ELES VIERAM ANTES: mas quando os indígenas serão de fato cidadãos brasileiros?
Aweti, Ikpeng, Kaiabi, Kalapalo, Kamaiurá, Kisedje, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Tapayuna, Trumai, Wauja, Yudja e Yawalapiti. Estas são as 16 etnias que vivem atualmente no Parque Índigena do Xingu, somando pouco mais de 5000 pessoas, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Cada uma destas etnias possui costumes, idiomas, hábitos e rituais diferentes, mas convivem em total harmonia entre eles e com o meio ambiente. Existe um pluralismo cultural se analisarmos etnia a etnia, mas ao mesmo tempo todos estes povos estão unidos de maneira singular pelo amor e respeito à natureza. Outro aspecto que tem unido muito estes indivíduos é o medo de serem extintos, bem como o receio com o aumento do desmatamento e as consequentes alterações climáticas que têm se refletido dentro dos próprios limites do parque. Desta maneira, a Agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas) pode ser uma aliada ao combate a estes desafios.
Fazendo uma breve análise histórica, a colonização portuguesa foi um verdadeiro massacre aos nativos que já viviam nestas terras, bem como o movimento conhecido como Bandeiras também foi responsável por alterarem o equilíbrio entre os povos originários e o seu meio ambiente. Além dos portugueses e dos bandeirantes, os jesuítas também tiveram um papel de negação da cultura nativa, quando passaram a obrigá-los a aprender o português e trabalharam efetivamente na conversão destes nativos ao catolicismo. Inclusive Boaventura Santos (2021) na sua última obra, defende que estes fatores realmente contribuíram para a diminuição significativa da população originária.
Neste sentido, Krenak (2019 posiçao 41) destaca que 'a ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível.'' Os povos indígenas ainda sofreram com doenças trazidas pelos europeus, como: sarampo, gripe, varíola, entre outras, que também foram responsáveis por diminuir numericamente estes povos. O autor faz ainda importantes questionamentos acerca deste assunto
Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais as estratégias que esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade (Krenak, 2019 posicao 138).
O Brasil é um país construído com base em um grande mosaico cultural. Os índios fazem parte deste mosaico, desta arquitetura. Na verdade, o índio possui uma identidade anterior ao Brasil que hoje conhecemos, e por este motivo suas culturas precisam ser preservadas e respeitadas. Eles guardam a história da nossa sociedade e são guardiões responsáveis de uma grande biodiversidade.
Os primeiros contatos entre os europeus e os índios deixaram marcas que permanecem até os dias de hoje, no seio do Estado democrático de Direito. Marcas que influenciaram positivamente a nossa cultura, como exemplos na culinária e do próprio idioma português. Por outro lado, marcas negativas persistem até os dias de hoje, como a falta de uma legislação atualizada que verse sobre a proteção do índio. O estatuto do índio (lei 6001/73) está defasado, e a não observância à Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas declarada pela ONU em 1997 demonstra uma despreocupação em relação ao tema por parte de nossos governantes.
O estatuto não acompanhou a evolução histórica da sociedade moderna na qual tudo está interconectado. Os indígenas eram vistos como incapazes de agir e refletir por conta própria. Caberia aos poderes públicos a tarefa de tutelar esses povos, até que estivessem totalmente integrados à sociedade dominante. Com que direito podemos minimizar a importância de uma cultura milenar como a indígena que vivia de maneira respeitosa e plena com a natureza muito antes da chegada dos europeus? O Estatuto do Índio, traz em seu artigo 4ª o escalonamento para classificar os índios como isolados, em vias de integração e integrados. Ora, este é um exemplo claro de atraso do estatuto, já que busca trazer na sua essência a ideia de integrar o índio na nossa cultura e não o contrário.
O fato de os índios não terem sucesso em aprovar uma nova versão para o Estatuto do Índio pode ser um sinalizador da dificuldade do povo brasileiro e de seu legislador aceitar, respeitar e conviver com sociedades que se estruturem de formas diferentes, como a indígena. O que pode estar em jogo para essa resistência? O Instituto Socioambiental acredita que o fato de os índios precisarem de grandes extensões de terras para preservar seu modo de vida confronta diretamente com o interesse dos grandes produtores rurais dedicados à monocultura, principalmente de soja para exportação, atividade que tem crescido muito nos últimos anos na região de Mato Grosso e mais especificamente nas cercanias do Parque indígena do Xingu.
Temos acompanhado o crescimento das cidades próximas ao Parque do Xingu, este desenvolvimento tem pressionado o investimento em infraestrutura, como estradas, hidrovias e mais recentemente até uma grande hidrelétrica. Todo este movimento de expansão tem sido estimulado pelo agronegócio na região. Como consequência, o desmatamento tem crescido a cada nova safra. Seria possível buscar uma forma de crescimento econômico com sustentabilidade ambiental?
As imagens via satélite mostram claramente que a região ocupada pelas aldeias indígenas está muito bem preservada. De acordo com o Instituto Socioambiental, os índios que vivem nas aldeias mais próximas das fazendas têm relatado cheiro de agrotóxico no ar, mortandade de peixes, solo comprometido com o crescente uso de agrotóxicos e o receio de que novas doenças cheguem no interior do Xingu.
Na verdade, o que as comunidades indígenas desejam é a preservação do meio ambiente para estas e para as futuras gerações, provavelmente se o parque Xingu não estivesse sido demarcado para estas 16 etnias, o nível de desmatamento poderia ser ainda pior. Importante ressaltar, que os moradores das grandes cidades também serão afetados pela não preservação ambiental nesta região. Os índios possuem uma relação de pertencimento com a natureza, eles acreditam que a falta de cuidado com o meio ambiente pode levar à extinção deles próprios.
Os habitantes do Parque Indígena do Xingu ainda estão muito esquecidos pelo Estado brasileiro no que tange à saúde, educação, inclusão digital, direitos previdenciários, respeito as suas áreas demarcadas, questões culturais, religiosas, entre outros. É mister que políticas públicas olhem para estas pessoas de maneira inclusiva, pois todos somos brasileiros!
Preocupada com o que tem ocorrido com o planeta e entendendo que tudo está interconectado, a Agenda 2030 da ONU trouxe uma nossa possibilidade de repensarmos e fazermos diferente. Deste modo
'Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade. Estes são os objetivos para os quais as Nações Unidas estão contribuindo a fim de que possamos atingir a Agenda 2030 no Brasil' (Nações Unidas, Objetivos de desenvolvimento sustentável).
A Agenda 2030 aborda aspectos que interessam a todos nós, mas objetivamente destacamos alguns pontos que possam interessar mais diretamente as comunidades indígenas. Realizada a análise de todos os objetivos criados pela Agenda 2030, os seguintes abarcam diretamente as questões da terra ou da vida indígena:
2.4 Até 2030, garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo. 3.9 Até 2030, reduzir substancialmente o número de mortes e doenças por produtos químicos perigosos, contaminação e poluição do ar e água do solo. 8.4 Melhorar progressivamente, até 2030, a eficiência dos recursos globais no consumo e na produção, e empenhar-se para dissociar o crescimento econômico da degradação ambiental, de acordo com o Plano Decenal de Programas sobre Produção e Consumo Sustentáveis, com os países desenvolvidos assumindo a liderança. 10.3 Garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultados, inclusive por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e da promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito. 11.4 Fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo. 11.6 Até 2030, reduzir o impacto ambiental negativo per capita das cidades, inclusive prestando especial atenção à qualidade do ar, gestão de resíduos municipais e outros. 11.a Apoiar relações econômicas, sociais e ambientais positivas entre áreas urbanas, periurbanas e rurais, reforçando o planejamento nacional e regional de desenvolvimento. 12.2 Até 2030, alcançar a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais.12.8 Até 2030, garantir que as pessoas, em todos os lugares, tenham informação relevante e conscientização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza. 12.c Racionalizar subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis, que encorajam o consumo exagerado, eliminando as distorções de mercado, de acordo com as circunstâncias nacionais, inclusive por meio da reestruturação fiscal e a eliminação gradual desses subsídios prejudiciais, caso existam, para refletir os seus impactos ambientais, tendo plenamente em conta as necessidades específicas e condições dos países em desenvolvimento e minimizando os possíveis impactos adversos sobre o seu desenvolvimento de uma forma que proteja os pobres e as comunidades afetadas. 13.2 Integrar medidas da mudança do clima nas políticas, estratégias e planejamentos nacionais.13.3 Melhorar a educação, aumentar a conscientização e a capacidade humana e institucional sobre mitigação, adaptação, redução de impacto e alerta precoce da mudança do clima.14.1 Até 2025, prevenir e reduzir significativamente a poluição marinha de todos os tipos, especialmente a advinda de atividades terrestres, incluindo detritos marinhos e a poluição por nutrientes.16.3 Promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos.16.7 Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis.17.14 Aumentar a coerência das políticas para o desenvolvimento sustentável. (Nações Unidas, Objetivos do desenvolvimento sustentável)
Importante percebermos que as diversas etnias citadas no início deste texto sempre viveram em harmonia com os recursos disponíveis na natureza, mas sempre com a preocupação de não os esgotar. A agenda 2030 de certa maneira acaba por validar estes bons princípios das comunidades indígenas. Por outro lado, a visão dos seres humanos de origem europeia é outra. Os indivíduos que vivem em grandes cidades, ou os grandes produtores rurais, estão preocupados em produzir mais gastando menos recursos financeiros, mesmo que para isto consumam mais água e agridam o meu ambiente com cada vez mais poluição do ar, do solo e das águas.
A ideia com este artigo é fazer com que as pessoas se questionem não apenas sobre de fato quem veio antes para a Terra Brasilis, mas principalmente para onde queremos caminhar enquanto humanidade. Krenak (2019, posição 92) comenta que 'nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios.' É isto mesmo que queremos?
Por fim, a proteção da terra e o crescimento com sustentabilidade, bem como o respeito a diversidade cultural é o que precisamos buscar para garantirmos a vida equilibrada no nosso planeta para as futuras gerações. As 16 comunidades indígenas citadas no início deste texto fazem isto com maestria, talvez possamos aprender e apreender muito desta sabedoria tão antiga de respeito e pertencimento à terra com eles. Importante nunca esquecermos que estas diferentes etnias construíram a sua cosmovisão muito antes dos europeus aqui chegarem. E neste sentido de buscar equilíbrio, a Agenda 2030 da ONU pode ser um importante instrumento para a criação de políticas públicas para um futuro não muito distante.
Referências Bibliográficas
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