RESGATE DOUTRINÁRIO DA TEORIA TRADICIONAL DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE DA PESSOA JURÍDICA
Rolf Serick foi quem sistematizou doutrinariamente em seu livro intitulado Forma e realidade da pessoa jurídica, os princípios da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, com análise de diversos casos, dos Direitos inglês, alemão e norte-americano. Tais decisões em geral estariam embasadas em equidade e em conceitos gerais e flexíveis, como os de boa-fé, poder dos fatos, realidade da vida, consciência popular dominante, natureza das coisas. Frequentes eram as hipóteses em que não se poderia admitir a radical separação entre personalidade do ente coletivo e a dos seus membros, entre o patrimônio da sociedade empresária e o dos seus sócios, em caso do abuso por meio da utilização da forma da pessoa jurídica: fraude à lei, inadimplemento contratual, dano causado a terceiros etc... Nessas hipóteses, seria lícito desestimar, abstrair a forma da pessoa jurídica afastando-se, por conseguinte, a aplicação inflexível do princípio da separação entre a pessoa jurídica e os sócios da mesma. [1] [2]
A sua obra foi dividida em três livros. No primeiro, Rolf Serick estudou as possibilidades de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica em casos de abuso. O segundo livro aborda problemas relativos à relação entre norma e pessoa jurídica. Por fim, o livro terceiro expõe o resultado de seu trabalho, mostrando a importância de relativizar, para determinadas situações, o princípio da autonomia patrimonial, destacando a necessidade de se ter cautela ao estabelecer critérios para a aplicação da disregard of the legal entity doctrine.
Rolf Serick colacionou várias decisões dos Tribunais alemães, referentes à anulação de contratos de cessão de ações ou quotas de controles de sociedades empresárias, porque as características fundamentais da sociedade empresária explorada não correspondiam, na realidade, ao que fora declarado pelo cedente. [3] Tratava-se de uma sociedade empresária de mineração, que explorava jazida muito menos rica do que o declarado: ora discutia-se sobre a cessão de controle de uma sociedade empresária imobiliária, cujo ativo real não correspondia à aparência. Mas a orientação jurisprudencial alemã, tal como reportada por Rolf Serick, era no sentido de só levar em consideração a realidade empresária, quando o negócio pactuado tinha por objeto a totalidade das ações ou quotas sociais. Ainda assim, Rolf Serick julgou a orientação demasiado ampla, [4] pois admitia que, mesmo na cessão da totalidade de ações de uma companhia, o cessionário possa ter em vista a própria sociedade e não a empresa.
No entendimento de Rolf Serick a jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente a seus membros. E não é sem razão que tal problema se repete. O fato de que os Tribunais se encontrem sempre e mais frequentemente às voltas com o mesmo, demonstra que o respeito incondicionado pela forma da pessoa jurídica pode, em determinados casos, levar a resultados não justos. [5] A jurisprudência precisa enfrentar casos em que é necessário analisar a estrutura da pessoa jurídica e decidir pela aplicação da teoria da desconsideração para atingir a personalidade dos membros dessa pessoa jurídica. [6]
Nesse sentido, é fácil de entender porque a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica teve sua origem nos países filiados ao Direito anglossaxão, onde predomina o sistema da common law, com sua base assentada nos pilares da equidade, fraude e na doutrina da agency. No sistema da equidade estão presentes as seguintes características: a) aplicação de princípios gerais: b) função acessória em relação à common law: c) poderes discricionários dos Tribunais de equidade: d) função transformadora para atenuar e flexibilizar os rigores do direito: e) linguagem vaga e imprecisa.[7] A função da equidade no direito anglossaxão é acessória, complementar à common law, no sentido de que é indispensável para sua aplicação a inexistência de uma solução adequada neste sistema havendo uma elasticidade na aplicação da norma jurídica, a fim de adequá-la à realidade subjacente e à evolução das relações socioeconômicas. A discricionariedade dos Tribunais de equidade ocorre em três situações na fixação de sua competência (podem aceitar ou declinar uma causa, mas sempre em favor de outro Tribunal para que não haja um desamparo ao jurisdicionado), na livre apreciação das provas e na fixação de limites à proteção da parte. A função transformadora da equidade tem por escopo a atenuação dos rigores das normas da common law, diante dos diferentes matizes da realidade fática. Busca-se com esta orientação assegurar a justiça no caso concreto com invocação dos princípios gerais de direito. Como não se está no campo da técnica e sim da realidade, a linguagem utilizada nas questões dirimidas é vaga e imprecisa, a fim de poder ser interpretada de modo abrangente, genérico e versátil a outras situações análogas. [8] A justificativa está no fato de que as regras de direito da common law propiciaram aos Tribunais, na sua tarefa de restabelecer a ordem perturbada, afastarem preceitos legais, com o objetivo de conseguirem resultados mais adequados ao direito. Há uma análise do caso concreto. Na common law, por exemplo, o Direito é concebido essencialmente como jurisprudencial (case law), de tal forma que as suas regras são, fundamentalmente, as que se encontram na ratio decidendi das deliberações tomadas pelos Tribunais. [9] O mesmo não ocorre com as regras de direito da família romano-germânica, que se assenta sobre a formulação de normas de caráter generalizante, cujo objetivo é orientar condutas futuras, não procedendo, de maneira mais frequente, à análise no caso concreto. [10] Reconhece à lei função primordial considerando que a melhor maneira de se chegar a soluções de justiça está em procurar apoio nas suas disposições, relegando, assim, a jurisprudência a um papel secundário. [11]
Na jurisprudência norte-americana, onde a disregard doctrine se assentou por primeiro, as soluções têm sido casuístas, na linha da influência da equity e de sua preocupação com a justiça do caso singular, [12] tornando o juiz autêntico criador do direito (judge-made-law): o que nem sempre satisfaz as exigências de uma explicação lógica. Na prática do common law a pessoa jurídica seria apenas uma ficção imaginada por motivos técnico-jurídicos e a criação de tais metáforas seria útil para determinadas finalidades que aparentemente estejam de acordo com o ordenamento jurídico pudessem ser atingidas, pois nem os imperativos da lógica nem os do Direito poderiam exigir do juiz a preservação dessa ficção, que embora possuindo um aspecto de legalidade fosse evidenciado abuso da personalidade ou fraudes. [13]
Para Rolf Serick essa casuística pode ser encontrada nas decisões dos Tribunais americanos que, na maioria das vezes, recorrem a metáforas tais como, levantar ou traspassar o véu da personalidade jurídica (lifting or piercing the corporate veil), ou ainda de abrir a concha da pessoa jurídica (cracking open the corporate shell), constituindo em figuras de retórica, todas elas impróprias. Bastaria recorrer à própria etimologia da doutrina. A realidade da pessoa é sempre escondida pela máscara que o Direito lhe atribui, em razão do papel que representa na sociedade. Assim é que, na common law, opera-se a disregard doctrine of legal entity sempre que haja necessidade de evitar solução anômala ou injusta.
REFERÊNCIAS
ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Fundamentos da desconsideração da personalidade jurídica no sistema jurídico da common law e sua aplicação nos direitos inglês e norte-americano – influência no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. In: Temas de direito civil-empresarial. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2008.
DOBSON, Juan M. El abuso de la personalidad jurídica (en el derecho privado). Buenos Aires: Depalma, 1991.
KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
ROMITA, Arion Sayão. Responsabilidade trabalhista de sócios e/ou gestores de sociedades de responsabilidade limitada. In: Revista de Direito do Ministério Público do Estado da Guanabara, n° 9, vol. IX, set./dez., 1969.
SERICK, R. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Dott. A. Giuffrè editore, 1966.
[1] SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Giuffrè, 1966, pp. 39 et seq.
[2] Cf. ROMITA, Arion Sayão. Responsabilidade trabalhista de sócios e/ou gestores de sociedades de responsabilidade limitada. In: Revista de Direito do Ministério Público do Estado da Guanabara, n° 9, vol. IX, set./dez., 1969, p. 66-67.
[3] SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Giuffrè, 1966, p. 47 et seq.
[4] SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Giuffrè, 1966, p. 50-51.
[5] SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Giuffrè, 1966, p. 1.
[6]SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Giuffrè, 1966, p. 1-2.
[7] DOBSON, Juan M. El abuso de la personalidad jurídica (en el derecho privado). Buenos Aires: Depalma, 1991, p. 125-34.
[8] Nesse sentido ver ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Fundamentos da desconsideração da personalidade jurídica no sistema jurídico da common law e sua aplicação nos direitos inglês e norte-americano – influência no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. In: Temas de direito civil-empresarial. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2008, p. 7-8.
[9] KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 79.
[10] DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 19.
[11] KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 79.
[12] SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Giuffrè, 1966, p. 1: Essa insatisfação teórica é expressa por Rolf Serick, no preâmbulo de seu estudo sobre a matéria: falta, até agora, uma visão clara sobre os fundamentos teóricos que justificam essa violação (da personalidade jurídica). Ademais, continua extremamente discutida e incerta a determinação dos casos nos quais é possível desconhecer a autonomia subjetiva da pessoa jurídica.
[13] OLIVEIRA, José Lamartine Correa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 268.
BRASIL, Deilton Ribeiro Brasil. RESGATE DOUTRINÁRIO DA TEORIA TRADICIONAL DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE DA PESSOA JURÍDICA. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1525, 20 de Junho de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/resgate-doutrinario-da-teoria-tradicional-da-desconsideracao-da-personalidade-da-pessoa-juridica.html