Tutela sumária irreversível
Há casos em que a liminar, concedida e executada, elimina o objeto do litígio, tornando praticamente inútil a continuação do processo.
José Carlos Barbosa Moreira exemplifica a hipótese com o bloqueio dos cruzados novos imposto pela Medida Provisória n. 168/90, convertida na Lei 8.024/90. Restaram bloqueados todos os depósitos bancários, inclusive contas-correntes, no valor excedente à pouco expressiva quantia de 50.000 cruzados novos. Muitos haviam assumido compromissos financeiros e contavam com tais depósitos para satisfaze-los. Adquirentes de bens a prestações viram-se impossibilitados de pagá-las. Noivos ficaram sem dinheiro para prover às despesas do casamento. Enfermos precisavam submeter-se a cirurgias de urgência, em alguns casos no exterior. Em casos extremos como esses, juízes concederam liminares, requeridas em ações ditas cautelares inominadas. Não se sabe de nenhum caso em que, liberado e gasto o dinheiro, haja sido restaurado o valor bloqueado. Na prática, revelou-se inútil a propositura de ação principal para declarar a juridicidade do desbloqueio (A tutela de urgência num episódio recente da História Política brasileira. In: MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual - Sétima Série. São Paulo, Saraiva, 2001. p. 31-7).
Outra hipótese é a de autorização, concedida a partido político, para a realização de comício eventualmente proibido pela autoridade policial. Outra, ainda, é a de autorização para a cremação de cadáver.
A inexistência de previsão legal não tem impedido a concessão dessas liminares que, na prática, valem como sentenças definitivas.
Já que o fenômeno existe, tratemos de estudá-lo, tentando determinar sua natureza e regulamentação legal possível.
É fora de dúvida que não se trata de medidas cautelares, porque não se limitam a assegurar o resultado prático de provável sentença futura.
Mais próxima é a figura da antecipação de tutela. Esta, porém, supõe a reversibilidade da medida (CPC, art. 273, § 2o). Além do obstáculo legal, há outro, de natureza lógica: há mais do que antecipação de tutela, quando desde logo se concede tutela definitiva.
Quanto à regulamentação legal, podemos começar pela política de avestruz: não regular a hipótese, porque é mais ou menos previsível que sua regulamentação, por mais limitadora que seja, não faça senão aumentar o número dessas medidas que afrontam o princípio do devido processo.
Embora tendo natureza diversa, pode-se imaginar procedimento em tudo igual à antecipação de tutela. Concedida e executada a liminar, o processo prosseguiria para declarar-se, por sentença, sua juridicidade ou injuridicidade. Nesta última hipótese, o requerente responderia por perdas e danos, por culpa ou objetivamente, no mesmo ou em outro processo.
Finalmente, pode-se imaginar uma regulação mais rente à realidade. A medida é concedida, talvez sem audiência da parte contrária. Sendo o caso, esta é notificada para cumprir a decisão. Não é citada para se defender, por inútil a defesa, em face da irreversibilidade da medida. Extinto o processo, caberia ação do prejudicado, configurando-se, assim, verdadeira inversão do contraditório.
Qual a natureza jurídica dessa medida que, de fato, senão de direito, é concedida e executada sem citação do réu, que apenas pode se defender depois de tudo consumado, quiçá apenas em outro processo?
Por maiores que sejam as controvérsias sobre o conceito de jurisdição, devemos desde logo afastar a tentação de qualificá-las como medidas administrativas. Não podendo senão ser concedidas pelo juiz, mesmo porque não raro requeridas contra a Administração Pública, não podem senão ser havidas como atos jurisdicionais. São atos judiciais de império, que contêm declaração do direito do requerente, embora em grau insuficiente para a produção de coisa julgada. Há partes, ainda que o réu não seja citado para se defender, porque o pedido é formulado contra ou em face de outrem. O princípio do contraditório é que resta esmaecido, quer ao réu se assegure o direito de defesa no :mesmo ou em outro processo. Não se trata de tutela da evidência, porque tanto podem ser duvidosos os fatos quanto o direito aplicável. Não se trata de medidas litisreguladoras, porque não se destinam a regular provisoriamente a lide, apenas enquanto não sobrevém a regulação definitiva. São medidas jurisdicionais de urgência.
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Tutela sumária irreversível. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 1, nº 38, 02 de Julho de 2001. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/tutela-sumaria-irreversivel.html