Episódio 02: Extinção de curso irregular
Texto: | José Tesheiner | |
Narração: | José Tesheiner e Mauricio Krieger | |
Apresentação: | Bruno e Júlio Tesheiner | |
Duração: | 17 minutos e 15 segundos | |
Música: | '@HereIPop' de I Forgot: 'Epilogue', de Dee Yan-Key | |
Edição de áudio: | André Luís de Aguiar Tesheiner |
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A extinção de um curso gera obrigação de indenizar, ainda que os alunos possam continuar seus estudos em outra instituição?
THIAGO HUMBERTO SILVA ESTEVES era aluno da Faculdade São Luís, curso de graduação em administração de empresa, quando, em 13 de novembro de 2008, recebeu notificação de que o curso seria encerrado, tendo a Faculdade realizado convênio com outras instituições, para que numa delas pudesse continuar o seu curso.
Em consulta ao site do ENADE verificou que as notas das universidades conveniadas eram menores do que a da ré.
Sentindo-se prejudicado, ajuizou ação indenizatória contra a FACULDADE, visando à obtenção de ressarcimento pelos danos materiais e morais sofridos.
Citada, a FACULDADE SÃO LUÍS, preliminarmente, requereu a regularização do pólo passivo, para que constasse ASSOCIAÇÃO NÓBREGA DE EDUCAÇÃO E ASSISTÊNCIA SOCIAL. No mérito, defendeu a licitude de seu procedimento, pois agiu devidamente amparada no princípio da autonomia universitária, previsto no artigo 53, I, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ainda, indicou que os contratos de prestação de serviços são semestrais e que o encerramento das suas atividades não gerou danos ao alunos, pois realizados convênios com outras entidades em que lhes foram garantidas as mesmas condições de pagamento. Por fim, postulou a improcedência dos pedidos.
Sobreveio sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos da parte autora, para o fim de condenar a parte ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 10.200,00 (dez mil e duzentos reais), sendo custas e honorários em 50% para cada uma, admitida a compensação.
Irresignadas, as partes recorreram. Em seu apelo, a parte ré defendeu a licitude de seu agir. Adesivamente, a parte autora recorreu postulando a majoração do quantum indenizatório arbitrado pelos danos morais sofridos, além de postular a condenação ao ressarcimento pelos danos materiais experimentados.
O Tribunal de origem negou provimento a ambos os recursos.
A ré interpôs recurso especial: a autora recorreu adesivamente.
No Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino proferiu o seguinte voto:
Submeto a lide a apreciação do colegiado desta Terceira Turma por ter localizado no acervo jurisprudencial desta Corte um precedente recente da Colenda Quarta Turma em sentido contrário ao ora proposto.
(...)
Destaco que, na Colenda Quarta Turma, o entendimento que prevaleceu foi no sentido de que a extinção de curso superior feita por instituição educacional, no gozo de sua autonomia universitária, não afeta os deveres de boa-fé contratual, desde que forneça adequada e prévia informação de encerramento do curso, oferecendo alternativas ao aluno em igual condições e valores, de forma a minimizar os prejuízos sofridos pela frustração do aluno em não poder mais cursar junto àquela faculdade.
Os votos divergentes, naquele julgamento, acenaram no sentido de que a simples previsão contratual da exigência do quorum mínimo não se mostra suficiente para atender os deveres de informação impostos pelo Código de Defesa do Consumidor, entendendo-se, naquele caso, abrupta a rescisão unilateral do contrato, merecendo, assim, reparação os prejuízos sofridos pelo aluno.
As duas posições são juridicamente sustentáveis, o que recomenda uma nova reflexão acerca do tema por parte desta Terceira Turma.
Inevitável que a análise da pretensão indenizatória do presente caso passe pelo microssistema do Código de Defesa do Consumidor, exigindo-se a verificação da existência, ou não, de defeito na prestação de serviço, notadamente quanto as informações prestadas e a forma como se deu a rescisão contratual em decorrência da extinção do curso superior, como ocorreu no acórdão da Quarta Turma.
Acrescento apenas que a verificação da existência de defeito na prestação do serviço deve ser feita de forma conjugada com os princípios fundamentais do Direito Privado insculpidos no Código Civil de 2002 (função social do contrato, boa-fé objetivo) a partir do disposto no art. 187 do Código Civil, que regula o instituto do abuso de direito:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelo bons costumes. (grifei)
Ressalte-se que não se discute, no presente caso, a autonomia universitária da parte ré em sua decisão de extinção do curso, o que lhe é assegurado pelo artigo 53, I, da Lei nº 9394?96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB).
A controvérsia situa-se em torno dos efeitos dessa decisão e o dever de reparar os danos dela advindos.
Constitui inequivocamente direito da entidade educacional extinguir o curso superior por ausência de quorum.
Partindo-se desta premissa (legalidade no agir do instituto educacional), necessário verificar se houve ou não excesso no exercício desse direito, em consonância com o enunciado normativo do art. 187 do Código Civil de 2002, que regulou de forma moderna e inovadora o instituto do abuso de direito em nosso sistema jurídico como autêntica cláusula geral.
Significa que o titular de um direito que, eventualmente, se excede no seu exercício, agindo no exercício irregular de um direito, pratica um ato ilícito, configurando o chamado abuso de direito.
A noção de abuso de direito já estava presente no Código Civil de 1916, em que se fazia um leitura contrario sensu da regra correspondente ao artigo 188, I, extraindo-se o seu conceito. Adotava-se, porém, uma concepção subjetiva de abuso de direito em que se exigia a ocorrência de um ato emulativo, praticado com dolo, malícia ou má-fé pelo seu titular.
O Código Civil de 2002, além de positivar o instituto com uma norma específica, acolheu a concepção objetiva de abuso de direito, tendo por fonte de inspiração o Código Civil português de 1966.
Estabeleceu-se, assim, um conceito autônomo para o abuso de direito como sendo um ato ilícito, superando a concepção subjetiva de abuso de direito do Código Civil de 1916, para adotar uma concepção objetiva, não exigindo um elemento subjetivo específico, bastando um excesso manifesto no exercício desse direito.
Note-se que, enquanto o artigo 186 do CC?02, ao enunciar o conceito clássico de ato ilícito, fala em dolo e em culpa, exigindo a presença de um ato voluntário, negligência ou imprudência, por sua vez o enunciado do artigo 187 limita-se a estatuir que também comete ato ilícito quem se excede manifestamente no exercício do seu direito.
A exigência legal é apenas a caracterização de um excesso manifesto no exercício de um direito, não havendo necessidade que este ato seja necessariamente doloso, malicioso ou praticado com má-fé.
Outro ponto fundamental é que a regra do art. 187 do CC?02 faz uma ligação com os princípios fundamentais do Direito Privado, ou seja, quem excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
O Código Civil de 2002 tem sido elogiado e criticado como sendo 'o Código dos Juízes', por estar repleto de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. No Direito Contratual, por exemplo, consagra o princípio da autonomia privada, mas limitado pelos princípios da função social do contrato e da boa-fé (art. 421 e 422), cuja configuração é imprecisa, tendo sido recepcionados como cláusulas gerais.
Essa norma do artigo 187 do CC, ao relacionar o conceito de abuso de direito com os princípios fundamentais do Direito Privado, permite a concreção desses princípios, estabelecendo efeitos definidos para os casos em que são violados.
A principal hipótese é a configuração de um ato ilícito por conduta contrária a boa-fé objetiva.
O princípio da boa-fé objetiva tem sua origem no Direito alemão, fundamentalmente no § 242 do BGB, Código Civil alemão de 1900, constituindo um modelo de conduta social que se exige do titular de um direito, incluindo o proprietário ou o credor. Deve ele agir como um homem reto, pautado pela honestidade, pela probidade, por um padrão ético de comportamento, um standard ético de conduta, em todas as relações públicas ou privadas (v.g. relações obrigacionais).
No caso concreto, a parte autora alegou ter ingressado no quadro de alunos do curso superior da instituição educacional demandada em 17 de julho de 2007, sendo que, pouco mais de um ano depois, em 13 de novembro de 2008, recebeu a informação de que ela iria encerrar suas atividades, tendo realizado convênios com outras instituições (FEI e PUC) para o curso encerrado, com as mesmas condições e valores.
As afirmações da instituição de ensino demandada não foram reconhecidas pela sentença, que julgou parcialmente procedente a pretensão da parte autora, desacolhendo o pedido de indenização por danos materiais (taxa cobrada pela PUC para realização da matrícula), mas acolhendo o pedido de indenização pelos danos morais sofridos por reconhecer que a requerida abruptamente encerrou suas atividades.  :
(...)Não se discute o direito da entidade recorrente, em consonância com o princípio estabelecido na Constituição Federal, conferindo autonomia as instituições educacionais de criar e extinguir cursos superiores (art. 207 da CF?88), devidamente regulamentado pela Lei n. 9.493?96 ((Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB),
Entretanto, o exercício desse direito deve ater-se aos limites impostos pela ordem jurídica, especialmente o balizamento traçado pelo princípio da boa-fé obetiva.
Tanto o Tribunal de origem, quanto o Magistrado de piso, soberanos na análise da prova dos autos, reconheceram que a extinção do curso superior (direito da parte ré) se deu de forma abrupta.
Na sentença, o magistrado consignou que a requerida abruptamente encerrou suas atividades (e-STJ Fl. 266).
No acórdão recorrido, da mesma forma, restou consignado que a parte autora fora surpreendida com a notícia de extinção do curso (e-STJ Fl. 355).
Portanto, os elementos fáticos recolhidos do aresto fustigado evidenciam a plena incidência da norma prevista no artigo 187 do Código Civil, pois houve excesso manifesto na forma como se deu o exercício do direito de extinção do curso.
Destarte, para alcançar êxito ao recurso especial da parte ré, seria necessária a revisão do conjunto fático probatório para afastar o excesso apontado na origem, o que é vedado a esta Corte Superior, nos termos da Súmula 07?STJ.
Por fim, destaco que o caso dos autos distancia-se do paradigma da Colenda Quarta Turma tão somente quanto ao resultado, porque, naquele caso, não houve o reconhecimento de excesso no exercício do direito de extinção do curso superior por parte da instituição de ensino, que, neste caso, restou devidamente caracterizado e reconhecido pelas instâncias de origem.
Quanto ao recurso adesivo da parte autora, melhor sorte não lhe socorre.
(...)
Em tendo o autor optado pela PUC, que não havia assumido os alunos do seu curso, natural que arque com as despesas da transferência, pois não havia se comprometido com ela a parte ré.
Finalmente, o valor da indenização por danos morais foi arbitrado com razoabilidade, não podendo ser considerado irrisório ou exorbitante para o efeito de justificar a excepcional intervenção desta Corte para o seu controle, havendo, assim, plena incidência do enunciado da Súmula 07?STJ.
Ante todo exposto, voto no sentido de negar provimento aos dois recursos.
Decisão
A Terceira Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial e ao recurso adesivo, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
(STJ, 3a. Turma, REsp 1.341.135, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, relator, j. 14/10/2014.
Conclui-se, pois,  :que a extinção de um curso gera obrigação de indenizar, ainda que os alunos possam continuar seus estudos em outra instituição.