “somente na Amazônia Legal, o desflorestamento acumulado nos últimos 50 anos é de cerca de 800.000 km2, aproximando-se de 20% da área original”.[18] De forma percuciente, o Ministro também ressalta que nos últimos anos a determinação do Brasil no cumprimento de metas ambientais começou a dar sinais de arrefecimento, demonstrando assim uma clara preocupação com a ausência de políticas públicas eficazes sobre a matéria.
Outro litígio de natureza climática relevante envolve a ADO-59/STF, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber[19], em que se discute omissão estatal em relação ao Fundo Amazônia, criado pelo Decreto nº 6.527/2008. Dados oficiais apresentados pelo INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e inseridos na referida ADO, demonstram o crescente aumento das taxas de desmatamento no bioma Amazônia nos últimos anos. A partir da captação de imagens de satélites e dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (DETER), o INPE aponta a evolução das taxas de desmatamento entre 2013 e 2019: 2013 (5.891 km2/ano), 2014 (5.012 km2/ano) 2015 (6.207 km2/ano), 2016 (7.893 km2/ano), 2017 (6.947 km2/ano), 2018 (7.536 km2/ano) e 2019 (10.129 km2/ano). A partir de tais dados, evidencia-se que o litígio em questão está diretamente relacionado a uma das causas do aquecimento global, que é o desflorestamento.[20]
Um quarto e relevante litígio climático que tramita perante o STF envolve a ADPF nº 743/DF, em que a Rede Sustentabilidade suscita omissão do Governo Federal envolvendo as constantes queimadas no pantanal mato-grossense, que somente no ano de 2020 atingiram 2,3 milhões de hectares, conforme dados do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais.[21] Na referida ação se questiona não apenas os danos ambientais envolvendo as constantes queimadas no pantanal, mas também seus efeitos sobre a saúde pública da população, demonstrando que eventos extremos como os incêndios florestais massivos também repercutem diretamente na mudança do clima, afetando o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a proteção constitucional à vida, à saúde e à integridade física.
Por fim, na ADPF 748 e ADPF 749[22], os autores questionam, dentre outras questões, a alteração da Resolução 499/2020, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que revogou a Resolução nº 264/1999, passando a autorizar o licenciamento ambiental para a queima de resíduos sólidos em fornos de cimento nas indústrias, incluindo materiais com altíssimo potencial nocivo, como embalagens plásticas de agrotóxicos. Na ação, argumenta-se que a queima destes resíduos pode ocasionar desequilíbrio ambiental, afetar o clima e a saúde humana, pois o coprocessamento desses materiais emite CO2 e a queima de resíduos, principalmente embalagens de agrotóxicos, podem gerar, além de outros gases de efeito estufa, gases extremamente tóxicos para os seres humanos, com impactos na saúde de população. Argumenta-se, também, que a liberação desses resíduos altamente tóxicos na atmosfera pode agravar o quadro já periclitante de poluição do ar em grande parte do país.
Além das referidas ações em trâmite no STF, merece destaque um litígio de natureza climática, com embasamento constitucional, que segue em curso em Vara da Justiça Federal do Distrito Federal. Na Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa), os autores suscitam a nulidade do Despacho 4.410/2020 do Ministério do Meio Ambiente (MMA)[23] e sustentam que o ato administrativo coloca em risco o que resta da Mata Atlântica (12% da cobertura original), pois o referido despacho recomenda aos órgãos ambientais (Ibama, ICMBio e Instituto de Pesquisas Jardim Botânico) que desconsiderem a Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) e apliquem regras mais brandas constantes do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), podendo o ato ensejar o cancelamento de milhares de autos de infração ambiental por desmatamento e incêndios provocados em áreas de preservação do referido bioma.
A ação ressalta os reflexos climáticos da medida impugnada, pois segundo dados do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases (SEEG) do Observatório do Clima, a maior fonte de GEE decorre do desmatamento e das alterações de uso de solo, matéria albergada pela Política Nacional sobre Mudança do Clima (art.4º, II e VI), ao prever que esta visará “II - à redução das emissões antrópicas de gases de efeito estufa em relação às suas diferentes fontes; e VI - à preservação, à conservação e à recuperação dos recursos ambientais, com particular atenção aos grandes biomas naturais tidos como Patrimônio Nacional”.
Conclusão
As aludidas demandas evidenciam que o Brasil vem sendo palco de litígios climáticos com potencial de notável repercussão, dando ensejo a um sólido debate científico e, especialmente, constitucional, sobre tema que ganhou grande importância, notadamente, após o Acordo de Paris, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a Encíclica Laudato Sì e, especialmente, o Relatório IPCC WG1-AR6.
Referidas demandas demonstram, outrossim, uma gradativa sofisticação na seara dos litígios climáticos, evidenciando que a matéria, antes objeto apenas de debates acessórios (na litigância climática indireta e imprópria), começam, pouco a pouco, a chegar aos Tribunais com a causa de pedir e os pedidos bem definidos (focados nas causas e nas consequências do aquecimento global e na sua regulação), forçando um posicionamento do Poder Judiciário não apenas no aspecto infraconstitucional mas, necessariamente, constitucional. Neste sentido, nos próximos anos, o egrégio STF, que tantos serviços já prestou e tem prestado a nossa República, certamente fixará os limites subjetivos e objetivos dos direitos constitucionais fundamentais debatidos nestas contendas climáticas, em especial, com uma possível declaração de um direito constitucional fundamental ao clima estável apto a tutelar não apenas as gerações atuais, mas também as gerações futuras de seres humanos e não humanos.
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[1] MORATO LEITE, José Rubens. A ecologização do direito ambiental vigente. São Paulo: Lumen Juris, 2020.
[2] IPCC. History of the IPCC. Disponível em: https://www.ipcc.ch/about/history/. Acesso em: 10.08.21.
[3]IPCC. Sixth Assessment Report. Disponível em: https://www.ipcc.ch/assessment-report/ar6/. Acesso em: 11.08.21.
[4] Sobre o tema ver: KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011
[5] Ver: SUNSTEIN, Cass; HASTIE, Reid. Wiser: Getting Beyound Groupthink to Make Groups Smarter. Cambridge: Harvard Business Review Press, 2015
[6] Sobre os noises e as suas diferenças com os vieses, ver: KAHNEMAN, Daniel; SUNSTEIN, Cass; SIBONY, Olivier. Noise: A Flaw in Human Judgment. New York: Little, Brown Spark, 2021.
[7] Sobre a influência nefasta da ganância, do utilitarismo e da falta de solidariedade no enfrentamento pelos homens da problemática da crise ambiental e do aquecimento global, ver: FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Laudato Sì: sobre o cuidado da casa comum. Roma, 24 de maio de 2015. Disponível em <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
[8] FOUNTAIN, Henry. 5 Takeaways From the Major New U.N. Climate Report. In: The New York Times. 09.08.21. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/08/09/climate/un-climate-report-takeaways.html Acesso em: 10.08.21.
[9] THE NEW YORK TIMES. A Hotter Future Is Certain, Climate Panel Warns. But How Hot Is Up to Us. 09.09.21. .Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/08/09/climate/climate-change-report-ipcc-un.html. Acesso em: 12.08.21.
[10] GATES, Bill. How to Avoid a Climate Disaster: The Solutions We Have and the Breakthroughs We Need. New York: Knopf, 2021; SUNSTEIN, Cass. Averting Catastrophe: Decision Theory for COVID-19, Climate Change, and Potential Disasters of All Kinds. New York: NYU Press, 2021.
[11] SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito fundamental a um clima estável e a PEC 233/2019. In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-14/direto-fundamental-clima-estavel-pec-2332019. Acesso em: 12.08.21.
[12] BORGES, Caio. STF realiza audiência histórica. Climainfo. Disponível em: https://climainfo.org.br/2020/09/23/adpf-708-fundo-clima-e-politicas-ambientais/. Acesso em: 07.08.2021.
[13] O Brasil precisa avançar em termos de Climate Change Law. Nos Estados Unidos, ao contrário, obras de relevância mundial tratam sobre o tema, como: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S Law. New York: American Bar Association, 2014. GERRARD, Michael. Threatened Island Nations: legal implications of rising seas and a changing climate. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; FREEMAN, Jody, The Uncomfortable Convergence of Energy and Environmental Law, 41 Harv. Envtl. L. Rev. 339 (2017). POSNER, Erik A; WEISBACH, David. Climate Change Justice. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2010; WOLD, Chris; HUNTER, David; POWERS, Melissa. Climate Change and the Law. New York: LexisNexis, 2013.
[14] Sobre o tema, ver: WEDY, Gabriel; FERRI, Giovani. O papel do poder judiciário e do ministério público nos litígios climáticos. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, p. 115-142, v. 96 Jun-Julh 2021.Ed. Magister.
[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6.446/DF. Relator Min. Luiz Fux. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5929755. Acesso em: 14 mar. 2021.
[16] SARLET, Ingo. FENSTERSEIFER, Tiago. Parecer Jurídico: novo Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica (ADI 6446/DF). Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/10/08/parecer-juridico-adi-6446-mata-atlantica/. Acesso em: 14 mar. 2021.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 708/STF, Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5951856. Acesso em: 9 mar. 2021.
[18] Idem, ADPF nº 708/STF.
[19]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO nº 59/DF. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344261377&ext=.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
[20] Sobre o desmatamento na Amazônia e sua relação com as mudanças do clima, vide: NEPSTAD, Daniel C; et al. Interactions among Amazon land use, forests and climate: prospects for a near-term forest tipping point. The Royal Society Publishing, v. 363, n. 1498, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rstb.2007.0036. Acesso em: 13 mar. 2021.
[21] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 743/DF. Rel. Min. Marco Aurélio de Mello. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6007933. Acesso em: 12 mar. 2021.
[22] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF recebe novas ações contra revogação de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452777. Acesso em: 14 mar. 2021.
[23] ABRAMPA. MPF propõe ação para anular despacho do Ministério do Meio Ambiente que coloca em risco a preservação da Mata Atlântica. Disponível em: https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=841. Acesso em: 14 mar. 2021.
Gabriel Wedy é juiz federal, professor no Programa de Pós-Graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), professor na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe-RS), visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) . Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).
WEDY, Gabriel Wedy. Direito Constitucional e os Litígios Climáticos. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1566, 08 de Dezembro de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/direito-constitucional-e-os-litigios-climaticos.html