Sobre a exequibilidade da sentença declaratória

 

A possibilidade de execução da sentença declaratória é questão polêmica e de acentuada importância prática. Longe está de constituir-se apenas em especulação teórica.

Tradicionalmente, rejeitava-se a possibilidade de execução da sentença declaratória e o melhor exemplo de tal entendimento está no abalizado magistério de Pontes de Miranda[1]: “Mediante a sentença proferida na ação declarativa, nem se pode executar, nem constituir.”

Todavia, a partir de 2005, quando a Lei Federal 11.232 modificou o CPC/1973 para incluir nos títulos executivos judiciais “a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia” (art. 475-N, I), a tradicional concepção de que o provimento jurisdicional de carga predominantemente declaratória não seria passível de execução sofreu um abalo do qual não se recuperou mais, especialmente após o Superior Tribunal de Justiça chancelar amplamente a tese da exequibilidade[2] e do atual CPC reiterar a opção legislativa em seu art. 515, I.

Revela-se possível, mas não é o objeto do presente ensaio, debater se esse provimento jurisdicional realmente é de carga predominantemente declaratória, pois é plausível que se entenda como uma sentença condenatória, caso se considere como tal o reconhecimento de obrigação que provoque, por meio de título novo, a necessidade de adequação da conduta ao que se mostra como comportamento juridicamente devido. Isso porque enquanto uma sentença declaratória esclareceria os contornos de obrigação fundada em título preexistente (p. ex. um contrato) e não ensejaria execução do título judicial em si, a sentença que declara obrigação e que a faz executável tem o condão de constituir-se em outro título que, por sua vez, não apenas reconhece a necessidade de adequação da conduta do obrigado a atender ao direito do credor, mas também censura sua recalcitrância e permite que se exija, a partir do próprio provimento jurisdicional, a submissão do devedor ao comando sentencial, forçando o alinhamento de seu comportamento ao quanto necessário para satisfazer o exigido pelo Direito material.

Feita essa breve digressão teórica, hoje, resta debater quando e em quais termos revela-se possível execução da sentença declaratória – ou, caso prefira-se, condenatória.

Começa-se pela análise de quando a sentença declaratória constitui-se em título exequível.

O STJ tem procurado delinear os contornos necessários ao provimento jurisdicional para que seja hábil a deflagrar o cumprimento forçado e é isso que se passa a abordar no presente escrito.

No julgamento do AgInt no Recurso Especial 1.450.891 decidiu o STJ que “reconhece a possibilidade de execução de sentenças declaratórias, desde que possuam conteúdo condenatório claro, em atenção ao princípio da efetividade.”.

Quando da apreciação de Recurso Especial submetido ao rito dos recursos repetitivos, pelo Ministro-relator foi assim definido quando seria caso de exequibilidade das sentenças declaratórias:

“o exame do conteúdo da decisão mostra-se método mais adequado à discriminação das sentenças passíveis de serem consideradas como título executivo, bastando, de acordo com doutrina, que ela contenha "a identificação integral de uma norma jurídica concreta, com prestação exigível de dar, fazer, não fazer ou pagar quantia". Nesse ponto, é relevante salientar que os referidos dispositivos legais não atribuem eficácia executiva a todas as sentenças declaratórias indiscriminadamente, mas apenas àquelas que, reconhecendo a existência da obrigação, contenham, em seu bojo, os pressupostos de certeza e exigibilidade (art. 586 do CPC/1973) , sendo certo que, na ausência de liquidez, é admitida a prévia liquidação, tal qual ocorre com o provimento condenatório.” (STJ, Corte Especial, REsp 1.324.152-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 4.5.2016, DJe 15/6/2016)

Note-se, ainda, que o precedente firmado em sede de recursos repetitivos (REsp 1.324.152) não trata propriamente do julgamento de uma ação declaratória, mas de demanda revisional que tem natureza desconstitutiva (constitutiva-negativa), firmando-se o entendimento de que na parte em que se declara o crédito do demandado existe provimento jurisdicional que reconhece obrigação passível de execução imediata. Situações como essa mostram o acerto da redação escolhida pelo legislador que usou o verbo reconhecer – e não declarar – de forma a evitar que se fosse defendida seriamente a interpretação de que somente a sentença com carga prevalentemente declaratória pudesse ser executada.

Assim, posiciona-se o STJ pela exequibilidade quando, ainda que ausente a liquidez, o provimento jurisdicional declare claramente o que é devido, por quem é devido, a quem é devido, com lastro em qual relação jurídica subjacente, bem como existam os contornos jurídicos a balizar o modo pelo que se encontrará o quanto devido. Não é necessário que já se tenha a identificação do quanto realmente é devido no caso de obrigação de pagar quantia, sendo possível a liquidação. Também não é necessário que a declaração que se pretende executar decorra de pedido procedente do autor, podendo o réu valer-se do reconhecimento do seu crédito e nem que a ação tenha caráter predominantemente declaratória.

É de amplo conhecimento que a ação declaratória se justifica ante um estado de incerteza ao passo que a condenatória ante a necessidade de compelir alguém a algo. Disso já decorre o cabimento da condenatória quando, ao invés de dúvida, o que se tem é a recalcitrância pura e simples no cumprimento da obrigação. Quando há a negativa da existência da obrigação, justifica-se, então, a declaratória.

Cumpre acrescentar que a admissão da exequibilidade do provimento declaratório impõe alguns cuidados na admissão da ação declaratória, dentre os quais o controle do valor da causa quando se pede a declaração de obrigação de compensar dano imaterial e exposição completa sobre a objeto do reconhecimento jurisdicional, especialmente sobre a existência de pretensão, dado que a existência do direito subjetivo, por si só, não enseja a possibilidade de constrangimento ao cumprimento de obrigação.

Se a ação declaratória servirá ao credor para compelir o devedor ao pagamento, então desde o início deve ficar claro o quanto se entende devido, inclusive a título de dano imaterial (art. 292, V, do CPC). Do mesmo modo, postulando-se a declaração sobre a extensão completa do direito de ver o obrigado a realizar a prestação, deve a exordial ser clara no sentido de que se reconheça não apenas o direito subjetivo, mas igualmente a pretensão respectiva, sob pena de eventualmente demandado ver-se constrangido ao cumprimento de obrigação prescrita.

Isso tudo precisa ficar muito claro para que o manejo da ação declaratória não seja via para contornar a prescrição, dificultar o exercício do contraditório e da ampla defesa, bem como para evitar problemas insolúveis no momento do cumprimento da sentença após anos de processamento.

Deve ser impedido e combatido o uso indevido da ação declaratória para burlar a prescrição ocorrida, pois apesar da ação declaratória em sentido estrito não poder ser impactada pelo fenômeno da prescrição, o reconhecimento de um direito subjetivo a determinada prestação, o dever de outrem a satisfazê-la e a exigibilidade de seu cumprimento forçado engloba, necessariamente, a constatação de que a pretensão encontra-se incólume, ou seja, que não tenha sido suprimida pelo decurso do tempo. Nesse sentido, bem pontifica Cássio Benvenutti de Castro[3]

  1. c) A tutela declaratória no sentido estrito

A pretensão de declaração, em um sentido amplo, comporta até o cumprimento de sentença. Como assentado (CASTRO, 2011), atualmente, nem seria preciso falar em “condenação”, porque um provimento jurisdicional que declara uma posição jurídica e a necessidade do ressarcimento é premissa de título executivo judicial para o cumprimento de sentença (art. 515, inciso I, do CPC).

Em contrapartida, ainda existem as tutelas declaratórias em sentido estrito, que meramente fornecem certeza jurídica a determinada situação jurídica, ou se reportam à falsidade documental – produzindo efeitos ex tunc. Essas demandas nem são meios de proteção ou restauração de direitos lesados, nem são, tampouco, meio de exercício de quaisquer direitos (criação, modificação ou extinção de um estado jurídico) (CAHALI, 2012, p. 85). No mesmo sentido, Pontes de Miranda (2013, p. 259). Ocorre uma declaração autossuficiente, uma sentença de caráter mais normativo que operativo.

A importância do esboço teórico fomentado é a seguinte: a tutela declaratória não se trata de pretensão imprescritível por ontologia (GUIMARÃES, 1980, p. 132) – como uma percepção moderna poderia considerar -, porque é preciso avistar o objeto da demanda, visualizar para dentro da pretensão e da causa de pedir para, assim, concluir a respeito da não prescrição.

Por outro lado, cumpre examinar a (in)eficácia executiva da declaração que resulta da sentença de improcedência.

Isso porque a eficácia executiva da sentença declaratória poderia ser bastante promissora em determinadas ocasiões, dentre as quais aqueles casos de ação revisional de contrato julgada improcedente na qual é assentada por sentença a dívida do autor (admitindo a execução: STJ, AgRg  no  REsp  1446433/SC, julg. 27.05.2014).

A improcedência do pedido declaratório tradicionalmente é concebido como uma afirmação jurisdicional de existência ou inexistência daquilo que se buscou negar ou afirmar.

O provimento de rejeição do pleito consistiria em na negação do que se afirmou ou do que se negou – logo, neste último caso resultaria em uma afirmação. Nesse sentido, leciona Pontes de Miranda[4]:

Se a sentença desfavorável diz que não existe a relação jurídica, que, na declaração positiva, se pretendia que existisse, há coisa julgada material: a desfavorabilidade produziu a declaração contrária. Se a sentença desfavorável, na ação declarativa negativa, contém conclusão de que a relação jurídica existe, a despeito do que se sustentou no pedido, há coisa julgada material. Passa-se o mesmo no tocante à sentença desfavorável na ação declarativa da autenticidade de documento e na ação declarativa de falsidade de documento. O “não tem razão”, nas ações declarativas, importa em “tem razão”, para a outra parte, ou para as outras partes. Tem-se de atender a que a ação declarativa tem como finalidade precípua, preponderante, o enunciado existencial: se perde quem disse que “é”, ganha quem disse que “não é”; se perde quem disse que “não é”, ganha quem disse que “é”.

Isso posto e tendo em vista o art. 515, I, do CPC, é possível a execução de sentença de improcedência, pois, como pontifica José Miguel Garcia Medina[5], “Não exige a norma jurídica que se esteja diante de sentença declaratória de procedência, necessariamente.”.

A possibilidade de execução da sentença de improcedência foi assentada em sede de julgamento de recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça, como demonstra o julgado assim ementado:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. EXEQUIBILIDADE DE SENTENÇAS NÃO CONDENATÓRIAS. ARTIGO 475-N, I, DO CPC.

  1. Para fins do art. 543-C do CPC, firma-se a seguinte tese: 'A sentença, qualquer que seja sua natureza, de procedência ou improcedência do pedido, constitui título executivo judicial, desde que estabeleça obrigação de pagar quantia, de fazer, não fazer ou entregar coisa, admitida sua prévia liquidação e execução nos próprios autos'.
  2. No caso, não obstante tenha sido reconhecida a relação obrigacional entre as partes, decorrente do contrato de arrendamento mercantil, ainda é controvertida a existência ou não de saldo devedor - ante o depósito de várias somas no decorrer do processo pelo executado - e, em caso positivo, qual o seu montante atualizado. Sendo perfeitamente possível a liquidação da dívida previamente à fase executiva do julgado, tal qual se dá com as decisões condenatórias carecedoras de liquidez, deve prosseguir a execução, sendo certa a possibilidade de sua extinção se verificada a plena quitação do débito exequendo.
  3. Recurso especial provido".

(REsp 1.324.152/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/05/2016, DJe 15/06/2016)

Todavia, essa possibilidade deve ser aceita cum grano salis porque em algumas circunstâncias a sentença de improcedência não ensejará a declaração concreta, efetiva, de uma obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa. Como bem aponta José Miguel Garcia Medina[6]

Não deverá ser considerada título executivo a sentença que reconheça, em tese, a existência de obrigação. P. ex., a sentença que julgar improcedente ação declaratória de inexistência de dívida, afirmando, genericamente, que o contrato realizado entre as partes não é nulo, não é, segundo nosso entendimento, título executivo.

Cumpre notar, ainda, a possibilidade de que a improcedência tenha ocorrido por força de determinado fundamento e que, por razão distinta, o débito não possa ser exigido do autor que sucumbiu.

Por isso, é fundamental que se admita que o suposto devedor possa, em face do cumprimento de sentença que lhe será oposto, impugnar a execução amplamente, levantando questão não posta no seio da demanda que moveu.

Basta pensar no caso de um devedor que moveu ação para ver reconhecida a nulidade de determinado título de crédito na qual adveio juízo de improcedência. Uma vez que com lastro na sentença de improcedência o credor deflagre o cumprimento da mesma poderá o devedor, ora executado, alegar a prescrição do título, fundamento que por ele não foi invocado ao tentar fulminar o título de crédito.

Pelas mesmas razões que não pode o autor valer-se de ação declaratória para tentar burlar a prescrição consumada, igualmente não se pode tolher o autor de, sucumbindo em demanda na qual buscou ver declarada a inexistência de determinado débito, opor na execução da referida sentença a prescrição do mesmo crédito que não foi por ele alegada na fase de conhecimento.

Para aqueles que reputam inviável a dedução da defesa em sede de impugnação por força da limitação cognitiva de tal via, cumpre aduzir que nada obsta que por ação autônoma seja veiculada o mesmo pleito. O que não se pode admitir é que se impeça de oportunizar ao executado que, de algum modo, valha-se de fundamento defensivo que não deduziu quando propôs a demanda da qual resultou o título executivo judicial contra si próprio.

Referências bibliográficas

CASTRO, Cássio Benvenutti de. Os critérios para identificar pretensões imprescritíveis. Revista do CEJ (Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal), ano XXIII, n. 78, jul./dez. 2019, p. 7-22.

MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2020, p. 875.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. Volume II. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 1998, p. 44.

 

[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. Volume II. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 1998, p. 44.

[2] Dentre outros: STJ, 2ª Seção, REsp 1114404, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 10.02.2010 e STJ, 4ª T., AgInt no REsp 1450891, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 24.06.2019.

[3] CASTRO, Cássio Benvenutti de. Os critérios para identificar pretensões imprescritíveis. Revista do CEJ (Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal), ano XXIII, n. 78, jul./dez. 2019, p. 16 (7-22).

[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. Volume II. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 1998, p. 78.

[5] MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2020, p. 875.

[6] MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2020, p. 873.

 

Tiago Bitencourt De David: Doutorando em Direito (PUCSP). Mestre em Direito (PUCRS). Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER). Especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Verbo Jurídico). Pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (Toledo/Espanha). Bacharel em Filosofia (UNISUL). Juiz Federal Substituto na Terceira Região.


DAVID, Tiago Bitencourt De David. Sobre a exequibilidade da sentença declaratória. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 22, nº 1577, 11 de Mai de 2022. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/sobre-a-exequibilidade-da-sentenca-declaratoria.html?Itemid=330
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Sobre a exequibilidade da sentença declaratória - O Site Páginas de Direito foi criado pelo Professor Livre Docente pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e ex Professor Titular do Mestrado e Doutorado da PUCRS

Editores: 
José Maria Tesheiner
(Prof. Dir. Proc. Civil PUC-RS Aposentado)

Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha

Advogada e Professora Universitária

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