Jurisdição constitucional e coisa julgada
Nos termos da Lei 9.868/99, a decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 27). A decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal (art. 28).
A Lei 9.882/99, que trata da argüição de descumprimento de preceito fundamental, dispõe no mesmo sentido: A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 12). A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3o).
Em ambas as leis, evitou-se falar em 'coisa julgada', ainda que :erga omnes, a meu ver com razão, porque o instituto da coisa julgada tem a ver com a declaração do direito aplicável a fatos passados. Ora, nessas ações diretas, discute-se a respeito do direito em tese, não a respeito de fatos ocorridos no passado. Fatos futuros, exatamente porque futuros, não podem já ter sido julgados. Por isso mesmo, nas relações continuativas, é sempre possível a revisão do estatuído na sentença, sobrevindo modificação no estado de fato ou de direito (CPC, art. 471).
Caiba ou não falar-se nesses caos em coisa julgada (matéria, aliás controvertida), cabe a pergunta: Pode o Supremo Tribunal Federal afirmar a inconstitucionalidade de lei anteriormente declarada constitucional ou, o que é mais grave, declarar a constitucionalidade de lei anteriormente declarada inconstitucional?
Aborda o tema Sérgio Resende de Barros. Parte da premissa de que, ao declarar a inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal toma decisões de caráter político e de caráter legislativo, legislando negativamente. Rejeita a concepção oposta, pejorativamente qualificada como 'processualismo'. Prossegue, em tom crítico: 'Mantendo o Judiciário como Poder apolítico - neutro, porque há de ser imparcial -, o apego à separação dos poderes clássica impediu ver que, quando o Supremo julgada da constitucionalidade das leis, nessa função ele é tribunal constitucional e, como tal, profere decisões político-jurídicas, as quais - por serem assim - devem e podem ter os seus efeitos graduados e modelados no tempo e no espaço, bem como em sua compreensão e extensão, conforme a necessidade político-social que as enforma. Impediu ver também que essas decisões podem ser graduadas e modeladas para agentes e órgãos públicos especificamente considerados, mas que, quando graduadas e modeladas :erga omnes, à sua eficácia estão vinculadas não só as pessoas particulares, mas principalmente os poderes do Estado, salvo na competência de mudar a lei ou a Constituição para desfazer a inconstitucionalidade ou de resolve-la por outra decisão :erga omnes da mesma Corte, se sobrevier substancial mudança das condições de fato ou de direito que a determinaram. Essa última possibilidade é assegurada pela coerência. Se não se nega à lei a força de reformar a lei, não se pode negar igual força a uma decisão dotada da força de lei. Firme na doutrina alemã, Gilmar Ferreira Mendes - após ter como possível a reaferição da constitucionalidade pelo Tribunal, :no caso de significativa mudança das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes - conclui que lhe parece :plenamente legítimo que se suscite perante o STF a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional, em ação direta ou em ação declaratória de constitucionalidade. Mas a decisão :erga omnes é tão vinculante dos poderes estatais, que o próprio Tribunal sente-se imobilizado por ela, sem possibilidade de voltar atrás, como atestam as palavras do Ministro Moreira Alves em um de seus votos:e - note-se - é em virtude dessa eficácia erga omnes que esta Corte, por ser alcançada igualmente por ela, não pode voltar atrás na declaração que nela fez anteriormente' '. (Sérgio Resende de Barros. O nó górdio do sistema misto. In: TAVARES, André Ramos &: ROTHENBURG, Walter Claudius (org). :Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 181-97).
A revisão, possível ainda que se tratasse de coisa julgada, na hipótese de modificação no estado de fato ou de direito, é reforçada com a consideração de que a lei, mesmo declarada inconstitucional, não é revogada pelo Supremo Tribunal Federal. Continua, pois, latente no sistema. A vedação de rescisória não infirma a tese, porque a modificação no estado de fato ou de direito autoriza a revisão, não a rescisão da sentença.
O que não pode o Supremo Tribunal Federal é decretar, com efeitos :ex tunc, a inconstitucionalidade de lei antes declarada constitucional. Estaria a legislar retroativamente.
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Jurisdição constitucional e coisa julgada. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 1, nº 35, 15 de Mai de 2001. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/jurisdicao-constitucional-e-coisa-julgada.html