Filtragem hermenêutico-constitucional
A Lei 9.714 possibilita a aplicação de pena alternativa autônoma a :todos os crimes cuja pena concretizada não ultrapasse 4 anos de reclusão, desde que não tenham sido cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.
Lênio Luiz Streck sustenta que, ao introduzir essa norma, o legislador ultrapassou os limites que lhe foram impostos pela Constituição, entendida em seu todo principiológico. Faltam-lhe poderes para estabelecer quequalquer pena concretizada em até 4 anos, resultante de delito cometido sem violência à pessoa, seja passível de ser substituída por pena alternativa.
A inconstitucionalidade resultaria da circunstância de o legislador haver tratado igualmente bens jurídicos absolutamente desiguais, como o patrimônio individual, o público e o meio-ambiente. Nossa Constituição, normativa e dirigente, implicitamente exige a hierarquização dos crimes e das penas. Devem ser penalizados com mais rigor os delitos que obstaculizam/dificultam/impedem a concretização dos objetivos do Estado Social e Democrático. A lei não pode equiparar delitos como o contrabando, a sonegação de impostos, o tráfico de entorpecentes, a remessa ilegal de divisas, crimes cometidos por Prefeitos, a lavagem de dinheiro e o meio ambiente, com delitos como o furto, o estelionato e a apropriação indébita, porque nitidamente mais graves os primeiros, que violam e causam múltiplas lesões a bens jurídicos difusos e coletivos, ao passo que os últimos atacam o patrimônio meramente individual.
'O legislador ordinário, ao estabelecer que qualquer pena privativa de liberdade que não seja superior a 4 anos pode ser substituída por penas restritivas, exigindo tão-somente, para tanto, que não tenha – genericamente – havido violência ou grave ameaça à pessoa, :violoupreceitos constitucionais e a principiologia do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição'.
'não sendo o Poder Legislativo (...) livre para estabelecer quais os delitos que podem receber os favores de uma substituição por penas restritivas, a questão deve ser resolvida no âmbito do controle da constitucionalidade, com a necessária intervenção do Poder Judiciário'.
'Na verdade, está-se diante de um típico caso de declaração de nulidade parcial sem redução de texto, ou, se quiser, inconstitucionalidade sem redução de texto (...). Muito embora a confusão que se possa fazer entre a declaração de inconstitucionalidade (nulidade) parcial sem redução de texto com a interpretação conforme a Constituição, deve ficar claro, com Gilmar Ferreira Mendes que, enquanto nesta se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, naquela ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal'.
'no caso em exame, o art. 44, do CP, com a redação que lhe foi dada pela Lei 9.714, no seu inciso I, é inconstitucional se aplicável às seguintes hipóteses: crimes hediondos :lato sensu: crimes de sonegação de tributos, crimes contra o meio-ambiente, crimes de corrupção, remessa de divisas, lavagem de dinheiro, e improbidade administrativa'.
Segundo o Autor, o Tribunal não pode simplesmente deixar de aplicar pena alternativa nesses casos. É preciso formal declaração da inconstitucionalidade: 'em sede de Tribunal de segundo grau, não fica dispensado o órgão fracionário de suscitar o respectivo incidente de inconstitucionalidade'.
'E não se diga', prossegue o Autor, 'que, ao restringir o uso da nova Lei, estar-se-á fazendo uma analogia :in malam partem ou uma interpretação :in pejus, ou, ainda, uma violação do princípio da legalidade. Não há analogia :in malam partem em relação ou contra a Constituição. Há que se deixar claro, de uma vez por todas, que o legislador não tem discricionariedade para estabelecer tipos, penas e favores legais. Ou isto, ou teríamos que considerar intocável, por exemplo, um dispositivo legal que viesse descriminalizar o delito de corrupção ou sonegação de tributos ou as queimadas de florestas, tudo em nome do princípio da legalidade'.
(Lênio Luiz Streck. A (necessária) filtragem hermenêutico-constitucional das (novas) penas alternativas. :Revista da Ajuris, Porto Alegre: (295-313), mar/2000).
Por várias razões esse artigo merece um comentário, a começar pela utilização do aparato hermenêutico-constitucional, não para favorecer, mas para prejudicar o réu, ou melhor, determinados réus.
Na raiz do pensamento do autor está o conflito entre a lei e a Constituição, entre o Legislativo e o Judiciário, entre os que têm o poder de legislar e os que buscam esse poder. A lei e o legislador nele se apresentam como inimigos, representantes do mal, aos quais é preciso dar combate: 'Está na hora de o nosso legislador (re)tirar máscara'.
A virtude encontra-se toda na Constituição (embora seja, também ela, uma lei).
A Constituição a que se refere o Autor tem importante parcela oculta, pois deve-se levar em conta 'sua materialidade, isto é, toda carga eficacial da principiologia'. De certo modo, o juiz cria a Constituição, pois 'fazer hermenêutica é produzir-atribuir sentido ao texto, que passará a ser norma a partir da interpretação'.
Nessa leitura, algo subjetiva, algumas normas são acolhidas: outras, menosprezadas. O princípio da legalidade, outrora tão importante, é apontado à execração, com o rótulo de 'o fetichismo da lei'.
O Autor, que nega poderes ao legislador, atribui-se o de legislar, estabelecendo uma hierarquia dos delitos e das penas.
O climax é atingido quando negada, em hipótese, a possibilidade de descriminalização de determinados delitos.
Pergunta-se: aplicar-se-ia, nesse caso, a pena prevista na lei revogada?
Mais um passo e estaremos abandonando o 'fetichismo' do 'nullum crimen sine lege'. Em nome da Constituição poderá o juiz declarar delituosos comportamentos que lhe pareçam altamente reprováveis, aplicando a justa pena, observado, é claro, o princípio da proporcionalidade.
P/S – Subjetivamente, concordo com o Autor em considerar mais graves os delitos apontados por ele apontados, que atingem o patrimônio público, o patrimônio social, o meio-ambiente e a moralidade pública.
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Filtragem hermenêutico-constitucional. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 0, nº 11, 30 de Julho de 2000. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/filtragem-hermeneutico-constitucional.html