O IN DUBIO PRO SOCIETATE E A DECISÃO DE PRONÚNCIA NO TRIBUNAL DO JÚRI: A LINHA TÊNUE ENTRE A INVASÃO DE COMPETÊNCIA PELO JUIZ TOGADO E O CONSELHO DE SENTENÇA SOB A ÓTICA GARANTIDORA DO PROCESSO LEGAL
A decisão de pronúncia encerra a primeira fase do Tribunal do Júri. Possui natureza jurídica interlocutória, mista e não terminativa. Em sua estrutura, dois requisitos são elementares, sendo eles, a materialidade do fato e os indícios mínimos de autoria (como prevê o artigo 413, do Código de Processo Penal).
O juízo de certeza da materialidade é requisito indispensável à pronúncia, devendo compor o processo enquanto prova. Isso se dá através do auto de exame cadavérico (atestando causa mortis da vítima) ou exame de corpo de delito (a ser realizado na vítima, no caso de forma tentada). É possível, ainda, a prova indireta, neste caso, por exemplo, a prova testemunhal. Há a possibilidade, também, de produção probatória por outros meios (tais como mídias diversas, por exemplo), no caso de impossibilidade do referido exame (RANGEL, 2014, p. 150), nos termos do artigo 167 do CPP. Em tom de exemplo, um processo que não falha à memória dos brasileiros, em que a materialidade tenha sido auferida por prova indireta, foi o rumoroso caso do goleiro Bruno. Exemplo este que coroa a autoria da prática delitiva, de forma indireta, já que a exigência legal impõe apenas indícios suficientes.
A decisão de pronúncia não poderá conter na ratio decidendi qualificadora do crime ou outras causas de aumento de pena não descrita na denúncia (peça inicial acusatória). Isso porque o princípio da correlação (ou congruência) impede o magistrado do reconhecimento diverso para além do que tenha sido o acusado denunciado – prevalecendo, durante o rito, o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa (sobre esta questão o HC 256468, do STJ, apresenta-se como precedente adequado). O contrário também obedece à mesma regra, em relação à causa especial de diminuição de pena, conforme o artigo 7º da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal. Portanto, caberá aos jurados à apreciação das causas de diminuição (a tentativa, ou o privilégio da violenta emoção, por exemplo) – art. 483, inciso IV do CPP, desde que inseridas na exordial processual, sob o crivo do contraditório na primeira fase.
A decisão de pronúncia deve ser fundamentada, mas sem descuidar o julgador de eventual excesso de linguagem, respeitados estes critérios, as discordâncias giram em torno da autoria, no que compreende especificamente os indícios suficientes. A pronúncia, para parte da doutrina e jurisprudência, é vista como um juízo de admissibilidade acusatória. Com efeito, são superadas as garantias processuais pelo brocardo in dubio pro societate, uma criação jurisprudencial, retórica principiológica que não encontra guarida nos limites do devido processo lega, sobretudo em vistas à garantia da fundamentação das decisões judiciais, cujo alicerce compõe-se de contraditório judicial, presunção de inocência.
A competência e a soberania do tribunal do povo implicam nas mais variadas acepções justificantes que, em suma, conduzem o acusado ao julgamento do povo, atribuindo valor suficiente às provas testemunhais em juízo e, mais graves ainda (sob uma perspectiva da garantia do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais), por vezes, elementos constituídos somente do inquérito policial.
GOMES (2010), por exemplo, parte da premissa de que o tribunal do júri é uma garantia da sociedade, portanto, em sua opinião, não pode o juiz de direito invadir a competência do jurado, segundo ele,
O juiz deve, sim, observar que o princípio in dubio pro societate afirma-se em uma interpretação conforme a Constituição Federal, que garante a existência do júri em nosso ordenamento jurídico e lhe aufere, a competência exclusiva para julgar os crimes dolosos contra a vida e, mais, com força de plena soberania em suas deliberações (GOMES, 2010, p.175).
Assevera o autor, ainda, que o júri trata de uma garantia não somente do acusado, como também do povo, e rechaça as garantias sob a perspectiva do acusado, remetendo sua posição, às garantias da sociedade, como direito fundamental de jugar (GOMES, 2010, p. 137).
A dúvida, para Gomes, deve prevalecer em favor da sociedade. Acompanha-o, em parte, PAGLIUCA (2009, p. 159), da mesma forma, compreende que 'na dúvida do juiz, deve ser o réu pronunciado, segundo o princípio do in dubio pro societate, uma vez que há juízo de suspeita, não de convicção'.
Entendimento diverso encontra-se na doutrina de NASSIF (2001), pois:
Se é verdade que a dúvida opera em favor da sociedade, não é menos verdade que a ausência da qualidade probatória no contraditório é inválido para a sustentação de qualquer convencimento para o magistrado. Aqui concorrem princípios fundamentais do homem: devido processo legal, ampla defesa, etc. Não há, ética ou juridicamente, base de sustentação para a tese que admite a prova exclusiva do inquérito para a pronúncia. (NASSIF, 2001, p.44)
Doutrina convergente, em El TASSE (2008, p. 53) a aplicação do in dubio pro societate é duvidosa, e não deve servir como fundamento da sentença de pronúncia, em hipótese de dúvida consistente, corrente doutrinal qual se filia, já que a ótica do devido processo não permite posicionamento diverso.
Opiniões doutrinárias divergentes, cada qual com seus motivos, imperioso o empreendimento amplo de dinâmica que contemple e, fundamentalmente, harmonize as garantias constitucionais, a considerá-las como uma espécie de filtro da presunção de inocência, em sendo uma regra de tratamento, e uma a condição de estado que goza o acusado durante o todo o curso processual.
A tomar a dúvida (no sentido amplo e indiscriminadamente) como fator objetivo apto a justificar a pronúncia, fundamentada no in dubio pro societate, os indícios de autoria subverteriam o conjunto de garantias constitucionais à regra de competência (por vezes em nome da soberania dos veredictos), pelo fato de que desta definição de suficiência ficar a cargo do julgador togado, pois, a própria lei não estabelece parâmetros objetivos de (in)suficiência dos indícios, sobretudo quando a decisão arrazoa-se em depoimentos pessoais – ponto de maior controversa processual. Cumpre ressaltar que as garantias do devido processo legal irradiam não somente em processos do Tribunal do Júri, mas a todo o ordenamento, eis que parte da Constituição, portanto, o tribunal do júri não dispensa a sua hierarquia normativa, mas sim, deve adequar-se à sua sistematização.
Dito isto, a questão da dúvida na iudicium accusationis deve ser investigada, sob a perspectiva do devido processo legal e, ainda, sua conclusão devidamente fundamentada, pois a decisão de pronúncia, ainda que não terminativa, não desobriga o juiz à observância das garantias constitucionais, principalmente a da fundamentação, que atravessa, por consequência, análise dos fatos, provas e indícios. É o devido processo, e suas garantias basilares, como premissa.
Neste trilho, em especial quando se trata apenas de prova testemunhal, se devem observar os ditames do artigo 239 do CPP, pois, 'considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias'. Essa norma processual, que por vezes passa despercebida aos operadores do direito, em menos de três linhas determina (impõe) e ensina (o método) o seguinte: a) indício presta-se a atribuir relevância à outra circunstância relacionada aos fatos: b) podem sustentar sobre a existência de outras circunstâncias, mas eles mesmos devem estar - antes disso – provados e: c) a conclusão de outras circunstancias através de indícios é possível através do método indutivo.
Deste modo, mesmo que haja somente um (único)indício, não o desobriga da prova judicializada, ainda que indireta (testemunhal), por previsão expressa do artigo 155 do CPP. Neste passo, acompanhando a doutrina de Aquino, deve-se compreender que:
O juiz não pode proferir uma decisão de pronúncia com base na prova exclusivamente produzida na fase de investigação policial. Aqui a expressão prova vem entre aspas porque, como o inquérito policial é um procedimento administrativo, e não judicial, as demonstrações que contém não podem ser consideradas tecnicamente com provas, porque não são submetidas ao crivo do contraditório (AQUINO, 2014, p. 123).
Não há margem à conclusão diversa, senão a de que a prova, para ser considerada apta à valoração, somente o será (ou adquirirá o status de prova) quando produzida em juízo, devendo, portanto, submeter-se o filtro constitucional que impõe o contraditório judicial. Uma decisão judicial pode fundamentar-se em indícios (ou melhor, em elementos informativos do inquérito policial), é isso que o Código de Processo Penal prevê, entretanto, estes apoiados em determinada prova (produzida em juízo), e devidamente racionalizada quando considerada nas razões, logo, incorporar aos seus fundamentos.
A decisão judicial necessita, em caráter irrenunciável, da prova judicializada, enquanto os indícios podem influenciar na livre convicção do magistrado, passando a contribuir para a sua decisão, ainda que, logicamente, nem todos eles provados (em juízo), como há muito (1764) prescreveu BECCARIA, 'quando as provas de um fato se apoiam todas entre si, isto é, quando os indícios do crime não se mantém senão apoiados uns nos outros, quando a força de inúmeras provas dependem de uma só, o número dessas provas nada acrescenta sem subtrai na probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, se destruís a única prova que parece certa, derrocareis todas as demais' (BECCARIA, 2014, p. 25).
Partindo-se disto, tem-se, portanto, dois aspectos fundamentais em relação aos depoimentos testemunhais, qual sejam, às questões de validade e da qualidade da prova (ou indícios – essa dissociação a este raciocínio não implica maiores consequências). A primeira se refere na sua colheita (concepção) e na produção (contraditório judicial): a segunda no valor que lhe é atribuído como fundamento da decisão, ou seja, o conteúdo que em si carregue suficiência (coerência nos relatos) a implicar na formação cognitiva do juiz.
Estes dois fatores (validade e qualidade) implicam no juízo cognitivo do magistrado, razão pela qual, imperioso estabelecer critérios hábeis à aferição da coerência às alegações testemunhais, a perceberem relevância suficiente em seus conteúdos a ponto de embasar os fundamentos da decisão judicial, mas conjugados às garantias constitucionais do devido processo legal, que devem, antes disso, estruturar a decisão (filtro). Isso porque há muito já alertava CARNELUTTI (2006, p. 49) que 'a testemunha é um homem, um homem de corpo e alma, com seus interesses e com tentações, com suas lembranças e esquecimentos, com suas ignorâncias e com sua cultura, com sua coragem e seus medos'.
Trabalhar com a teoria da prova em processo penal exige rigor à sua investigação, dados os direitos fundamentais em voga, em que a busca pela verdade fática dentro do caderno processual, por isso, reclama múltiplas reflexões. A este problema, o jurista italiano MICHELLE TARUFFO elaborou três teorias acerca da (tríplice) relação entre prova e processo penal e verdade que, em suma, a prova exerceria a função: a) de uma espécie nonsense: b) persuasiva, no campo da semiótica (ou argumentativa): e c) de possibilidade de reconstrução processual da verdade fática.
A teoria nosense afasta integralmente o caráter de possibilidade da prova reconstruir a verdade no processo. Afirma esta linha, não reconhecer o processo como meio idôneo para o alcance da verdade, restando à prova meramente tratar de um instrumento para os fins do processo (e não da busca da verdade).Servindo-lhe como uma forma de aparente legalidade, neste caso, apenas pra fazer crer que o processo determina a verdade acerca dos fatos (TARUFFO, 2002, p. 80).
No terreno da semiótica, a prova persuasiva, por outro lado, aponta que o resultado do processo é produto do discurso, da persuasão. Ou seja, nesta teoria, a prova, não se presta a elucidar a verdade, mas sim, a depender do conteúdo do discurso que lhe é empregada, e que as suas narrativas, ampliando as possibilidades fáticas – pelo discurso de cada parte-, preponderarão na construção da verdade, relegando, assim a sua relação com as questões empíricas em discussão no processo.
Na terceira teoria do jurista italiano, esta mais plausível, segundo o autor, a prova serve como instrumento ao método racional de reconstrução da verdade, diretamente relacionada com questões empíricas. Esta concepção compreende que 'a prova se configura como uma técnica racional de confirmação de hipóteses que exteriorizam complexas e variáveis relações de aproximação com a verdade empírica' (TARUFFO, 2002, p. 83). Esta terceira teoria do autor, pode subsidiar, de alguma maneira, o raciocínio do julgador. A prova não se afigura como um mero produto do discurso argumentativo (semiótica), tampouco para legitimar o processo (e seus fins pré-estabelecidos–nosense) e atribuir caráter da verdade que, supostamente carrega.
Convém considerar, no entanto, que outro problema acentua-se entre a prova e sua capacidade contributiva na pretensão da verdade fática através do processo, isso porque, uma das espécies de prova, e certamente a mais contestável, é a declarações de testemunhas, porque alertava CARNELUTTI: 'todos sabem que a prova testemunhal é a mais falaz de todas as provas' CARNELUTTI (2006, p. 80).
Não há como assegurar os desígnios humanos, quiçá identificar a verdade nos relatos testemunhais, por diversos aspectos, as opiniões dos psiquiatras GAUER e GAUER sugerem que:
Parece existir um conjunto de sistemas no cérebro humano consistentemente dedicado ao processo de pensamento dedicado para um determinado fim (raciocínio) e à seleção de uma resposta (tomada de decisão) com ênfase especial sobre o domínio pessoal e social (GAUER: GAUER, 2016. p. 154).
Mostra-se claro que a incerteza do conteúdo produzido pela palavra dada pela testemunha é ponto sensível em processo penal.
O julgador enquanto receptor das informações trazidas pela prova testemunhal não estará livre das nuances as quais possam implicar em equivoco na sua livre convicção, no sentido de aferição de suficiência dos indícios autorais. Atribuir critérios para tais definições é tarefa tortuosa ao julgador, vez que a própria legislação não descreve um método específico, ou uma forma de proceder – é claro, não haveria como.
Neste quadro problemático, a obra de MALATESTA, publicada pela primeira vez em 1894, parece contribuir a esta questão, pois 'relativamente ao conhecimento de um dado fato, o espírito humano pode encontrar-se no estado de ignorância, dúvida ou certeza' (MALATESTA, 2005, p.23). Por isso, a este ponto, um aporte auxilia, na distinção conferida pelo jurista, sobre a certeza, a probabilidade e a credibilidade.
Para MALATESTA (2005), a verdade é produto da conformidade da noção ideológica com a realidade, sendo a certeza concebida através da crença perceptível a esta conformidade. A certeza, na concepção do jurista (e advogado) italiano, é a oposição do estado de ignorância (ausência de qualquer conhecimento), um estado subjetivo da alma, para ele, a realidade indubitável. A certeza, pois, não diverge da verdade, pelo contrário, afirma, sem qualquer motivo à sua negação.
A probabilidade é espécie do gênero dúvida, assim como o seu oposto – a improbabilidade –, pode ser aferida a partir da confrontação dos motivos negativos e positivos das asserções opostas (afirmativas e negativas). De uma maneira geral, para o jurista, 'pode dar-se a prevalência dos motivos negativos sobre os afirmativos e tem-se o improvável: pode haver igualdade entre os motivos afirmativos e os negativos e tem-se o crível no sentido específico. Pode haver, finalmente, prevalência dos motivos afirmativos sobre os negativos e tem-se o provável' (MALATESTA, 2005, p.23).
Nesta perspectiva, a probabilidade resulta da superação dos motivos afirmativos sobre os negativos, compondo-se esta equação de múltiplos objetos (motivos das asserções) a serem confrontados, diferentemente da certeza, sendo que a 'percepção dos motivos maiores convergentes a crer e dos menores divergentes da crença, julgados todos dignos de serem considerados, segundo a diversa medida do seu valor' (MALATESTA, 2005, p. 66).
Na hipótese de prevalência dos motivos negativos em face dos afirmativos, tem-se o improvável: sobrepondo os afirmativos aos negativos, o provável e: em caso de igualdade dos motivos, o crível. A partir disto, os motivos maiores se darão pela convergência (no mesmo sentido), enquanto os menores, divergência (destoantes).
Tratando-se da credibilidade, esta se constata pela caracterização de equivalência entre os motivos maiores e menores, no sentido específico, segundo o autor, 'sempre que a consciência se encontra diante de motivos iguais para afirmação e negação: na percepção das razões iguais para acreditar ou não, assenta-se sua natureza específica' (MALATESTA, 2005, p. 72).
Há, portanto, segundo MALATESTA, cinco estados de espíritos, a saber: I) ignorância – ausência de conhecimento: II) improbabilidade – superioridade dos motivos divergentes aos convergentes: III) credibilidade – igualdade entre os motivos: IV) probabilidade – prevalência dos motivos convergentes à afirmação: e V) certeza – ou, como diz o autor 'conhecimento afirmativo triunfante'.
Nesta toada, a perceber-se que o estado da dúvida, na teoria do italiano, reside nos estados dois, três e quatro, deve-se, concluir, sob a perspectiva decisional (processual e garantidora constitucional), que o único estado a viabilizar a decisão de pronúncia, consubstanciado em indícios suficientes autorais, seria o da probabilidade (IV).
Com maior evidência pode-se constatar, quando analisadas incluídas na perspectiva as garantias fundamentais do devido processo legal, pois, o estado de espírito de improbabilidade independeria, neste caso da integração com as garantias do processo legal (por si só afastaria as afirmações autorais): enquanto a credibilidade não resistiria ao filtro das garantias do devido processo legal, pois, a mera equivalência (somente entre asserções) não supera as garantias da presunção de inocência, do contraditório judicial e da ampla defesa, bem como, é claro, a fundamentação das decisões.
Significa dizer que a decisão de pronúncia não pretende (e não deve pretender) suprimir a competência do conselho de sentença, entretanto, é neste (único) momento processual a oportunidade de serem respeitadas as garantias do devido processo legal, num panorama amplo (presunção de inocência, o contraditório judicial e a fundamentação das decisões).
Tanto é que, a julgar o efeito contrário, justamente em razão de a pronúncia possuir a impronúncia em sua antítese, não possuir caráter definitivo, revelando que a inexistência de indícios suficientes (no campo da probabilidade de Malatesta), na hipótese de impronúncia, poderá ser o acusado denunciado novamente, havendo superveniência a alterar, diga-se elevar, o conjunto probatório, tornando-se suficiente, até o limite do prazo prescricional.
Com efeito, se impronúncia do o acusado por insuficiência de indícios que afirmem o caráter autoral, não será absolvido, mas sim, garantindo-lhe uma decisão racionalmente adequada, constituída dos elementos integrantes do processo, conjugados com as garantias de devido processo legal, filtragem indispensável constitucionalmente garantida.
Aufere-se melhor compreensão a este ponto, na medida em que são sopesados os motivos justificantes da decisão judicial, pois, a decisão judicial não poderá eximir-se das garantias prescritas na Constituição, como premissa interpretativa. Com efeito, valendo-se no magistério a decisão judicial concebida e ancorada em coerência e completude, seria uma, de tantas, outras formas de balizar a os fundamentos nesta fase do processo – tomando como perspectiva as garantias fundamentais do devido processo legal.
A análise do integral do conjunto processual, para a resposta boa, implica, por certo, na verificação dos dois lados (ponto e contraponto) das razões, isso porque, em se tratando de argumentos contrários, já observava MILL,
Quem conhece apenas seu lado pouco se conhece do caso. Suas razões poderiam ser boas e talvez não haja ninguém capaz de refutá-las. Mas, se ele for igualmente capaz de refutar o lado contrário, se não se empenhar em conhecê-las, não terá base para proferir uma ou outra (MILL, 2018, p. 60).
Significa afirmar, em outras palavras, que à decisão judicial não é furtada a observância, inclusive, das justificativas pelas quais não foram concebidos (reconhecidos, ou preservados) os direitos reclamados pelo lado (polo), o sucumbente. Melhor expondo, justificar as razões pelas quais, em determinado caso, foram consideradas tais garantias em detrimento de outras, relativas ao direito aplicado (garantias como premissas) às questões fáticas (provas, indícios), como por exemplo, os indícios autorais suficientes, que levem o acusado à pronúncia, conjugados, ao devido processo legal (a presunção de inocência, o contraditório judicial e a própria motivação das decisões).
Sintetizando o raciocínio, ao pronunciar o acusado, deve o sentenciante indicar os indícios, explicar os motivos (em argumentos de princípio – Dworkin), além de atribuir valor (peso), e não, o contrário – puramente remir as suas razões ao próprio dispositivo. Parece-se equivocado o procedimento decisório, dada à importância que representa a prestação jurisdicional, apoiar-se na regra de competência (ou princípio do in dubio pro societate), sem que sopese as garantias previstas na Constituição Federal. Com efeito, desvirtua até o próprio dever jurisdicional como o seu guardião, pois, como bem alerta MOTTA,
Quando se diz que o juiz, em casos complexos, cria o direito (exerce um papel legislativo intersticial), conforme a sua convicção pessoal, frequentemente se prende apenas descrever o que ocorre na prática, mas não o que teoricamente deveria ocorrer (MOTTA, 2018, p.20).
Salienta-se que a competência do conselho de sentença deve ser preservada em obediência à Carta Política, ou melhor, em hipótese alguma deve se afastada. Da mesma maneira que se possam defender as garantias, ilógico seria afastá-las, já que possui envergadura normativa tanto quanto. Entretanto, nesta fase, as razões de decidir do magistrado, requerem sólidos argumentos a servirem-lhe de justificativa, e racionalmente precedidas de princípios.
Por isto, não se percebe que a competência galgue um carisma valorativo superior ao devido processo legal, senão por boas (e coerentes) razões apresentadas judicialmente. Fundamentar a decisão de pronúncia, exclusivamente no in dubio pro societate, nada mais é, do que exarar uma decisão vazia de fundamento (jurídico), em que a referência textual se amolda ao que outrora evidenciam LIXA e SPAREMBERGER (2016, p.70), no que se refere à aplicação meramente textual, como sendo 'um tipo de discurso que podemos chamar de imutável dogmático, mas que não alcança a realidade e torna confortável o significado das palavras, bem como a atividade dos juristas'. Exonerando-se, portanto, o judiciário da verdadeira atribuição constitucional garantidora.
Ou seja, na análise material probatória de determinado caso, sem que, de fato sejam enfrentados nos fundamentos coerentemente relativos às provas e critérios de probabilidade autorais, nada mais diz do que uma regra de competência é porque é, e isso, como dizia DWORKIN (2009, p. IX) sobre argumentos calcados em texto, 'não quer dizer nada além do que as suas palavras deixam claro'. Argumentos inválidos, portanto.
Por isto, a completude e a coerência devem ser assumidas como um dever à melhor resposta judicial (ou boa resposta), pois, novamente, como diz de MOTTA,
O que garantirá um contraditório efetivo, é em ultima análise, a fundamentação completa do provimento jurisdicional, que deve fornecer boas justificativas para descartar a(s) teoria(s) propostas(s) pelas(s) partes(s), aí incluídas as razões que expliquem porque e é a sua teoria a que melhor interpreta a pratica do Direito como um todo (MOTA, 2012, p. 179).
Restam mais evidentes estes aspectos que se revestem de criticidade, especialmente quando se verifica os princípios-garantias expostos no tribunal do júri, que por si só seria motivo suficiente para crer que a criticidade da primeira fase processual representa um garantia ao acusado a não ao jus puniendi estatal, longe ainda de configurar-se meramente como um juízo de admissibilidade acusatória, como quer parte da doutrina, mas sim a fase que deveria objetivar obedecer os trilhos constitucionalmente instituídos do devido processo legal.
Aliás, importa referir, pelo formato geral do procedimento, a decisão do juízo togado representa, inclusive, a única, e a última oportunidade (processual) garantidora ao exercício dos direitos fundamentais do devido processo legal constitucional, em sede de decisão judicial efetiva.
A doutrina de AQUINO, a este respeito, contribui no sentido de que a decisão de pronúncia, por possuir uma função garantidora, não nega o juízo de admissibilidade acusatória, entretanto,
Embora seja uma decisão interlocutória, a pronúncia tem de ser devidamente fundamentada, como qualquer decisão, por expressa previsão constitucional, razão pela qual, ao final do juízo da acusação, dever ser adotado, como sistema de avaliação da prova, o do livre convencimento motivado do juíz (AQUINO, 2004, p. 114).
O autor entende que a decisão de pronúncia se equipararia a um despacho saneador, como nos processo cíveis, entretanto, nesta fase do júri, serviria, como dito, para sanar as questões procedimentais, mas, sobretudo, da avaliação da suficiência autoral, para submissão ao conselho de sentença – competente.
Por estas razões não se vislumbra, sob qualquer pretexto, a ausência (ou precariedade) de fundamentação judicial, especialmente para que sejam nela conferidos, os critérios aplicados às atribuições de peso aos indícios autorais, devidamente justapostos, nestes critérios, às garantias constitucionais.
Obviamente que o risco de excesso de linguagem limita o juiz togado nesta fase, no entanto, uma boa (criteriosa) fundamentação não impede a adequação da linguagem comedida e sem enfrentamento do mérito, tampouco que as garantias constitucionais sejam suprimidas. Seria ilógico supor que a constituição garantiria direitos fundamentais, e o CPP restringe-os. A coerência e a harmonização normativa (a priori, novamente as garantias constitucionais) são apenas parte de um conjunto a ser observado e valorado, para a melhor resposta judicial, para isto, caberá ao juiz de direito a tarefa da sua promoção.
Disto tudo se pode dizer, que o in dubio pro societate, fosse um princípio (o interesse público, por exemplo), não afrontaria o devido processo legal, tampouco a presunção de inocência. O equívoco está assentado enquanto constitui fundamento da decisão de pronúncia, como uma espécie híbrida justificante, resumindo à precariedade as razões de decidir.
Sabe-se que a valoração probatória parte de um entendimento subjetivo do juiz, detentor da palavra final entre a dúvida, certeza e probabilidade, porém, não se deve conformar-se com a relativização das garantias fundamentais, devendo ser observadas pelo judiciário, não somente no júri, mas em qualquer provimento judicial.
A reflexão acerca do in dubio pro societate, a partir de um juízo de probabilidade justificante da sentença de pronúncia, acarreta em fazê-lo a partir (como condição de possibilidade) das garantias do devido processo legal. A regra da competência determina o julgamento exercível pelo conselho de sentença, entretanto, antes disso, somente um juiz de direito é (de igual maneira) competente a conferir-lhe tal incumbência. Não se trata, pois, de competência conflitante, mas sim, uma inicia quando encerra a outra. É dizer, novamente com AQUINO, que 'o Tribunal do Júri como juiz natural para julgar os crimes dolosos contra a vida, existe se e quando o juiz togado admite sua competência a través da pronúncia' (AQUINO, 2004, p. 145).
Portanto, não pairam dúvidas de que as garantias do devido processo legal recaem integralmente a esta fase do tribunal do júri, pois, a sessão de julgamento, nos moldes atuais que seguem os tribunais, afasta o contraditório judicial e a fundamentação das decisões, em homenagem ao sigilo das votações e soberania dos veredictos.
A interpretação atual do procedimento como um todo, leva a crer que, segundo entendimento atual das cortes de vértice, a soberania e o sigilo das votações preponderam sobre as garantias do devido processo legal, todavia, nenhum dispositivo garantidor constitucional das garantias do devido processo legal foi revogado pelas alíneas referidas.
É necessário, portanto, harmonizar, de alguma maneira, as garantias processuais e resgatar os valores constitucionais, sem que com isso, se ofenda a competência do tribunal do júri que recai ao Conselho de Sentença, porém, garantindo ao acusado a prestação jurisdicional, em respeito às garantias constitucionais, ao que compete exclusivamente na primeira fase do procedimento. Pois, a construção do veredicto por íntima convicção, faz do júri, uma arena discursiva e o seu resultado incerto, marcado pelo subjetivismo, alheia às garantias aqui traçadas pela Carta Maior, esta cujo dever de garantir é do Juiz de Direito.
REFERÊNCIAS
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[1] Éder Renato Martins Siqueira - Doutorando em Filosofia (UFPel), Mestre em Direito na FMP, Pós-Graduado em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS, graduado em Direito pela PUCRS. Colunista da www.paginasdedireito.com.br e membro do GEAK. Advogado Criminalista. Endereço eletrônico: eder@eder.rs / www.eder.rs
SIQUEIRA, Éder Renato Martins Siqueira. O IN DUBIO PRO SOCIETATE E A DECISÃO DE PRONÚNCIA NO TRIBUNAL DO JÚRI: A LINHA TÊNUE ENTRE A INVASÃO DE COMPETÊNCIA PELO JUIZ TOGADO E O CONSELHO DE SENTENÇA SOB A ÓTICA GARANTIDORA DO PROCESSO LEGAL. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1541, 16 de Agosto de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/o-in-dubio-pro-societate-e-a-decisao-de-pronuncia-no-tribunal-do-juri-a-linha-tenue-entre-a-invasao-de-competencia-pelo-juiz-togado-e-o-conselho-de-sentenca-sob-a-otica-garantidora-do-processo-legal.html