Tutela jurisdicional do esbulho
Devo ao Juiz Ricardo de Carvalho Fraga o acesso aos dois textos que seguem:
1. O primeiro é um acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Em 4.9.98, invadiram as dependências da Agropecuária Primavera e expulsaram os funcionários da fazenda, o que ensejou a propositura de ação de reintegração de posse. : A magistrada de 1o grau concedeu a liminar, cassada pelo Des. Rui Portanova (plantonista), por decisão confirmada pela Câmara, por maioria de votos. Conduzindo a maioria, disse o Des. Guinter Spode:
'Para iniciar a apreciação, devemos ter bem presente o fato, em relação ao qual parece inexistir dúvida. Um grupo de colos 'sem terra' que, segundo afirmado pela empresa agravada, fazem parte do M.S.T. (Movimento dos Sem Terra), invadiu a Fazenda Primavera, no Município de Bossoroca, Comarca de São Luiz Gonzada. (...). Segundo consta, a área estaria em parte plantada e outra estaria sendo preparada para o plantio. Em suma, não se trata de área improdutiva, em conseqüência, insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária. De outro lado, os invasores, cerca de 600 famílias de 'sem terra', vinculadas ao M.S.T., ou seja, famílias que certamente já estão bom tempo acampadas no aguardo de uma solução para o seu problema. Lá pelas tantas, o grupo resolve invadir, e efetivamente invade, a Fazenda Primavera. Houve invasão? Houve! Sofreu a agravada esbulho na sua posse? Sofreu'!
Todavia, 'como referi de início, discute-se neste feito direitos fundamentais. (...). Assim, cabe perguntar: - Os direitos sociais, indispensáveis à dignidade humana, o direito ao trabalho, à escolha do trabalho, as condições satisfatórias de trabalho dos sem terra estão sendo respeitados? - Pode ser considerada socialmente digna a vida destas famílias, acampadas, sem as mínimas condições de higiene, saúde, segurança? Viver à margem de estradas e em barracas e sendo expulso ou despejado de um lugar para outro pode ser considerado socialmente digno? - E o direito ao trabalho? Os colonos sem terra são agricultores. Sua profissão é esta, mas para exerce-la necessitam de terras para plantar, como não possuem terras e não lhes são propiciados meios para adquiri-las, vêem-se na triste contingência de invadir áreas improdutivas ou que, mesmo que produtivas, estejam incluídas entre aquelas que o Poder Público poderia adquirir (como é o caso da Fazenda Primavera). (...). Voltando ao fato e resumindo o dilema que pende de solução, temos, de um lado, o esbulho à posse de uma empresa, de outro, os direitos fundamentais (o mínimo social) de 600 famílias a reclamar proteção. Evidente que a melhor alternativa para solver o litígio seria a conciliatória. Como esta não se viabilizou, vieram as partes a Juízo. Em suma, para decidir, ter-se-á, obrigatoriamente, de optar entre duas alternativas: 1a) - o prejuízo patrimonial que a invasão certamente causará (ou até já está causando) à empresa arrendatária das terras ocupadas: 2a) - a ofensa ao direitos fundamentais (ou a negativa do mínimo social) das 600 famílias dos 'sem terra' que, sendo retirados de lá, literalmente não têm para onde ir. (...). Espero que prevaleça, pelo menos em solo gaúcho (precursor das liberdades e defensor intransigente da democracia) a serenidade e a racionalidade, em detrimento da força. Voto (e concito meus eminentes pares a me acompanhar) pelo provimento do recurso, desconstituindo a liminar de reintegração de posse concedida em 1o grau' (TJRGS, 19aCâmara Cível, Agravo de Instrumento 598360402, Des. Guinther Spode, Redator para o acórdão, j. 6.10.1998).
2. O segundo texto é de autoria de Alexandre Freitas Câmara: '... não se pode esquecer da função social da posse, que é digna de proteção jurisdicional. Nos dias de hoje, é preciso ver a posse como um direito que, muitas vezes, estará em posição de ataque, e não defesa, em relação à propriedade. É chegada a hora de o jurista abandonar os exemplos tradicionalmente empregados, mas que muitas vezes são impossíveis de se verificar na prática, para examinar casos concretos, ou que podem acontecer na prática. Não se pode mais aceitar a utilização apenas dos exemplos maniqueístas, envolvendo relações simples, individuais, entre Caio e Tício. É certo que não há maior dificuldade em resolver um caso em que Caio invade um imóvel pertencente a Tício, esbulhando sua posse, e vindo este último a postular a tutela jurisdicional para o seu direito. A solução do problema, porém, já não seria tão fácil se a invasão do imóvel fosse feita por um grupo de 'sem-terras', num caso em que o imóvel invadido fosse um dos tantos latifúndios improdutivos espalhados pelo Brasil. É num caso como este que deve o jurista examinar qual dos dois interesses deve ser tutelado: a posse, exercida conforme sua função social: ou a propriedade, que não cumpre tal função, desrespeitando o comando constitucional que estabelece ser a função social da propriedade uma garantia fundamental. Parece-nos que a função social da posse a torna uma posição jurídica de proteção, ainda que confrontada com a propriedade, ou outro direito sobre a coisa, quando este segundo direito não cumpre sua função social' (Lições de Direito Processual Civil. 3. ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2001. p. 342).
3. O acórdão merece respeito, porque não falseia os fatos nem os conceitos. O texto doutrinário, porém, não pode fugir à crítica. Nele se afirma, corretamente, que : a posse merece proteção, independentemente da propriedade e mesmo contra ela. Mas é evidente que invasão dos sem-terra não pode ser tutelada a título de posse. A tutela jurisdicional dos invasores, no ato mesmo da invasão, é a própria negação da tutela da posse. É tutela jurisdicional do esbulho.
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Tutela jurisdicional do esbulho. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 1, nº 35, 15 de Mai de 2001. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/tutela-jurisdicional-do-esbulho.html