15.10.00 | José Maria Rosa Tesheiner

Personalidade judiciária de entes sem personalidade jurídica

São pressupostos processuais subjetivos a capacidade de ser parte, a capacidade processual (capacidade de exercício) e o :jus postulandi. A capacidade de ser parte vem recebendo o nome de 'personalidade judiciária', porque podem ser partes no processo, como autores ou réu, entes que não são pessoas, como a massa falida, a herança jacente ou vacante, o espólio, o condomínio e entes outros (CPC, art. 12), ditos pessoas formais. O Código do Consumidor admite como partes as entidades e órgãos da administração pública, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos que intenta proteger (Lei 8.078/90, art. 82, III). Mais ainda: no processo de mandado de segurança, tem-se admitido impetração por ou contra Câmara de Vereadores, Mesa da Assembléia Legislativa, Câmara dos Deputados, Senado etc.

Essa última observação provoca-nos as seguintes reflexões:

Destina-se o mandado de segurança à tutela de direito líquido e certo. Assim, a afirmação da personalidade judiciária de órgão público implica implicitamente o reconhecimento de que ele é possível titular de direitos subjetivos. Ora, a capacidade de ser titular de direitos e obrigações é exatamente o que define a personalidade jurídica. Assim, o uso da expressão 'personalidade judiciária' apenas encobre, com outro nome, a atribuição de personalidade jurídica a seres aos quais o direito material nega essa qualidade. Não se trata de atribuição de personalidade 'limitada', porquanto o que define personalidade é a aptidão para titular direitos e não a quantidade de direitos que lhe sejam reconhecidos. Admitido, como tranqüilamente afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, que órgão como a Câmara de Vereadores tem direitos subjetivos tuteláveis por mandado de segurança, não há razão lógica para que se lhe negue a capacidade de ser parte em outras ações, destinadas à tutela jurisdicional desses mesmos direitos. Embora o decurso do prazo de 120 dias acarrete a decadência do direito de impetrar mandado de segurança, daí não decorre a extinção do direito que ele buscava tutelar. Ora, se o direito subjetivo permanece, seu titular há de poder fazê-lo valer, por algum dos meios previstos na lei processual. Se Câmara de Vereadores tinha direito oponível ao Prefeito Municipal, tutelável por mandado de segurança, não se diga que extinguiu-se pelo decurso do prazo de 120 dias ou, pior ainda, que sua titularidade se transferiu para o Poder Executivo.

(No mesmo sentido:Fernando Guimarães Ferreira. A consolidação da personalidade judiciária dos Poderes Judiciário e Legislativo. :Cidadania e Justiça, Rio de Janeiro (8): 149-59, 1o semestre/2000).

Decorre dessas constatações a necessidade de reformular-se a doutrina da personalidade jurídica. Uma explicação dogmática exige que se leve em conta os vários planos em que a personalidade jurídica é chamada a atuar. No plano internacional, o Brasil é que é sujeito de direitos e obrigações. No plano interno é que surgem como unidades as frações que são os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Novo corte desvenda a repartição dos Poderes: O Executivo, o Judiciário e o Legislativo. Olhar ainda mais atento dá conta da existência de outros órgãos autônomos, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas.

Onde há hierarquia, os conflitos resolvem-se internamente, por decisão do órgão hierarquicamente superior. Não se cogita de tutela jurisdicional, nem de personalidade jurídica dos órgãos em conflito. Havendo, porém, autonomias constitucionalmente asseguradas, surge a necessidade de composição externa dos conflitos, por decisão jurisdicional, em processo de partes e, conseqüentemente, a atribuição, a cada órgão em conflito, da capacidade de ser parte, dê-se-lhe o nome personalidade jurídica ou de personalidade judiciária.

O tema não é estranho ao direito privado. Em princípio, uma sociedade anônima constitui uma unidade perante o Estado. Ela é que tem personalidade jurídica, não a Assembléia de Acionistas, o Conselho Fiscal, ou os órgãos de direção. Se o Estado quebra essa unidade, admitindo reclamação de um desses órgãos contra outro, não tem como negar-lhes a capacidade de ser parte, assim claramente atribuindo-lhes personalidade judiciária e, implicitamente, personalidade jurídica. Negar essa realidade é afirmar a existência de direitos sem sujeito, ser fantasmagórico como a mula sem cabeça.


TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Personalidade judiciária de entes sem personalidade jurídica. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 0, nº 21, 15 de Outubro de 2000. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/personalidade-judiciaria-de-entes-sem-personalidade-juridica.html
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Editores: 
José Maria Tesheiner
(Prof. Dir. Proc. Civil PUC-RS Aposentado)

Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha

Advogada e Professora Universitária

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