O FIM DA COMPENSAÇÃO NOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL: STJ ESTÁ BRINCANDO DE BANANA-BOAT?

O Ministro Humberto Gomes de Barros, próximo da sua despedida da presidência do Superior Tribunal de Justiça proferiu um discurso memorável. Lembrou da importância do STJ que assumiu a missão de dizer, em última instância, o que determinam as leis federais. No seu discurso, o Ministro Gomes de Barros diz que não é aceitável que o Tribunal afirme durante anos, por exemplo, que um imposto incide em determinada operação e, de repente, diga que a orientação estava errada.

'Isso é brincar de 'banana boat' com o contribuinte. Depois de seguir reto em uma direção, o piloto da lancha dá uma virada brusca para derrubar todos os que estão em cima da banana. Nós temos feito isso com o contribuinte',

E prosseguiu o Ministro:

'O STJ foi concebido como um farol e não como uma bóia à deriva. Ele precisa indicar ao navegante, ao cidadão, qual é o caminho. Mas esse caminho há que ser definitivo.'

Em julgamento recente, o Superior Tribunal de Justiça sinaliza que está superando o entendimento firmado na sistemática dos recursos repetitivos (Tema n° 294), derrubando os contribuintes mais uma vez. As palavras do saudoso Ministro Humberto Gomes de Barros ecoam como que anunciando o futuro repetindo o passado.

A recente decisão proferida pelo Ministro Gurgel de Faria é muito emblemática por várias motivos. Em primeiro lugar, o Ministro, em decisão monocrática reforma sua própria decisão que havia admitido os Embargos de Divergência apresentados pela parte. Pode? Faz sentido a Corte voltar em seus próprios passos, dar marcha ré e inadimitir o que já havia admitido? Se o manejo dos Embargos de Divergência foi preservado da reforma processual para atuar como remédio contra a divergência entre órgãos fracionários do STJ e se já havia sido reconhecido a divergência, não seria o caso de prosseguir no julgamento para efetivamente pacificar e harmonizar o dissídio? Se o processo deve ser uma marcha contínua rumo à solução da lide, qual o sentido em voltar atrás?

Não para por ai! A decisão do Ministro Gurgel de Faria é infeliz por mais uma série de argumentos. O tema central da discussão era definir se o instituto da compensação poderia ou não ser apreciado no bojo dos embargos à execução. Eu escrevi no meu Manual da Execução Fiscal que o Superior Tribunal de Justiça havia assentado que a compensação poderia ser arguída em sede de embargos. Veja o precedente:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. :ARTIGO 543-C, DO CPC. PROCESSO JUDICIAL TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. COMPENSAÇÃO TRIBUTÁRIA PRETÉRITA ALEGADA COMO MATÉRIA DE DEFESA. POSSIBILIDADE. ARTIGO 16, § 3º, DA LEF, C/C ARTIGOS 66, DA LEI 8.383/91, 73 E 74, DA LEI 9.430/96.

1. A compensação tributária adquire a natureza de direito subjetivo do contribuinte (oponível em sede de embargos à execução fiscal), em havendo a concomitância de três elementos essenciais: (i) a existência de crédito tributário, como produto do ato administrativo do lançamento ou do ato-norma do contribuinte que constitui o crédito tributário: (ii) a existência de débito do fisco, como resultado: (a) de ato administrativo de invalidação do lançamento tributário, (b) de decisão administrativa, (c) de decisão judicial, ou (d) de ato do próprio administrado, quando autorizado em lei, cabendo à Administração Tributária a fiscalização e ulterior homologação do débito do fisco apurado pelo contribuinte: e (iii) a existência de lei específica, editada pelo ente competente, que autorize a compensação, ex vi do artigo 170, do CTN. :2. Deveras, o § 3º, do artigo 16, da Lei 6.830/80, proscreve, de modo expresso, a alegação do direito de compensação do contribuinte em sede de embargos do executado. :3. O advento da Lei 8.383/91 (que autorizou a compensação entre tributos da mesma espécie, sem exigir prévia autorização da Secretaria da Receita Federal) superou o aludido óbice legal, momento a partir do qual passou a ser admissível, no âmbito de embargos à execução fiscal, a alegação de extinção (parcial ou integral) do crédito tributário em razão de compensação já efetuada (encartada em crédito líquido e certo apurado pelo próprio contribuinte, como sói ser o resultante de declaração de inconstitucionalidade da exação), sem prejuízo do exercício, pela Fazenda Pública, do seu poder-dever de apurar a regularidade da operação compensatória (Precedentes do STJ: EREsp 438.396/RS, Rel. :Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em 09.08.2006, DJ 28.08.2006: REsp 438.396/RS, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 07.11.2002, DJ 09.12.2002: REsp 505.535/RS, Rel. :Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 07.10.2003, DJ 03.11.2003: REsp 395.448/PR, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 18.12.2003, DJ 16.02.2004: REsp 613.757/RS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 10.08.2004, DJ 20.09.2004: REsp 426.663/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 21.09.2004, DJ 25.10.2004: e REsp 970.342/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 04.11.2008, DJe 01.12.2008). :4. A alegação da extinção da execução fiscal ou da necessidade de dedução de valores pela compensação total ou parcial, respectivamente, impõe que esta já tenha sido efetuada à época do ajuizamento do executivo fiscal, atingindo a liquidez e a certeza do título executivo, o que se dessume da interpretação conjunta dos artigos 170, do CTN, e 16, § 3º, da LEF, sendo certo que, ainda que se trate de execução fundada em título judicial, os embargos do devedor podem versar sobre causa extintiva da obrigação (artigo 714, VI, do CPC). :5. Ademais, há previsão expressa na Lei 8.397/92, no sentido de que: 'O indeferimento da medida cautelar fiscal não obsta a que a Fazenda Pública intente ação judicial da Dívida Ativa, nem influi no julgamento desta, salvo se o juiz, no procedimento, cautelar fiscal, acolher a alegação de pagamento, de compensação, de transação, de remissão, de prescrição ou decadência, de conversão do depósito em renda, ou qualquer outra modalidade de extinção da pretensão deduzida.' (artigo 15). :6. Conseqüentemente, a compensação efetuada pelo contribuinte, antes do ajuizamento do feito executivo, pode figurar como fundamento de defesa dos embargos à execução fiscal, a fim de ilidir a presunção de liquidez e certeza da CDA, máxime quando, à época da compensação, restaram atendidos os requisitos da existência de crédito tributário compensável, da configuração do indébito tributário, e da existência de lei específica autorizativa da citada modalidade extintiva do crédito tributário. :7. In casu, o contribuinte, em sede de embargos à execução fiscal, alegou a inexigibilidade do crédito tributário, em virtude de compensação sponte propria efetuada ante o pagamento indevido de CSSL (artigo 8º, da Lei 7.689/88) declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, tendo sido ajuizada ação ordinária para ver reconhecido seu direito à liquidação da obrigação tributária por meio da compensação efetuada. De acordo com o embargante, 'compensou 87.021,95 UFIR's relativos aos créditos tributários oriundos da CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO, do exercício de 1988, pagos indevidamente, com 87.021,95 UFIR's relativas a créditos tributários líquidos e certos, concernente à mesma CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO do exercício de 1992'. :8. O Juízo Singular procedeu ao julgamento antecipado da lide, pugnando pelo inoponibilidade da alegação de compensação em sede de embargos à execução (em virtude do disposto no artigo 16, § 3º, da Lei de Execução Fiscal), e consignando que: '... a embargante deveria produzir a prova documental de suas alegações na inicial dos embargos, uma vez que a prova do recolhimento indevido é documento essencial para provar suas alegações (art. 16, § 2º, da Lei 6.830/80 e art. 283, do CPC). No entanto, a embargante nada provou, não se desincumbindo do ônus que lhe atribui o artigo 333, inc. I, do CPC, negligenciando a prova documental de suas alegações.' 9. Destarte, a indevida rejeição da compensação como matéria de defesa argüível em sede de embargos à execução fiscal, conjugada ao julgamento antecipado da lide, resultou em prematura extinção da ação antiexacional, razão pela qual merece prosperar a pretensão recursal. :10. Recurso especial provido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008. :(REsp 1008343/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/12/2009, DJe 01/02/2010)

A orientação firmada pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça parece não deixar dúvida: é possível suscitar compensação no âmbito da única defesa de mérito admitida pela Lei de Execução Fiscal (Lei n° 6.830/80).

Se a função do Superior Tribunal de Justiça é uniformizar a interpretação da lei federal no Brasil e se no caso concreto uniformizou ao definir o Tema n° 294, estamos seguros, certo? Não, errado! O Superior Tribunal de Justiça viu a necessidade de voltar a uniformizar aquilo que já julgara. Por que? Tire as suas próprias conclusões!

Primeiro se prestigia uma lei federal que restringe o direito do contribuinte se defender exigindo que ele garanta o juízo para que possa ser conhecida sua defesa. Já não é draconiano o suficiente? Então retire o contribuinte o direito de debater em juízo. Este foi o intento da malfadada 'averbação pré-executória' criada pela Lei n° 13.606/2018 que inseriu o artigo 20-B na Lei n° 10.522. Não é o bastante? E o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ)? Bom essa é fácil! É só montar uma força-tarefa de membros da Procuradorias da Fazenda e magistrados para criar enunciados e assim tolher o direito assegurado pelo Legislativo ao cidadão. Não é o bastante? Não, o contribuinte ainda tem muito privilégio! O golpe mortal foi proferido às escondidas. Num gabinete isolado de um único ministro que sem a possibilidade de atuação dos advogados e sem a possibilidade de um debate mais amplo, retira um direito elementar do contribuinte que é alegar em sua defesa que também é credor do Fisco.

A questão que estava uniformizada no STJ desde a fixação da tese no Tema 294 começou a ser questionada em alguns pronunciamentos contrários da 2ª Turma. A divergência ensejou a apresentação de embargos de divergência n° 1795347 manejado pela parte. O Relator admitiu os embargos reconhecendo a divergência, mas acabou revendo sua própria decisão não conhecendo o recurso que havia conhecido.

Como dito, a decisão é emblemática porque um ministro em decisão monocrática afirma que o Tema n° 294 foi superado. A doutrina dos precedentes admite o chamado 'overruling', porém espera-se que o novo entendimento seja tomado pelo mesmo órgão, isto é, seria adequado que o Tema n° 294 fosse modificado pela 1ª Seção e não por uma decisão monocrática. A um só tempo o Ministro Gurgel de Faria desprestigia o Superior Tribunal de Justiça, desconsidera a 1ª Seção, menospreza o instituto dos recursos repetitivos e generaliza a posição da 1ª Turma a partir de um único julgado invocado em sua decisão.

Com efeito, a revisão de entendimento firmado em tema repetitivo está prevista no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça:

SEÇÃO V Da Revisão de Entendimento Firmado em Tema Repetitivo (Incluído pela Emenda Regimental n. 24, de 2016)

Art. 256-S. É cabível a revisão de entendimento consolidado em enunciado de tema repetitivo, por proposta de Ministro integrante do respectivo órgão julgador ou de representante do Ministério Público Federal que ofi cie perante o Superior Tribunal de Justiça.

Se existe uma disciplina para a formação do precedente e há regulamentação para a sua superação poder-se-ia cogitar de uma decisão monocrática desconsiderar a orientação? Se o STJ não respeita seus próprios pronunciamentos, o que esperar das instâncias inferiores? Se a missão da doutrina dos precedentes era reduzir a segurança, já é possível afirmar que os Tribunais Superiores estão falhando miseravelmente na sua missão constitucional.

A revisão monocrática do Tema n° 294, STJ é inadequada do ponto de vista processual e sobretudo é um retrocesso em termos de garantias do cidadão. É sabido que o espectro de defesa do executado é gravemente limitado na via dos embargos. Suprimir a possibilidade do devedor alegar perante o juízo que também possui um crédito e suprimir a apreciação judicial é, além de desprestigiar o papel do Poder Judiciário, tolher o direito de defesa do contribuinte. A compensação é um instituto basilar do Direito, calcado num preceito ético intransponível: se todos são iguais perante a lei, o crédito do fisco não é melhor ou mais privilegiado que o crédito do contribuinte e portanto não é admissível que seja imposto ao contribuinte pagar e esperar que o fisco, em momento posterior, pague a sua dívida. Repugna o senso comum e ofende qualquer regra de razoabilidade admitir que não seja possível, ao menos, arguir a compensação como matéria de defesa. Não obstante se reconheça o status do crédito tributário, não se pode admitir que ele goze de uma proteção de tal monta que imponha ao contribuinte o sacrifício do pagamento da dívida antes de receber o crédito que igualmente titula.

A decisão monocrática é ainda mais grave que o banana-boat do Ministro Humberto Gomes de Barros. Além de derrubar todos os contribuintes na água, num ato de perfídia, retira os coletes salva-vidas dos náufragos para lhes impossibilitar a chance de sobrevivência.

ÉDERSON GARIN PORTO - Visiting Scholar UC Berkeley School of Law. Doutor e Mestre (UFRGS). Professor do Mestrado Profissional da Unisinos. Coordenador do LLM em Tributação da Empresa e dos Negócios da Unisinos. Membro da FESDT. Membro da CEDT – OAB/RS. Fundador do Lawboratory. Advogado.


PORTO, Éderson Garin Porto. O FIM DA COMPENSAÇÃO NOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL: STJ ESTÁ BRINCANDO DE BANANA-BOAT?. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1499, 19 de Abril de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/o-fim-da-compensacao-nos-embargos-a-execucao-fiscal-stj-esta-brincando-de-banana-boat.html
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Editores: 
José Maria Tesheiner
(Prof. Dir. Proc. Civil PUC-RS Aposentado)

Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha

Advogada e Professora Universitária

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Excelência em conteúdo jurídico desde o ano de 2000 | ISSN 1981-1578