Prefácio para a obra 'O Caos no Discurso Jurídico: uma homenagem a Ricardo Aronne' – in memorian
Vivemos um tempo repleto de desafios. Um período fenomenalmente rico e enriquecedor, em que devemos trabalhar na dimensão de múltiplas possibilidades, com equilíbrio e temperança. Um tempo em que o direito demanda método para mitigar a desestabilização, para ser razão[1] e não caos.
Muito mais do que dar respostas, é tempo de saber como construir as perguntas. O hiato entre o tempo passado e os desafios que se presentificam, o pandemiato, a governança do parasita sobre o hospedeiro, interrogam-nos: o que queremos para o futuro? Nossa casa comum, como advertiu o Papa Francisco na encíclica Laudato Sì, de 2015, impõe cuidado, respeito, tolerância ao Outro, ao diferente, ao não-sujeito, às futuras gerações, à natureza. O futuro nos convoca, portanto, à reflexão e à ação.
Se a pandemia transformou o planeta numa sala de emergência, sabemos que as respostas não virão apenas com uma vacina. Afinal, os males todos não se extinguem por decreto[2]. A crise não é apenas sanitária, mas também se apresenta sob a forma de emergência climática e de representatividade democrática, além de trazer intensos impactos socioeconômicos.
Nesse influxo, em que o real sucumbe ao espetáculo, uma réplica à reificação hipertrofiada e ao idealismo superlativado está na temperança, na livre circulação das ideias, dos modos de ser e de estar. As respostas para as perguntas que estamos a construir, portanto, podem vir das políticas públicas, sejam de saúde, sejam de acesso à educação, sejam aquelas que propiciam a todos um mínimo patamar de dignidade existencial.
Em especial quando se pensa no acesso à educação, é necessário enfocar e valorizar a figura do professor. Daquele que ensina o que sabe e aprende com aqueles a quem ensina. Dentre todas as atividades às quais se dedicou – advocacia, magistério, música – foi como educador que o Professor Doutor Ricardo Aronne encontrou sua vocação. O legado que ele nos deixou permanece, para nos auxiliar a enfrentar estes desafios, com a experiência e o conhecimento sedimentados em sua trajetória. O Grupo de Pesquisa Primas do Direito Civil-Constitucional, que liderou, por mais de duas décadas, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, é a mais pujante demonstração desse patrimônio.
Se o falecimento precoce de Ricardo Aronne nos tirou a presença intensa do educador que se dispôs a investigar e a ensinar o tema das titularidades, da posse, da propriedade e de sua funcionalização, sua obra, da qual sobressai a multicitada 'Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos contemporâneos', editada em 2001, pela Renovar, permanece conosco. Demonstra, pois, a profundidade da pesquisa atilada que buscou evidenciar a instrumentalização dos direitos reais e a fragilidade do que classicamente se designou chamar de direitos reais limitados[3]. É a fonte principal dos ensinamentos que legou aos alunos que ora se reúnem em sua homenagem.
Ricardo Aronne, desde os estudos que desenvolveu no mestrado, quando dissertou acerca da propriedade e domínio e também na tese de doutoramento, quanto teceu a obra já referenciada, verdadeiro marco para aqueles que se dedicam aos Direitos Reais, teve o ousio de superar as teorias de afetação tradicional e salientar a autonomia das titularidades. Ressaltou a projeção deste ramo do Direito Civil sobre o Direito Agrário, o Direito Urbanístico, o Direito Ambiental, o Biodireito[4]. Soube, como poucos, investigar o assento constitucional do direito de propriedade como fundamental, em sua associação com a respectiva e inescapável função social. Dedicou-se a traçar os limites que encontra a propriedade civilista e que se manifestam na esfera jurídica extraproprietária, em especial, na proteção ambiental e, de novo, na própria função social. É nesse encontro entre norma constitucional e o Direito Civil e nessa interrelação que se localiza o objeto da investigação de Ricardo Aronne e de seus alunos e discípulos no Grupo de Pesquisa Prismas, por ele fundado.
A titularidade, alertou Ricardo Aronne, não deixa de ser privada, mas recebe em seu seio o interesse social, implicando limite e impulso, de forma a podermos asseverar, hoje em dia, a premissa de que a propriedade obriga, a qual remonta à Constituição de Weimar[5]. Investigar criticamente o escopo da funcionalização no transcurso da propriedade e da posse tal como inscritas no Código de 1916, nos conceitos ressignificados pela matriz constitucional de 1988 e na Codificação de 2002 é tarefa permanente[6].
O diálogo que o Professor Ricardo Aronne travou entre o Direito e a Literatura também aporta incomensuráveis contribuições para a compreensão da seara jurídica. Em instigante artigo intitulado 'O Direito Civil-Constitucional e o Reino da Dinamarca: Hamlet, Codificação e o fantasma paterno', publicado em 2016, na Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, formulava provocações: 'O que distingue, pois, a 'Consciência' da 'Codificação', são os fins. Uma visa a alteridade a outra a paralisia. Na codificação, o medo é uma forma de consciência, fundadora de uma segurança burguesa, encrispada por uma metafísica de subúrbio. E em sua racionalidade, não sobra espaço para heróis. Ela nos dissolve na fuga da realidade. Consegue ser um não-espaço e um não-tempo, sem qualquer transcendência. Apenas abstraindo. Em busca do 'Homem Médio' (em outros termos, medíocre). A propriedade, a família e o contrato!! Quais!!???'[7].
Essa visão crítica do homem médio e das bases sociais em que nos erigimos são indispensáveis para formular as respostas e as perguntas às quais nos interpela o presente em direção ao futuro.
Olhar para um mundo ainda não nascido requer acolhimento, pedagogia da solidariedade, práticas democráticas, respeito aos direitos humanos, políticas inclusivas, pluralidade e tolerância. Qualidades todas que exercitava o Professor Doutor Ricardo Aronne. Em boa hora a presente homenagem, capitaneada pela Professora Doutora Mariângela Guerreiro Milhoranza e a cujo chamado responderam os coautores, que se lançaram ao desafio, resultando neste importante alinhavo que celebra a vida, o magistério e a obra do Professor Doutor Ricardo Aronne. Muitos perecem pelo caminho, mas não desistem de caminhar. Vivemos na complexidade. Na coexistência aberta, difícil, mas, ao mesmo tempo, inspiradora. Inspiremo-nos pelo exemplo deixado por Ricardo Aronne.
Novembro de 2020.
[1] Ou desrazão: 'Razão e desrazão. Compreensão e revolta. Esses binômios constitutivos e primordiais às ácidas escolas críticas contemporâneas - termo empregado no melhor sentido frankfurtiano - vêm corroendo as paredes dogmáticas das edificações do Direito.' ARONNE, Ricardo. Entre os Véus de Themis e os Paradoxos de Janus: A razão e o caos no discurso jurídico, pala lente de Albert Camus. In: André Trindade: Germano Schwartz. (Org.). Direito e Literatura: O Encontro entre Themis e Apolo. 1ed.Curitiba: Juruá, 2008
[2] 'Bem no fundo
no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas'
Paulo Leminski
[3] 'O que se busca evidenciar é o que o classicamente designado como direitos reais limitados, tal qual os direitos reais na coisa própria, não são direitos reais, ainda que instrumentalizem direitos reais. São instrumentais e, portanto, relacionados, não obstante sejam de coisas autônomas, assim como autônomo é o conceito de domínio e propriedade, justamente por este último ser um regime de titularidade'. (ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos contemporâneos. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 202).
[4] Ricardo Aronne visitou os clássicos, mergulhou na pesquisa e construiu a arquitetura de um pensamento vanguardista e contestador, como se pode haurir deste trecho: 'Definida a propriedade conduzida à condição de núcleo da disciplina do direito das coisas, decorreram consequências jurídicas desta opção política. Exemplo se alcança nos direitos reais sobre coisas alheias. Caracterizados como elementos decorrentes da propriedade (identificada ao domínio, pelo nada neutro discurso da dogmática oitocentista), se identificaram às titularidades. Daí o art. 1.225 do Código, denominar titularidades como direitos reais. Até o final do século XX, alguns pressupostos aqui erigidos, não seriam mais discutidos com efetividade. O positivismo afastaria a epistemologia jurídica da controvérsia da legitimidade, para um discurso sobre validade e eficácia. Não se discutirá mais, por um longo curso histórico, entrecortado por Leon Duguit, o caráter absoluto da propriedade e sim como este ocorre e como melhor se caracteriza, de um ponto de vista cientificamente puro. Kant influenciou toda a ciência que se produziu na modernidade. No Direito não se verificou diferente. Ele imprime sua marca de Savigny a Kelsen. Para a metafísica, a dimensão da liberdade e do agir humano, são fundamentais para a construção do fenômeno jurídico' (ARONNE, Ricardo. Os Direitos Reais na Constitucionalização do Direito Civil. Direito &: Justiça (Porto Alegre. Online), v. 39, p. 175-196, 2013).
[5] ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos contemporâneos. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 100.
[6] Deste mister não se furtaram outros, vide GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. A Posse como Direito Autônomo. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. v. 1. 282p.
[7] ARONNE, Ricardo. 'O Direito Civil-Constitucional e o Reino da Dinamarca: Hamlet, Codificação e o fantasma paterno' In Revista do Mestrado em Direito (UFAL), v. 6 n 3, p. 37-64, 2015.
Por Luiz Edson Fachin - Ministro do STF e do TSE e Alma mater: UFPR.
FACHIN, Ministro Luiz Edson Fachin. Prefácio para a obra 'O Caos no Discurso Jurídico: uma homenagem a Ricardo Aronne' – in memorian. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1545, 24 de Agosto de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/prefacio-para-a-obra-o-caos-no-discurso-juridico-uma-homenagem-a-ricardo-aronne-in-memorian.html