Direito Natural e homossexualidade
Cursei a Faculdade de Direito de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul nos idos de 1956 a 1960. O ambiente era francamente positivista. Direito Natural era objeto de estudo somente na Filosofia do Direito, no último ano do Curso, quando já havíamos absorvido o positivismo distilado aula a aula nas demais matérias do currículo. : Lecionava Filosofia do Direito o Professor Armando Câmara. Não nos convenceu, sobretudo depois de negar juridicidade ao Direito soviético. Releio autores daquela época. Com surpresa constato que muitos se declaravam adeptos do Direito natural. Mas repetiam a advertência de Ennecerus: 'no caso de insubordinação do direito positivo ao direito ideal ou à justiça absoluta, caberá ao legislador corrigir a falha pela derrogação de lei má, mas não ao juiz recusar-lhe a aplicação em nome da justiça ideal'[1]. De todas essas lições, restava-nos este resumo conclusivo: Não existe um Direito natural: se existe, não tem importância nenhuma.
Eram predicados do Direito natural a universalidade e a imutabilidade. Assim como o fogo, queimando na Grécia, haveria de queimar também na Pérsia, assim o Direito natural haveria de apresentar-se idêntico em todos os tempos e em todos os lugares da terra. Essa concepção era facilmente combatida, com a observação de que a escravidão por séculos foi considerada natural, assim como a poligamia, ainda hoje, é natural em outros povos.
Mas há outra concepção, a do 'justo natural', derivada de Aristóteles, assim exposta por Plauto Faraco de Azevedo:
'A concepção do justo natural distingue-se das concepções jusnaturalistas na medida em que historicamente estas se tenham caracterizado pela defesa de um sistema de valores, de princípios, ou de normas, de caráter predominantemente necessário, universal e imutável. Dessa circunstância resulta a impossibilidade de afirmar-se, como amiúde se tem feito a propósito do jusnaturalismo, que a idéia do justo natural seja a-histórica. Ao revés, apresenta ela historicidade definida, na medida em que se insere no quadro da :polis, enquanto parte do justo político, encontrando seu fundamento na ciência ou arte política. (...). Ora, sendo as leis 'obra de arte política', nela encontrando sua justificação, não há nenhuma separação artificial entre Direito e Política, mas, ao revés, explícito reconhecimento da íntima permeação existente entre ambos, o que, sobre ser uma posição realista, confere ao Direito clara inserção histórica. Todavia, este assento histórico, claramente percebido e assinalado por Aristóteles, haveria de ser obscurecido pela reflexão jurídica, orientada pelo purismo metodológico, derivado do positivismo jurídico, especialmente em sua feição normativista. (...). Pouco resta, por esta forma, a estudar, no ordenamento jurídico, além de suas conexões lógicas vistas em perspectiva analítica. A validade é vista tão só em seu aspecto formal, segundo a hierarquia das fontes estatais. Exaurem-se os vínculos lógico-sistemáticos perceptíveis nas lei, ou em seu recíproco relacionamento, :no interior da ordem jurídica. (...). Para que o esquema, assim concebido, se articule, sugere-se, sutilmente, que o juiz seja o aplicador dócil das leis feitas por obra e graça dos detentores do poder, cuja forma de investidura e consonância com o bem comum não são jamais questionadas, mas tidas aprioristicamente como metajurídicas. A partir de tais pressupostos, cuidadosamente inseridos na formação jurídica e exaustivamente repetidos, busca-se orientar o juiz, limitando-lhe a ação, como se nada mais pudesse conhecer além das leis, da doutrina e da jurisprudência correlatas, abstraindo, em conseqüência, no desate dos litígios, a natureza dos interesses em questão'[2]. Mas, observava Azevedo, estava a despontar um novo tipo de jurista, 'que se distingue por dar ênfase ao trabalho crítico sobre e com o Direito, à compreensão do político e do social, e à consciência da responsabilidade para determinar sua imagem no futuro (...). São, esses novos juristas, juízes, advogados, membros do Ministério Público, consultores jurídicos, autores de livros de doutrina, comentadores de leis ou de códigos, jusfilósofos, professores de Direito, que, cada um em seu setor específico de atividade, recusam-se a identificar o Direito com as normas de direito positivo, dada a consciência, que progressivamente amadurecem, de que as normas e os conceitos jurídicos destinam-se à realização da justiça material e como tal, são passíveis de constante aperfeiçoamento resultante da experi6encia social e da reflexão crítico-valorativa, tendo em vista a realização das melhores aspirações humanas. Buscam conhecer o direito vigente e seus princípios orientadores, assim como aqueles peculiares a cada um de seus setores, sem que se deixem limitar o pensamento ou a ação por fronteiras artificiais ou dogmas insustentáveis. Recusam-se, por outra parte, a conformar a reflexão a aspectos teóricos do pensamento jurídico, utilizando-se dos dados da filosofia e da sociologia jurídicas para pensar a realidade jurídica concreta'[3].
Impossível não enquadrar nessa descrição a Desembargadora Maria Berenice Dias e sua obra :União Homossexul - O preconceito &: e a Justiça (Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000). Aborda o tema na História, na Medicina, na Genética, na Psicologia, na Psicanálise e no Direito Comparado. Sustenta que o juiz deve tratar a união homossexual da mesma forma que a união estável entre homem e mulher.
Sua argumentação pode ser havida como incoerente. Adora a Constituição, enquanto outorga a proteção do Estado à união entre o homem e a mulher (art. 226, § 3o). Rechaça-a, quando restringe o conceito de entidade familiar, excluindo a união homossexual. Superpõe-se à Constituição, acolhendo teses duvidosas: a distinção de Carl Schmitt, entre Constituição e lei constitucional e a tese de Otto Bachof, a admitir a declaração de inconstitucionalidade de normas da própria Constituição. Em outras palavras, a Constituição vale como premissa do raciocínio jurídico somente para as conclusões de seu agrado.
Desaparece, todavia, a incoerência, supondo-se a adesão da Autora à idéia de um fundamento supralegal para o Direito positivo, chame-se Direito natural ou justo natural.
[1] Caio Mário da Silva Pereira. :Instituições de Direito Civil. 6. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1982. v. I, p. 10.
[2] Plauto Faraco de Azevedo. :Justiça distributiva e aplicação do Direito. Porto Alegre, Fabris, 1983. p. 140-2.
[3] Ibidem, p. 146.
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Direito Natural e homossexualidade. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 1, nº 36, 30 de Mai de 2001. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/direito-natural-e-homossexualidade.html