SENTENCIA 17/2017 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE ESPAÑA E A REALIZAÇÃO SUBSTANTIVA DO DIREITO FUNDAMENTAL DE GREVE FRENTE AO AVANÇO DE NOVAS TECNOLOGIAS
Resumo
O artigo objetiva tecer comentário crítico acerca da discussão apreciada na Sentencia 17/2017 do Tribunal Constitucional de España, em consideração à realização substantiva do direito fundamental de greve. Analisa-se, portanto, a controvérsia relativa ao emprego de meios tecnológicos não habituais para a suplantação de funções desempenhadas por trabalhadores grevistas e a caracterização de “esquirolaje tecnológico”. Para tanto, desenvolve-se análise acerca da fundamentalidade do direito de greve e, em seguida, investiga-se a discussão à luz do princípio de interpretação constitucional de máxima efetividade e eficácia da Constituição, bem como em observância à concepção de direito como integridade. Conclui-se, por fim, que a decisão do Tribunal Pleno desalinha-se da plena concretização do direito fundamental em estudo, bem como rompe com tradição jurisdicional consolidada no que tange à tutela do exercício de greve. A pesquisa desenvolvida é bibliográfica e tem como método de abordagem o dialético e de interpretação sistemático.
Palavras-chave: Sentencia 17/2017 do Tribunal Constitucional de España. Direito de Greve. Novas Tecnologias. Direitos Fundamentais.
Abstract:
The article aims to develop a critical comment on the discussion approached in Sentencia 17/2017 of the Constitutional Court of Spain, in view of the substantive realization of the fundamental right to strike. Therefore, the controversy related to the use of unusual technological means to supplant functions performed by strikers and the characterization of “esquirolaje tecnológico” is analysed. For that, an analysis about the fundamentality of the right to strike is developed and, afterwards, the discussion is analyzed in the light of the constitutional principle of maximum effectiveness and efficacy of the Constitution, as well as in observance of the concept of right as integrity. Finally, it is concluded that the decision of the Full Court is out of line with the maximum implementation of the fundamental right under study, as well as breaking with the consolidated jurisdictional tradition regarding the protection of the exercise of strikes. The research developed is bibliographical and its method of approach is the dialectic and of interpretation is systematic.
Keywords: Sentencia 17/2017 of Tribunal Constitucional de España. Right to Strike. New Technologies. Fundamental Rights.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO. 2 SÍNTESE DA SENTENCIA 17/2017 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE ESPAÑA. 3 A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO DE GREVE NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO E ESPANHOL. 4. A REALIZAÇÃO SUBSTANTIVA DO DIREITO FUNDAMENTAL DE GREVE FRENTE AO AVANÇO DE NOVAS TECNOLOGIAS. 4.1 A REALIZAÇÃO SUBSTANTIVA DO DIREITO FUNDAMENTAL DE GREVE E A MÁXIMA EFETIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO. 4.2 A REALIZAÇÃO SUBSTANTIVA DO DIREITO FUNDAMENTAL DE GREVE E O DIREITO COMO INTEGRIDADE. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
1 INTRODUÇÃO
O aperfeiçoamento tecnológico impacta em diferentes âmbitos na seara laboral, inclusive, no que tange às relações coletivas de trabalho. A articulação de greves passa a apresentar novos contornos e possibilidades de agenciamento por intermédio de instrumentos telemáticos; contudo, também sofre com o surgimento de medidas que mitigam os reflexos da parada de trabalhadores grevistas.
Nessa conjuntura, a Sentencia 17/2017 do Tribunal Constitucional de España enfrentou a demanda promovida pela Confederación General del Trabajo em face da Radio Televisón Madrid (Telemadrid), na qual fora formulada acusação de violação ao direito fundamental de greve em decorrência do emprego de tecnologias não habituais para realizar a transmissão de partida de futebol da Champions League, em 29 de setembro de 2011. A controvérsia tem como eixo central, portanto, a acusação de prática de “esquirolaje técnico” – isto é, a utilização de meios tecnológicos visando tornar inócuas as organizações de greves.
Com base na Sentencia 17/2017, o presente trabalho busca tecer comentário crítico acerca do fenômeno de “esquirolaje tecnológico”, desenvolvendo análise sobre a caracterização – ou não – de violação ao direito de greve em decorrência do uso de meios tecnológicos não habituais para o desempenho de atividades que, em costume, são realizadas por trabalhadores grevistas. Para tanto, utilizou-se de pesquisa bibliográfica, amparada em textos clássicos e literatura científica especializada, bem como do método de abordagem essencialmente dialético e de interpretação sistemático, buscando-se apreciar a temática em atenção ao sistema jurídico constitucional.
Com o objetivo de contribuir para a discussão objeto da decisão em estudo, estruturou-se o comentário crítico iniciando-se por breve descrição da controvérsia debatida na Sentencia 17/2017 do Tribunal Constitucional de Espanã. Em seguida, tecem-se considerações acerca da fundamentalidade do direito de greve tanto no ordenamento pátrio quanto no espanhol. Ainda a título de desenvolvimento, analisa-se a discussão à luz de dois eixos principais, quais sejam: o princípio de interpretação constitucional de máxima eficácia e efetividade da Constituição e, por fim, em atenção à concepção de direito como integridade em Dworkin.
2 SÍNTESE DA SENTENCIA 17/2017 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE ESPAÑA
O julgado em análise trata-se da Sentencia 17/2017 do Tribunal Constitucional de España, responsável por apreciar a alegação da Confederación General del Trabajo (CGT) no sentido de que a Radio Televisón Madrid (Telemadrid) teria incorrido em violação ao direito de greve, previsto no artigo 28.2 da Constituição Espanhola de 1978, ao utilizar-se de técnicas “não convencionais” para a substituição de trabalhadores grevistas. Em que pese a Confederación General del Trabajo (CGT) tenha ventilado, em suas razões recursais, outras supostas violações ao texto constitucional, fora recepcionado para análise de mérito perante o Tribunal Constitucional tão somente a discussão relativa ao artigo 28.2, que reconhece “o direito à greve dos trabalhadores para defesa de seus interesses”.
A controvérsia emerge em decorrência da transmissão, pela Telemadrid, de partida da Champions League em 29 de setembro de 2011, data em que estava declarada greve geral pelo período de 24 (vinte e quatro) horas. Durante todo o dia da greve geral, em detrimento da programação normal, fora transmitido tão somente um anúncio comunicando a ocorrência da greve em curso. Excetuou-se, contudo, a partida da Champions League, que fora transmitida por meios não convencionais durante uma hora e quarenta e cinco minutos.
A transmissão da partida em comento fez-se possível por meio da atuação de três trabalhadores que não aderiram à greve geral, aliada ao uso de meios técnicos “extraordinários”. Para compreensão da discussão, importa observar que o funcionamento normal das transmissões se dá mediante a seguinte dinâmica: (i) o sinal chega até a antena da Telemadrid e vai ao Controle Central, que o redireciona para a locução; (ii) o locutor realiza a locução e, automaticamente, o sinal retorna ao Controle Central; (iii) o Controle Central encaminha o sinal, já com a locução, ao Departamento de Continuidade, onde é efetuada a colocação do símbolo (a “mosca”) da Telemadrid; (iv) após a colocação do símbolo, o sinal é enviado por meio do Codificador A; e (v) a empresa contratada Abertis ativa o codificador A, que está recebendo o sinal, e o envia aos telespectadores.
Ocorre que, na data da greve, todos os trabalhadores do Departamento de Continuidade aderiram ao movimento grevista. Portanto, a transmissão da partida se deu a partir da atuação de três empregados não grevistas – quais sejam, um trabalhador do Controle Central, um locutor e um coordenador que atuava no Departamento Gráfico. Com amparo das atividades executadas por estes três trabalhadores, e com o emprego de tecnologia não habitual – o uso do codificador reserva, nomeadamente, o Codificador B – a Telemadrid logrou transmitir a partida da Champions League durante a greve geral dos trabalhadores.
Esclarece-se, por conseguinte, que no dia da greve a partida de futebol fora transmitida com as seguintes alterações no procedimento comum: (i) o símbolo da Telemadrid (a “mosca”) fora inserida pelo coordenador que atuava no Departamento Gráfico, e não no Departamento de Continuidade, haja vista que todos os trabalhadores do Departamento de Continuidade aderiram à greve; (ii) tendo em vista que o Codificador A vinculava-se ao Departamento de Continuidade, o trabalhador do Controle Central não grevista, além de encaminhar o sinal para o responsável pela locução – que também não estava em greve –, utilizou-se do Codificador B (reserva), que não dependia do Departamento de Continuidade, para transmitir o sinal para a empresa Abertis, que promoveu a transmissão do jogo aos telespectadores. Desta forma, fora utilizado meio tecnológico – Codificador B (reserva) – de uso não habitual para suprimir a necessidade dos trabalhadores do Departamento de Continuidade na transmissão da partida da Champions League.
Embora a Confederación General del Trabajo (CGT) tenha alegado que tal conduta violara o direito fundamental de greve dos trabalhadores, na medida em que mitigou o impacto do movimento grevista, o Tribunal Constitucional de España proferiu entendimento no sentido de que não se vislumbraria violação ao artigo 28.2 da Constituição Espanhola. Para tanto, o entendimento majoritário do Tribunal Pleno fundamentou-se em dois aspectos, quais sejam, (i) que não estava constatada a alteração de funções dos trabalhadores não grevistas, visto que o coordenador supervisiona e, portanto, responsabiliza-se, pela atividade que desempenhou (colocação do símbolo) – afastando, assim, as alegações de “esquirolaje interna”; e que (ii) a empresa já dispunha dos meios tecnológicos (Codificador B) extraordinários que viabilizaram a transmissão da partida, dispensando a usual atuação dos trabalhadores do Departamento de Continuidade – afastando, também, as alegações relativas ao “esquirolaje tecnológico”.
Registra-se que o parecer do Ministério Fiscal fora no sentido da procedência do pleito representativo dos trabalhadores, restando destacado que houve a suplantação absoluta das funções dos trabalhadores grevistas, bem como que não se pode permitir que a interrupção da atividade dos empregados grevistas torne-se inócua em virtude de atuações extraordinárias e do uso de técnicas não habituais. Ademais, em voto vencido, o magistrado don
Fernando Valdés Dal-Ré defende que houve tanto a alteração de funções dos empregados não grevistas (“esquirolaje interno”) quanto “esquirolaje tecnológico”.
O magistrado vencido aponta a caracterização de “esquirolaje interno” na medida em que o coordenador executou a colocação do símbolo da Telemadrid a partir do Departamento Gráfico, atividade que é de responsabilidade dos empregados do Departamento de Continuidade. Quanto ao esquirolaje tecnológico, acusou o descaso do Pleno do Tribunal Constitucional na tutela da efetividade dos preceitos constitucionais ante o incremento do
uso de novas tecnologias.
Diante desse cenário, interessa a análise da realização substantiva do direito fundamental de greve frente ao avanço de novas tecnologias nas relações de trabalho. Delimita-se que o presente estudo endereça-se a tecer comentário crítico em relação às alegações de ocorrência de esquirolaje tecnológico – isto é, de práticas que mitiguem os efeitos de movimentos de greve através da substituição de grevistas mediante tecnologia –, não se debruçando sobre a controvérsia relativa, especificamente, à atuação dos empregados não grevistas na suplantação de funções dos trabalhadores que aderiram à greve geral.
3 A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO DE GREVE NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO E ESPANHOL
O direito de greve é caracterizado pela recusa de continuidade do trabalho, impondo ruptura com a rotina laborativa, assim como pelo seu caráter coletivo – trata-se, portanto, de um direito “individual de exercício coletivo” (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2014, recurso eletrônico sem paginação). O exercício de direito se expressa enquanto ferramenta de pressão obreira, que tem seu sucesso vinculado a dois fatores apontados por Boucinhas Filho (2019, p. 534), quais sejam, a adesão e a oportunidade. Pondera o autor, assim, que uma greve com ampla adesão, mas sem oportunidade – a título de exemplo, em um período de pouca atividade – tem sua probabilidade de êxito significativamente reduzida.
Quanto à definição da oportunidade do exercício do direito de greve, assim como dos interesses buscados com a organização do movimento, Stürmer (2014, p. 106) destaca que se trata de prerrogativa dos trabalhadores. Observa-se, ademais, que a caracterização de greve legal, em atenção aos ensinamentos de Segadas Vianna (1986, p. 31), demanda quatro elementos, quais sejam, (i) que a parada do trabalho seja realizada e deliberada em coletivo; (ii) que seja temporária; e (iii) que busque o atendimento de reivindicações ou o reconhecimento de direitos; e (iv) seja realizada nos termos da lei.
Ainda no que tange à conceituação de greve, observa-se que a Lei de Greve dispõe, em seu artigo 2º, que seu exercício se trata da “suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador”. A doutrina de Godinho Delgado (2019, p. 1704), ao discorrer sobre o exercício do direito de greve, destaca enquanto elementos fundamentais o caráter coletivo do movimento, a sustação provisória das atividades dos trabalhadores grevistas, o exercício do direito de coerção, os objetivos profissionais ou extraprofissionais e o enquadramento variável do prazo de duração.
Em que pese a greve legal já receba tratamento pertinente há décadas, registra-se que, quando da origem das articulações coletivas, o movimento sofrera forte repressão. Nesse sentido, Zangrando (1994, p. 11) revisa que, na França, a Lei Chapelier de 1791 estabelecia penas até mesmo para as empresas que admitissem trabalhadores envolvidos com greves; assim como, na Inglaterra, os Combination Acts de 1779 davam tratativa de crime penal de conspiração às coalizões de trabalhadores. Embora os movimentos grevistas já tenham sido alocados como iniciativas contrárias aos objetivos do Estado, encontram-se, no atual ordenamento jurídico, tanto no pátrio quanto no espanhol, alçados à condição direito fundamental dos trabalhadores.
No que tange ao texto constitucional pátrio, o direito de greve encontra-se previsto no rol de direitos sociais – capítulo que abarca os direitos dos trabalhadores, fazendo parte do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais (STÜRMER, 2007, p. 79) –, especialmente no artigo 9º, que dispõe que é “assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. Por consequência, o direito de greve encontra-se no escopo dos direitos fundamentais e, de acordo com os ensinamentos de Sarlet (2018, p.78), guarda tanto fundamentalidade em sentido material – por seu “conteúdo e importância” – quanto em sentido formal, haja vista sua previsão expressa no texto constitucional.
Trata-se, desta forma, de direito retirado da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (SARLET, 2018, p. 78). Ao tratar dos direitos fundamentais enquanto instituições, Luhmann (2010, p. 86) faz referência a expectativas socialmente generalizadas que formam a estrutura do sistema social que, nesta medida e em atenção a sua função, são passíveis de positivação. Relacionando-se ao desenvolvimento da sociedade – e, por consequência, distinguindo-se dos “eternos” direitos humanos – os direitos fundamentais promovem a instituição da ordem social:
Los derechos fundamentales sirven al orden social industrial-burocrático como una de las instituciones (entre otras muchas funcionalmente equivalentes) que ayudan a consolidar la índole de la comunicación, con el fin de mantenerla completamente abierta a la diferenciación (LUHMANN, 2010, p. 99).
Também ao tratar das funções dos direitos fundamentais, Kühling (2011, p. 492) descreve as distinções entre os direitos fundamentais negativos e os que consistem em obrigações positivas. Como direitos negativos – ou subjetivos – encontram-se aqueles que se endereçam ao impedimento da interferência de autoridades estatais. Neste grupo, encontram-se o direito de greve e o de livre agremiação de trabalhadores, na medida em que objetivam que o Estado não promova restrição a estas expressões de articulação coletiva na seara laboral[2].
Ainda quanto à fundamentalidade e ao abrigo constitucional do direito de greve, Sarlet (2020, p. 15-16) defende a aplicação do artigo 60, §4º, inc. IV, da Constituição Federal de 1988 aos direitos previstos no Título II – Dos Direitos Sociais. Para tanto, privilegia a interpretação sistemática do texto constitucional, haja vista que a mera interpretação literal não dá conta de alcançar a compreensão do sistema constitucional em seu conjunto. Destaca-se, nesta senda, que o princípio do Estado Social é integrante da identidade constitucional brasileira e que se identifica “a vinculação dos direitos fundamentais sociais com a concepção de Estado consagrada na CF” (SARLET, 2020, p. 16).
Ao tratar de da crise de inefetividade dos direitos sociais e da história constitucional da Alemanha, apontando para a dependência de atuação legislativa, Sarlet e Godoy (2021, p. 197-8) indicam que tal modelo é predominante no ordenamento Português e Espanhol. Em articulação da garantia constitucional com a legislação infraconstitucional, observa-se que, no ordenamento espanhol, a referência expressa à vedação da substituição de trabalhadores grevistas[3] por novos trabalhadores contratados encontra previsão no Real Decreto-ley 17/1977[4], constando no texto constitucional, em seu artigo 28.2, apenas a garantia do direito de greve[5]:
Artículo 28.2. Se reconoce el derecho a la huelga de los trabajadores para la defensa de sus intereses. La ley que regule el ejercicio de este derecho establecerá las garantías precisas para asegurar el mantenimiento de los servicios esenciales de la comunidade.
Desta forma, a partir da Constituição Espanhola de 1978, o direito de greve alça a condição de direito fundamental no ordenamento constitucional espanhol (MONTOYA MELGAR, 2004, p. 18). Ao tratar da fundamentalidade do direito de greve, a partir do teor do artigo 28.2 da Constituição Espanhola, Ojeda Avilés (2003, p. 511) destaca que o exercício de greve passa a configurar-se enquanto direito indisponível e, portanto, sua mitigação não pode ser objeto de contratação.
O doutrinador espanhol sublinha, ainda, que o sentido do direito de greve volta-se à participação dos trabalhadores e obriga poderes políticos e econômicos a recepcionar os interesses dos trabalhadores. Sendo assim, tem um caráter de compensação e de equilíbrio de poderes, o que justifica a valorosa posição de direito fundamental que recebe na Constituição Espanhola de 1978 (OJEDA AVILÉS, 2003, p. 513). Observa-se, nesse sentido, que a greve guarda importante significado político para o Estado Democrático de Direito, tratando-se de instrumento para concretização e ampliação de direitos sociais e promovendo maior justiça e igualdade à classe trabalhadora (GRAU, 2011, p. 2).
Verifica-se, outrossim, que a efetivação de direitos fundamentais nas relações de trabalho consolida-se enquanto aspecto elementar na afirmação da cidadania social e ampara a preservação da democracia (GODINHO DELGADO, 2007, p. 13). A busca pela realização substantiva das garantias constitucionais, então, é imprescindível para a manutenção do estado democrático social de direito (STRECK, 2003, p. 261). Diante disso, interessa a análise crítica da Sentencia 17/2017 em atenção à concretização do direito de exercício de greve frente aos desafios impostos pelas novas tecnologias na substituição de trabalhadores grevistas.
4 A REALIZAÇÃO SUBSTANTIVA DO DIREITO FUNDAMENTAL DE GREVE FRENTE AO AVANÇO DE NOVAS TECNOLOGIAS
A partir da análise desenvolvida, constata-se que o direito de greve guarda fundamentalidade tanto no ordenamento jurídico pátrio quanto no espanhol. Além disso, a tratativa apresenta semelhança também no que diz respeito à vedação de substituição de trabalhadores grevistas por novos trabalhadores – isto é, o texto constitucional (artigo 9º, § 1º, da CF/88 da República Federativa do Brasil e o artigo 28.2 da Constituição Espanhola de 1989) estabelece que a lei regulará o exercício de greve e, a legislação infraconstitucional, por sua vez, dispõe acerca da vedação de substituição de trabalhadores grevistas (Artigo 6.5 do Decreto-ley 17/1977 e Artigo 7º, parágrafo único, da Lei n. 7.783/1989).
Todavia, em ambos os ordenamentos jurídicos não há dispositivo legal ou infraconstitucional tratando, expressamente, acerca da substituição de trabalhadores grevistas por novas tecnologias – temática discutida no caso da transmissão da partida da Champions League pela Telemadrid. Visando desenvolver cotejo analítico da Sentencia 17/2017 do Tribunal Constitucional de España, se abarcará a realização substantiva do direito de greve ante o desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente no que tange à substituição de trabalhadores grevistas por instrumentos tecnológicos, a partir de dois principais eixos – quais sejam, o princípio de interpretação constitucional de máxima efetividade da constituição e a concepção de direito como integridade de Ronald Dworkin.
4.1 A realização substantiva do Direito Fundamental de Greve e a Máxima Efetividade da Constituição
Em atenção aos diferentes reflexos das novas tecnologias em ambiente de trabalho, Stürmer e Coimbra (2018, p. 143) registram a preocupação com a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, valor-eixo que, embora não permita conceituação fixista, autoriza assegurar sua qualidade intrínseca, irrenunciável e inalienável (SARLET, 2019, p. 50-1)[6]. Quanto aos reflexos do desenvolvimento tecnológico em movimentos coletivos de trabalhadores, Harari (2018, p. 60) identifica a dificuldade de atualização de bases que ampararam a atuação coletiva obreira em momentos históricos anteriores, na medida em que, mais do que frente a sua exploração, as massas passam a ter de lutar contra a sua irrelevância em decorrência da substituição do trabalho humano.
A apreciação do direito fundamental de greve, nesse cenário, deve dar-se em atenção às alterações impostas pelas novas tecnologias na seara laboral, inclusive, no que toca à mitigação da potencialidade das articulações coletivas pela substituição dos trabalhadores por novas tecnologias. Importa privilegiar, nesta conjuntura, o desenvolvimento de uma interpretação sistemática e a compreensão do sistema jurídico como aberto e suscetível de aperfeiçoamento, concebendo-o como uma unidade dinâmica de sentido, conforme ensina Canaris (2002, p. 107-8):
[...] Segue-se, daí, finalmente, que o sistema, como unidade de sentido, compartilha de uma ordem jurídica concreta no seu modo de ser, isto é, que tal como esta, não é estático, mas dinâmico, assumindo pois a estrutura da historicidade (CANARIS, 2002, p. 107-8).
Em sentido similar, Freitas (2010, p. 65) enfatiza que a atuação do intérprete sistemático deve dar-se de maneira a promover um diálogo construtivo entre o texto normativo e a sua realidade. Por conseguinte, a tutela jurisdicional não se restringe a aplicação literal do texto positivado, devendo atentar-se a todo o sistema jurídico[7] para alçar os objetivos justificadores do Estado:
[...] todo intérprete tópico-sistemático, na condição de positivador derradeiro, culmina o aperfeiçoamento do Direito Positivo e, em razão disso, não presta vassalagem às normas em sentido estrito, nem aceita – subalterno – horrendas omissões impeditivas da tutela inadiável do aludido núcleo essencial dos direitos nas suas múltiplas faces (FREITAS, 2010, p. 71).
No âmbito de análise da controvérsia objeto da Sentencia 17/2017, a concepção sistemática de interpretação sustenta máxima importância, na medida em que ratifica a relevância da historicidade e da compreensão do ordenamento como um todo integrado. No enfrentamento do “esquirolaje tecnológico” – enquanto práticas que tornam inócuo o exercício do direito de greve por meio do uso de tecnologias – impera sopesar, portanto, que a ausência de referência expressa que vede a substituição de trabalhadores por tecnologias não culmina na plena aceitação de práticas que frustrem o direito de greve.
Ademais, a compreensão da historicidade, tanto da norma em sentido estrito quanto do fenômeno submetido à exame jurisdicional, faz-se fundamental. Observa-se que, no ordenamento jurídico espanhol, assim como no pátrio, a legislação infraconstitucional que regula o direito de greve tem sua promulgação entre as décadas de 70 e 80 – portanto, os desafios vinculados às novas tecnologias passam à margem da regulamentação vigente. Nesse sentido, o voto vencido do magistrado Fernando Valdés Dal-Ré defende a necessidade de atualização da tutela dos direitos fundamentais na seara laboral para o acompanhamento das repercussões do avanço tecnológico, que demandam novas respostas:
[...] requieren respuestas constitucionales también nuevas, que garanticen la protección de los derechos más esenciales de los trabajadores en un grado asimilable al que ofreció nuestra jurisprudencia en el pasado, cuando dichos medios tecnológicos carecían del desarrollo y de la potencialidad restrictiva con los que ahora cuentan. (TRIBUNAL DE ESPAÑA, 2017, p. 18029)
A preocupação com a eficácia dos direitos garantidos por força constitucional ante as alterações dos cenários e desafios nas relações de trabalho encontra amparo nos princípios de interpretação constitucional, especialmente do princípio operativo da máxima efetividade da constituição. De acordo com os ensinamentos de Canotilho (2003, p. 1224), o referido princípio estabelece que “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê”, e é especialmente relevante quando se encontram em discussão direitos fundamentais; nas palavras do doutrinador, “no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 2003, p. 1224).
Com amparo nos ensinamentos de Canotilho, Sarlet (2020, p. 984) trata do princípio de interpretação constitucional da máxima eficácia e efetividade da Constituição como vinculado ao plano de concretização do texto constitucional. Assim, o princípio em comento opera no sentido de promover a maior aproximação entre a norma fundamental e a realidade social (SARLET, 2020, p. 984).
O emprego do princípio orientador em tela favorece interpretação favorável ao pleito dos trabalhadores, considerando que, frente às provocações de um novo cenário em que tecnologias viabilizam a mitigação do efeito de greves, importa almejar a máxima efetividade do direito fundamental ao exercício de greve. Por conseguinte, a partir de uma concepção de Canaris de direito como um sistema aberto – e que, portanto, tolera atualizações e dinamismo em prol da sua própria sobrevivência e efetividade – e em preocupação com a máxima eficácia na concretização dos direitos fundamentais, entende-se por viável a ampliação da tutela do direito de greve por meio da vedação de substituição de trabalhadores grevistas por tecnologias de uso “extraordinário”.
4.2 A realização substantiva do Direito Fundamental de Greve e o Direito como Integridade
O Tribunal Constitucional de España, ao analisar a discussão desenvolvida pela Confederación General del Trabajo (CGT) em face da Telemadrid, se deparou, no que toca às alegações de ocorrência de “esquirolaje tecnológico”, com um novo desafio nas relações coletivas de trabalho e, portanto, fez-se necessário um acréscimo na tradição que interpreta. Diante disso, interessa a articulação dos ensinamentos de Dworkin quanto à concepção de direito enquanto integridade.
Conforme reconhece Peset (2020, p. 104), as alterações na tutela do direito de greve vinculadas ao desenvolvimento tecnológico demandam a abertura de uma intensa reflexão sobre a adequação de soluções neste panorama. Além disso, considerando que não há dispositivos regulando a substituição de trabalhadores grevistas por tecnologias, faz-se necessária atuação jurisdicional que também vise à promoção de segurança jurídica (BELLO; JAEGER SILVA, 2021, p. 187).
Para tanto, faz-se necessário contextualizar a proibição de práticas de “esquirolaje”. Como retoma Gordillo (2019, p. 340-1), a legislação responsável por regular o direito de greve proíbe expressamente tão somente a “esquirolaje externa” – isto é, a contratação de novos empregados para substituir trabalhadores grevistas durante o movimento coletivo. Não obstante, visando à concretização do direito fundamental de greve, o Tribunal Constitucional de España consolidou entendimento, por meio da STC 123/1992 e da STC 33/2011, que amplia a proibição para vedar, também, a alteração de funções habituais de trabalhadores não grevistas visando suplantar as atividades rotineiras de trabalhadores que aderiram à greve. Assentou-se, portanto, que tal frustração do êxito das medidas grevistas trata-se de uso abusivo do jus variandi empresarial:
Por lo que respecta al art. 6.5 Real Decreto-ley sobre relaciones de trabajo de 4 de marzo de 1977, debe entenderse que su ratio última, no es otra sino impedir que el superior poderío económico del empresario pueda hacer inviable el derecho de huelga y por ello ha de ser interpretado sistemáticamente en el contexto de ese derecho constitucional de huelga, quedando así proscritas las variaciones artificiales de las plantillas que se encaminen a desnaturalizar los propósitos paralizadores de la actividad laboral que en general persigue la huelga. Por ello, en el caso presente, el cambio de adscripción laboral de trabajadores, descendiendo para ello en la escala de clasificación profesional, con el claro propósito de minimizar o anular la huelga, hay un propósito claramente atentatorio contra el derecho establecido en el art. 28.2 de la Constitución, sin que sea viable una interpretación literalista (TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE ESPAÑA, STC 123/1992).
la “sustitución interna” de huelguistas durante la medida de conflicto constituye un ejercicio abusivo del ius variandi empresarial, derecho que, con los límites legalmente previstos, corresponde al empresario en otras situaciones. Pero en un contexto de huelga legítima el referido ius variandi no puede alcanzar a la sustitución del trabajo que debían haber desempeñado los huelguistas por parte de quien en situaciones ordinarias no tiene asignadas tales funciones; ya que, en tal caso, quedaría anulada o aminorada la presión ejercida legítimamente por los huelguistas a través de la paralización del Trabajo (TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE ESPAÑA, STC 33/2011).
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Ao tratar do direito enquanto integridade – admitindo que o direito é tanto produto de prática jurídica quanto sua fonte de inspiração (DWORKIN, 2014, p. 273) – privilegia-se a coerência e continuidade, de maneira que a prática atual, ao promover acréscimos na tradição que interpreta, deve atentar à dimensão de adequação (DWORKIN, 2014, p. 275-7). Dworkin (2014, p. 276) apresenta, assim, uma concepção de “romance em cadeia”, tratando a construção do direito a partir da ideia de um projeto escrito por um grupo de romancistas, que buscam promover uma cadeia coerente para a narrativa desenvolvida.
A busca do romance “substancialmente melhor” vincula-se, portanto, à opção interpretativa que melhor alinha-se ao conjunto narrativo construído até o momento, atentando-se aos princípios de justiça e equidade (DWORKIN, 2014, p. 272-281). Em análise a respeito do posicionamento jurisprudencial espanhol acerca da apreciação do fenômeno que vem sendo referido enquanto “esquirolaje tecnológico” e preocupando-se com a ausência de atualização na regulação do direito em comento, Visconti (2013, p. 12) conclui pela necessidade de obter uma tese consolidada para seja capaz de tutelar o direito de greve em novas conjunturas. Refere, ainda, a importância de contemplar a construção doutrinária e jurisprudencial no que tange ao “esquirolaje interno”:
No obstante, el sentido que se le debería de otorgar a esta interpretación amplia tendría que ser similar al proferido en los casos del denominado esquirolaje interno, donde ya existe cierta madurez jurisprudencial y doctrinal. (VISCONTI, 2013, p. 12).
Observa-se, a partir da tratativa das práticas de “esquirolaje interna” na STC 123/1992 e da STC 33/2011, que o fato de os trabalhadores não grevistas já integrarem a dimensão organizativa da empresa não implica na autorização para que estes substituam, por meio do desempenho de atividades não habituais, trabalhadores grevistas. Diante da consolidação destes precedentes, observa-se que o Tribunal Constitucional de España, na STC 17/2017, escapou à tradição de tutela da realização substantiva do direito fundamental de greve, ao afastar a ocorrência de “esquirolaje tecnológico” com fundamento de que a Telemadrid já dispunha do Codificador B quando da ocorrência da greve, fazendo apenas uso “não habitual” desta tecnologia.
Entretanto, se a alteração na alocação de trabalhadores – mesmo que com contratação anterior ao movimento grevista – para mitigação dos impactos da greve encontra-se vedada (STC 123/1992 e STC 33/2011), a interpretação que garante a continuidade da tradição de tutela do direito fundamental previsto no artigo 28.2 da Constituição Espanhola seria pela impossibilidade, em mesma medida, de alteração do uso habitual de tecnologias para suplantação das atividades de responsabilidade de trabalhadores grevistas. Por consequência, considerando que a transmissão habitual da programação, por meio do Codificador A, dependia do Departamento de Continuidade, uma vez que todos os trabalhadores deste departamento aderem à greve geral de 29 de setembro de 2011, o uso extraordinário de outro instrumento telemático (Codificador B) culminou, ao menos durante a partida da Champions League, que a parada daqueles trabalhadores se tornasse inócua – ainda que absolutamente necessária para as transmissões na dinâmica costumeira da empresa.
Nesta linha, quando os meios tecnológicos empregados durante a greve não são habituais – ainda que já contratados, assim como os trabalhadores não grevistas na hipótese de “esquirolaje interna” – merece reconhecimento a ocorrência de vulneração do exercício do direito de greve (PÉREZ REY, 2013, p. 174). Em sentido similar, Gordillo (2019, p. 351-2) também reconhece a ruptura da Sentencia 17/2017 com o entendimento anterior consolidado pelo Tribunal Constitucional de España:
La argumentación podría ser similar a la que se esgrime en los casos de esquirolaje interno pues, al igual que está prohibido que los trabajadores que no secundan la huelga realicen funciones diferentes de las que tienen ordinariamente encomendadas para sustituir a los trabajadores huelguistas, tampoco pueden emplearse medios técnicos no habituales con la misma finalidad (GORDILLO, 2019, p 351-2).
Entendendo o “esquirolaje tecnológico” como a utilização, pelo empregador, de meios tecnológicos para continuar suas atividades produtivas durante movimentos grevistas (MUÑOZ, 2018, p. 189), Muñoz (2018, p. 213-4) ratifica o entendimento majoritário da doutrina científica no sentido de que, frente à compreensão do espírito da norma constitucional e da obsolescência da legislação regulamentadora, as práticas que diluem os efeitos da parada dos trabalhadores por intermédio de tecnologias merecem proibição.
A partir da concepção de direito enquanto integridade e em observância à tradição interpretativa consolidada no que tange ao “esquirola interno” pelo Tribunal Constitucional de España na STC 123/1992 e na STC 33/2011, identifica-se que o Tribunal Pleno, quando da apreciação da controvérsia em face da Telemadrid na Sentencia 17/2017, promoveu ruptura com entendimentos anteriores. Conforme apontado em doutrina e literatura científica especializada, o caráter não habitual do meio tecnológico empregado conferiria em abuso do poder diretivo e implicaria em ataque ao direito de greve – assim, da mesma forma em que a alteração na alocação dos trabalhadores para o desempenho de atividades não costumeiras (“esquirolaje interno”) importa em violação ao artigo 28.2 da Constituição Espanhola, o uso extraordinário de meios tecnológicos merecia receber mesmo tratamento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo como base a discussão proposta pela Confederación General del Trabajo (CGT) em face da Telemadrid, na qual a emissora é acusada de violar o direito fundamental de greve por utilizar-se de meio tecnológico não habitual para transmissão de partida de futebol da Champions League, teceu-se comentário acerca da Sentencia 17/2017 do Tribunal Constitucional de España. Em suma, o Pleno do Tribunal proferiu entendimento no sentido de que, por já dispor do Codificador B – meio extraordinário que permitiu a transmissão da partida mesmo diante da parada de todos os trabalhadores do Departamento de Continuidade – a Telemadrid não teria incorrido em violação ao exercício de greve.
Objetivando a compreensão do direito que sustenta a discussão, foram traçadas considerações acerca da fundamentalidade do direito de greve tanto no ordenamento jurídico pátrio quanto no espanhol. Identificou-se que, em ambos, o texto constitucional garante aos trabalhadores, enquanto norma fundamental, o exercício do direito de greve – artigo 9º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e artigo 28.2 da Constituição Espanhola de 1978. Os ordenamentos apresentam semelhança, também, quanto à regulação infraconstitucional da tutela do direito de greve, havendo legislação, tanto no ordenamento brasileiro quanto espanhol, vedando a contração de trabalhadores para substituição de trabalhadores grevistas – artigo 6.5 do Decreto-ley 17/1977 e artigo 7º, parágrafo único, da Lei n. 7.783/1989.
Todavia, as normativas não dispõem expressamente acerca da substituição de trabalhadores grevistas por tecnologias. Diante disso, promoveu-se análise em atenção ao princípio de interpretação constitucional de máxima efetividade e eficácia da Constituição. À luz do referido princípio operador de interpretação constitucional, entende-se que a apreciação da discussão orienta-se no sentido de buscar a máxima concretização da tutela do direito fundamental de greve e, por conseguinte, merece ser reconhecida a vulneração ao exercício de greve frente à mitigação do movimento coletivo intermediada por novas tecnologias.
Tem-se em vista, ademais, a concepção do sistema jurídico enquanto sistema aberto. Na medida em que o sistema jurídico é dotado de historicidade e encontra-se em interação com a realidade, merece atenção a atualização de respostas frente às dinâmicas alterações nas relações de trabalho, sob pena de sustentação da obsolescência do próprio sistema jurídico.
Analisou-se o teor da Sentencia 17/2017, ainda, em consideração à compreensão de direito como integridade. Observando-se, assim, a definição de romance em cadeia de Dworkin, verificou-se que a decisão do Pleno do Tribunal em estudo promove ruptura na tradição interpretativa do Tribunal Constitucional de España, especialmente no que tange à STC 123/1992 e à STC 33/2011. Isto é, a melhor continuidade da consolidação do entendimento das referidas decisões – que reconhecem como abusiva a prática de substituir trabalhadores grevistas por meio da alocação de trabalhadores não grevistas em funções não habituais – direciona, por congruência e integridade, ao reconhecimento de que a alocação de meios tecnológicos para a execução de atividades não habituais, visando suplantar a falta dos trabalhadores grevistas, também ensejaria em vulneração ao direito fundamental de greve.
Desta forma, entende-se que a decisão proferida na Sentencia 17/2017, ao não reconhecer a ocorrência de “esquirolaje tecnológico” no caso em estudo, decide em sentido contrário à plena concretização do direito fundamental garantido no artigo 28.2 da Constituição Espanhola, assim como sustenta desalinhamento em relação à tradição de tutela do exercício de greve no Tribunal Constitucional de España. Faz-se fundamental, ademais, a continuidade de pesquisas voltadas à compreensão dos impactos de novas tecnologias nas relações coletivas de trabalho, assim como de possíveis respostas jurídicas para a tutela de direitos sociais nessa conjuntura.
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[1]Julise Lemonje- Mestranda em Direito pela PUCRS, na área de concentração Fundamentos Constitucionais de Direito Público e Privado. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UFRGS. Advogada e Psicóloga. Bolsista Pro-STRICTO PUCRS.
[2] Pondera-se que, mesmo que a European Court of Justice (ECJ) tenha reconhecido o direito de greve como direito fundamental europeu, o limita ao princípio da proporcionalidade, em atenção às demais liberdades fundamentais afetadas (RÖDL, 2011, p. 649).
[3] No ordenamento pátrio, a vedação da substituição de trabalhadores grevistas encontra-se garantida pelo disposto no parágrafo único do artigo 7º da Lei de Greve (Lei n. 7.783/1989), estabelecendo que “É vedada a rescisão de contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos arts. 9º e 14”.
[4] Artículo 6.5: En tanto dure la huelga, el empresario no podrá sustituir a los huelguistas por trabajadores que no estuviesen vinculados a la empresa al tiempo de ser comunicada la misma, salvo caso de incumplimiento de las obligaciones contenidas en el apartado número siete de este artículo.
[5] Artigo 28.2. Reconhece-se o direito à greve dos trabalhadores para a defesa dos seus interesses. A lei que regule o exercício deste direito estabelecerá as garantias necessárias para assegurar a manutenção dos serviços essenciais da comunidade.
[6] No aspecto, importa registras os ensinamentos de Sarlet no sentido de que, embora se discuta o “grau de vinculação do conteúdo de todos os direitos fundamentais às exigências do princípio da dignidade da pessoa humana” (SARLET, 2018, p. 55), observa-se que boa parte dos direitos sociais se vinculam tanto ao princípio da dignidade da pessoa humana quanto consagram o Estado Social de Direito (SARLET, 2018, p. 95).
[7] Registra-se que o autor compreende o conceito de sistema jurídico “como uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido amplo, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição” (FREITAS, 2010, p. 63).
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