Mimética
Em português, temos o prefixo :mimeo, do grego miméomai (imitar por gestos). Mimeografar é tirar cópias com o mimeógrafo, máquina que antecedeu as copiadoras 'xerox'. Mimese é uma figura de retórica que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e palavras de outrem. Mimetismo é o fenômeno consistente em tomarem animais a cor e configuração dos objetos em cujo meio vivem, ou de outros animais de grupos diferentes. Ocorre no camaleão, em borboletas, etc. Mimetizar é adquirir por mimetismo, camuflar-se (Novo Dicionário Aurélio).
Mimética é o nome de um novo campo da ciência, que analisa as transferências culturais. Sabe-se que o comportamento humano é determinado pela hereditariedade e pela cultura. A transmissão dos caracteres hereditários é hoje explicada pela genética. Com a mimética, trata-se de explicar a transmissão dos caracteres culturais. Aos genes, que explicam a transmissão hereditária, correspondem os 'mimes', que são unidades de informação intelectual ou cultural que passam de pessoa a pessoa. Mime é, assim, uma unidade de cópia. Idéias, melodias, comportamentos, valores, modas, invenções, modos de fazer ou de dizer, tudo são mimes, que podem ser copiados com certo grau de fidelidade. A evolução da cultura é explicada a partir dos mimes, assim como a biológica o é a partir dos genes. A mente humana é assim visualizada como um campo de desenvolvimento de mimes. Eles a infetam como parasitas e propagam-se por contágio.
A expressão inglesa mime, que estamos a traduzir por 'mime', foi cunhada por Dawkins (The selfish gene, 1976), por analogia com 'gene'. Uma idéia ou informação somente assume a natureza de mime quando replicada, isto é, quando copiada ou repetida por outrem. Todo conhecimento transmite-se mimeticamente.
Os memes tramitem-se verticalmente, de geração para geração, ou horizontalmente, entre contemporâneos. O mime é transmitido de um para outro indivíduo. A transmissão é vista como replicação: uma cópia do mime é transladada para outro indivíduo. O mime como que se auto-reproduz, espalhando-se por um crescente grupo de indivíduos.
Alguns propagam-se mais facilmente do que outros ou têm maior longevidade. Para os homens podem ser bons ou maus. A propagação do hábito do fumo é um bom exemplo de transmissão de mimes perniciosos para seus portadores. A evolução da cultura, inclusive a do saber, é apresentada como obediente aos mesmos princípios de variação e seleção descritos na evolução biológica. A língua e a religião constituem conjuntos de mimes: mimes complexos.
Nem todos os mimes têm igual capacidade de reprodução. Dawkins aponta três características para que um mime seja um bem sucedido:
a) a fidelidade, isto é, a aptidão para serem fielmente copiados, de modo que seja possível reconhecer o original nas cópias que vão sendo feitas:
b) a fecundidade, que envolve a maior ou menor facilidade com que ocorrem as cópias. Ao se definir como 'A voz que clama no deserto' (vox clamantis in deserto), João Batista monstrava ter consciência das dificuldades de sua pregação de penitência, pois não parece muito sedutora a idéia de viver-se no deserto, com alimentação de gafanhotos e mel:
c) longevidade, que diz respeito à duração do mime. O poema que Anchieta escreveu na areia desapareceu com o primeiro vento que soprou.
Essas são características que também se encontram nos genes. Ao passo, porém, que estes se transmitem apenas verticalmente, de pais para filhos, os mimes transmitem-se também horizontalmente, o que os aproximam das infeccões e dos parasitas. Há, também, maior fidelidade na transmissão dos genes. Os mimes estão mais sujeitos a alterações decorrentes da mente de cada um.
Embora apontem-se casos de cópias no mundo animal, os mimes são característicamente humanos. Homem é o animal que tem capacidade de copiar. Embora se utilize a expressão 'macaquear', para indicar pejorativamente a imitação, esta é muito mais própria dos homens do que dos macacos. É graças a essa capacidade que a cultura se desenvolve.
A capacidade de imitar deu aos seus portadores uma vantagem transmitida aos descendentes. Assim, sobreviveram as estirpes dos que melhor sabiam imitar. Significa isso que os genes que produziram o homem foram por sua vez influenciados pelos mimes por eles criados, num movimento de causação circular.
Podemos, enfim, definir 'mimética' como a ciência que estuda a evolução dos mimes. Trata-se de estudar as mutações e recombinações de sua estrutura. Assim como os genes, os mimes competem entre si, por limitado o espaço cerebral em que podem sobreviver. Alguns são vencedores, outros logo desaparecem. Os estudos de mimética podem levar a previsões sobre os mimes mais vocacionados à vitória na competição com os demais.
No campo do Direito, a mimética poderá explicar como normas transitam de uma geração para a outra e de um povo para outro. Explicará como elas sofrem alterações, desfiguram-se, combinam-se, assumem novas formas, sobrevivem ou morrem. Copiamos idéias, comportamentos e valores. Somos portadores de mimes jurídicos. Alguém ainda há de escrever um livro intitulado 'Mimética Jurídica', uma interessante dissertação de natureza transdiciplinar. Fica, aí, a sugestão.
Para os interessados na mimética recomendo a leitura de um livro recente, de Susan Blackmore: 'The meme machine' (Oxford University Press, 1999). Nos últimos capítulos, a autora transcende a mimética. Pergunta: Quem sou? E conclui, negando a existência do 'eu'. Não existe, por detrás do cérebro, uma alma controlando o pensamento. A prática da meditação mostra que não existe um mundo sólido sendo observado por um eu persistente, mas apenas um fluxo contínuo de cambiantes experiências, sem perfeita separação entre observador e objeto da observação. Não há um eu que tenha opiniões. Há, sim, um corpo que diz 'acredito em ser agradável aos demais' e um corpo que é (ou não é) agradável aos outros. Há uma criatura biológica que todos os dias come yoghurt, mas não há um eu interior que adora yoghurt. O 'eu' não passa de uma ilusão, assim como a consciência e o livre-arbítrio. Dawkins concluiu 'The selfish gene', dizendo que, na terra, apenas nós podemos nos rebelar contra a tirania dos genes egoistas. Blackmore conclui sua obra afirmando que podemos ser realmente livres, não porque tenhamos o poder de nos rebelar contra sua tirania, mas por sabermos que não existe um 'eu' que possa se rebelar. Descartes primeiro duvidou de tudo, para depois assentar sua filosofia na certeza de sua própria existência: penso, logo existo. No dualismo cartesiano, há um sujeito que se opõe ao corpo. Todavia, à medida que aumenta nosso conhecimento da ação dos neurônios e sinapses, menos se exige a existência de um fantasma para controlar a máquina. A descrição que os neurocientistas estão a fazer do funcionamento do cérebro não deixa lugar para um eu central. Depois de duvidar de tudo, Descartes admitiu uma única certeza: a existência do eu. Paradoxalmente, essa certeza fundamental constitui uma ilusão, como aliás já intuíra e ensina o budismo. O eu é ele próprio um mime complexo, bem sucedido, não porque seja verdadeiro, bom ou belo: não porque ajude os genes: nem porque nos faça felizes. É bem sucedido simplesmente porque os mimes que carregamos dentro de nossos cérebros persuadem-nos a trabalhar por sua propagação: nosso eu ilusório é útil à sua replicação.
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Mimética. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 0, nº 25, 30 de Outubro de 2000. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/mimetica.html