Episódio 07: O caso do vestido de noiva
Texto: | José Tesheiner | |
Narração: | José Tesheiner, : Felipe Ferraro e Lessandra Gauer | |
Apresentação: | Bruno e Júlio Tesheiner | |
Duração: | 16 minutos e 39 segundos | |
Música: | '@HereIPop' de I Forgot: 'Epilogue', de Dee Yan-Key:Marcha nupcial de Wagner, por :Edu_Avila | |
Edição de áudio: | André Luís de Aguiar Tesheiner |
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O caso do vestido de noiva :
JULIANA ALMEIDA, em razão do seu casamento realizado no dia 5?8?2006, comprou da CASANOVA TRAJES A RIGOR E PROMOÇÕES S?C LTDA, sob encomenda, um vestido de noiva branco em zibeline e renda cashmere, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
O referido valor foi dividido em 6 (seis) parcelas, sendo a primeira de R$ 2.000,00 (dois mil reais) e as restantes em R$ 1.600,00 (hum mil e seiscentos reais. E o pagamento foi efetuado por intermédio de cheques emitidos pela segunda Autora, mãe da primeira, todos com data de vencimento para o dia 15 de cada mês, a partir de abril?2006 (doc. 02).
Chegando em Brasília, foi obrigadas a contratar, urgentemente, um respeitado estilista em Brasília - : Sr. PAULO ARAÚJO - : para reparar e reformar o vestido, especificamente para substituir o tecido, aplicar plissé e refazer o acabamento em todo o contorno da barra, conforme se vê da nota fiscal em anexo (...) Em suma, diante da má qualidade do serviço prestado, ela e sua mãe sustaram o pagamento dos últimos cheques entregues à CASANOVA, no valor total de R$ 3.200,00 (três mil e duzentos reais) e : desembolsaram R$ : 3.900,00 : (três mil e novecentos reais) para reparar e deixar o vestido em perfeito estado' (e-STJ fl. 6 - grifou-se).
Na 'última prova, dia 27?7?2006', constataram graves defeitos no vestido contratado, e, apesar da reclamação, não houve nenhum reparo imediato, motivo pelo qual, após a cerimônia de casamento, notificaram formalmente a CASANOVA, em 21?8?2006, acerca dos alegados vícios. :
Em 31/8/2006, tomaram conhecimento da contranotificação da fornecedora, negando a existência de possíveis vícios.
JULIANA e sua mãe ajuizaram ação declaratória de inexistência de débito cumulada com indenização por danos morais e materiais contra a referida CASANOVA TRAJES A RIGOR E PROMOÇÕES S?C LTDA.
Requereram a procedência dos pedidos para ver declarada a inexistência de crédito em favor da ré, a anulação dos dois últimos cheques emitidos em pagamento dos serviços, a condenação da requerida ao pagamento da quantia de R$ 700,00 (setecentos reais) a título de danos materiais ou, subsidiariamente, ao pagamento de R$ 3.900,00 (três mil e novecentos reais), caso não anulados os cheques sustados, bem como indenização por danos morais no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) para cada parte lesada (noiva e mãe da noiva).
O juízo de primeira instância extinguiu o feito, com resolução do mérito, por reconhecer a decadência do direito das autoras, com fulcro no art. 269, IV, do Código de Processo Civil, em virtude da caducidade do direito pleiteado, à luz do art. 26, inciso I, do CDC, que prevê o prazo de 30 (trinta) dias para reclamação de vícios aparentes em produtos e serviços não duráveis, conclusão que restou mantida pelo Tribunal local, que afirmou:
Nos termos do art. 26, I, do CDC, o consumidor tem 30 dias para reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação em se tratando de serviço ou de produto não durável, sob pena de decair do direito de fazê-lo.
Recurso não provido.
Foi interposto recurso para o Superior Tribunal de Justiça. No julgamento, disse o Relator, Ministro Ricardo Villas Bas Cueva:
Como se sabe, a garantia legal de adequação de produtos e serviços é direito potestativo do consumidor, porquanto assegurado em lei de ordem pública (arts. 1º, 24 e 25 do Código de Defesa do Consumidor.
(...)
A facilidade de constatação do vício e a durabilidade ou não do produto ou serviço representam no Código de Defesa do Consumidor : os critérios legais para a fixação do prazo decadencial para reclamação de vícios aparentes ou de fácil constatação. Assim, se o produto for durável, o prazo será de 90 (noventa) dias, caso contrário, se não durável, o prazo será de 30 (trinta) dias.  :
(...)
O acórdão recorrido, ao valorar as premissas fáticas postas nos autos, assentou que o vestuário teria natureza de bem não durável, motivo pelo qual aplicou o prazo decadencial de 30 (trinta) dias previsto no art. 26, inciso I, do CDC, extinguindo o feito com resolução do mérito por terem sido ultrapassados 4 (quatro) dias daquele prazo.
(...)
Tal conclusão, contudo, não se sustenta no ordenamento pátrio.
Entende-se por produto durável aquele que, como o próprio nome consigna, não se extingue pelo uso, levando certo tempo para se desgastar. Ao consumidor é facultada a utilização do bem conforme sua vontade e necessidade, sem, todavia, se olvidar que nenhum produto é eterno, pois, de um modo ou de outro, todos os bens : tendem a um fim material em algum momento, já que sua existência está atrelada à sua vida útil.
O aspecto de durabilidade do bem impõe reconhecer que um dia todo bem perderá sua função, deixando de atender à finalidade à qual um dia se destinou. O bem durável é aquele fabricado para servir durante determinado tempo, que variará conforme a qualidade da mercadoria, os cuidados que lhe são emprestados pelo usuário, o grau de utilização e o meio ambiente no qual inserido. Portanto, natural que um terno, um eletrodoméstico, um automóvel ou até mesmo um livro, à evidência exemplos de produtos duráveis, se desgastem com o tempo, já que a finitude, é de certo modo, inerente a todo bem.
Por outro lado, os produtos não duráveis, tais como alimentos, os remédios e combustíveis, em regra in natura, findam com o mero uso, extinguindo-se em um único ato de consumo. O desgaste é, por consequência, imediato.
Na hipótese dos autos, há que se reconhecer que o bem em objeto de análise é um vestido de noiva, incluído na classificação de bem de uso especial, tidos como “aqueles bens de consumo com características singulares e?ou identificação de marca, para os quais um grupo significante de compradores está habitualmente desejoso e disposto a fazer um especial esforço de compra (exemplos: marcas e tipos específicos de artigos de luxo, peças para aparelhos de alta fidelidade, equipamento fotográfico”. (José Geraldo Brito Filomeno, Manual de Direitos do Consumidor, 10ª Edição, São Paulo, Editora Atlas S.A., 2010, pág. 47)
Logo, o vestuário, mormente um vestido de noiva, : é um bem 'durável', pois não se extingue pelo mero uso. Aliás, é notório que por seu valor sentimental há quem o guarde para a posteridade, muitas vezes com a finalidade de vê-lo reutilizado em cerimônias de casamento por familiares (filhas, netas e bisnetas) de uma mesma estirpe.
Por outro lado, há pessoas que o mantém como lembrança da escolha de vida e da emoção vivenciada no momento do enlace amoroso, enquanto há aquelas que guardam o vestido de noiva para uma possível reforma, seja por meio de aproveitamento do material (normalmente valioso), do tingimento da roupa (cujo tecido, em regra, é de alta qualidade) ou, ainda, para extrair lucro econômico, por meio de aluguel (negócio rentável e comum atualmente).
Desse modo, o vestido de noiva jamais se enquadraria como bem não durável, porquanto não consumível, tendo em vista não se exaurir no primeiro uso ou em pouco tempo após a aquisição, para consignar o óbvio. Aliás, como claramente se percebe, a depender da vontade da consumidora, o vestido de noiva, vestimenta como outra qualquer, sobreviverá a muitos usos.
Com efeito, o desgaste de uma roupa não ocorre em breve espaço de tempo, em especial quando cediço que um dos elementos estimuladores do consumo é a qualidade da roupa. Não é inapropriado dizer que muitas vezes há roupas mais duradouras que produtos eletroeletrônicos (também considerados duráveis) e, não por outro motivo, as roupas, em geral, possuem instruções de uso e lavagem a fim de lhe permitir longa vida útil, ou seja, maior durabilidade. De fato, tanto as roupas são bens considerados duráveis que, não raro, são objeto de doações, pois, mesmo já gastas ainda preservam o estado de uso, em especial para aqueles com menor capacidade econômica, o que deve ser sempre estimulado em um país cuja miserabilidade cresce a cada dia.
Ademais, é inegável existirem roupas que têm valor sentimental incomensurável por terem pertencido a membros da família, muitos já falecidos, ou ainda, por terem sido adquiridas na infância.
No particular, impõe-se reconhecer que todo produto possui uma 'vida útil'. Todavia, o produto durável não tem uma vida efêmera, muito 'embora não se exija que seja prolongada, na medida em que é do próprio capitalismo que vivemos que cedo ou tarde todos e qualquer produto ou serviço seja substituído por uma nova aquisição que venha alimentar o ciclo de consumo'. (Caio Augusto Silva Santos e Paulo Henrique Silva Godoy, em obra Coordenada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, O Novo Código Civil – Interfaces no Ordenamento Jurídico Brasileiro – Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2004, pág. 99)
Registre-se, por oportuno, os inúmeros exemplos de resistência ao tempo das roupas, citando-se, a título ilustrativo: o manto do imperador D. Pedro II, até hoje peça das mais apreciadas do acervo do Museu Imperial de Petrópolis?RJ: os vestidos de Carmen Miranda, expostos, inclusive, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM): as vestimentas oficiais do ex-Presidente Juscelino Kubitschek mantidas no Museu do Catetinho, em Brasília?DF, e, ainda, as vestes intactas do Papa João XXIII, cujo corpo está em exposição permanente em um sarcófago de vidro na Basílica de São Pedro no Vaticano.
Em consequência, o prazo decadencial incidente no caso em apreço é o aplicável aos bens duráveis, qual seja, o de 90 (noventa) dias, versando hipótese de vício aparente ou de fácil constatação na data da entrega (tradição), conhecido como aquele que não exige do consumidor médio nenhum conhecimento especializado ou apreciação técnica (perícia), por decorrer de análise superficial do produto (simples visualização ou uso), cuja constatação é verificável de plano, a partir de um simples exame do bem ou serviço, por mera experimentação ou por “saltar aos olhos” ostensivamente sua inadequação.
Por outro lado, o CDC estabelece que o prazo decadencial se inicia a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução do serviço (art. 26, § 1º, do CDC), diferentemente dos vícios ocultos, em que o prazo começa a partir de sua manifestação (art. 26, §§ 1º e 3º do CDC).
Alegam as autoras que o vestido de noiva entregue não estava em perfeito estado de uso, nem mesmo representava o modelo previamente combinado pelas partes, frustrando as justas expectativas da consumidora às vésperas do evento. Desse modo, por apresentar defeitos substanciais de confecção, precisou buscar outro profissional para realizar os consertos indispensáveis à utilização da roupa pela noiva na cerimônia de casamento. Dentre os defeitos alegados pelas autoras, destacam-se: 'o decote foi abaixado, a frente do vestido foi trocada, o forro foi todo trocado, foi usado outro véu, foi colocado cetim sem costura, o babado foi adaptado, alguns tecidos foram trocados (estavam do lado avesso), entre outras alterações' (e-STJ fl. 7)
São irrefutáveis a angústia e a frustração de qualquer pessoa que contrate um vestido para uma ocasião especial, tal como o dia da cerimônia do casamento, cujos preparativos permeiam expectativas e sonhos das partes envolvidas, inclusive de familiares e amigos.
A situação de inadequação que desafia a responsabilidade por vícios do produto ou serviço apta a merecer reparos pode se referir tanto à quantidade como à qualidade da mercadoria cuja utilização se reputa imprópria : ao consumo, estando estampadas nos artigos 18 a 25 do Código de Defesa do Consumidor : as alternativas de substituição do produto, o abatimento proporcional do preço, a reexecução do serviço, ou até mesmo a resolução do contrato, com a restituição do preço.
A tradição da mercadoria defeituosa foi realizada uma semana antes do matrimônio, afirmando as recorrentes que o resultado do objeto do contratado violou a garantia legal de adequação inerente a qualquer produto posto no mercado, deixando de satisfazer a necessidade do destinatário final, o consumidor (art. 24 do CDC), o que deve ser demonstrado na instrução do feito.
Saliente-se que tal insurgência há de ser exercida dentro dos exíguos prazos previstos no CDC (art. 26, incs. I e II). No caso, as autoras insurgiram-se tempestivamente, motivo pelo qual não merece guarida a tese da decadência.
(...)
Extrai-se dos autos que a última prova do vestido ocorreu no dia 27?7?2006, quando o vestido supostamente danificado foi entregue às consumidoras, tendo a empresa recorrida sido notificada extrajudicialmente dos alegados vícios em 21?8?2006. Por sua vez, as autoras foram cientificadas da contranotificação em 31?8?2006, tendo sido a presente ação judicial proposta em 4?9?2006.
Como se vê, qualquer que seja a interpretação que se confira ao verbo obstar constante do art. 26 do CDC, no presente caso não há falar em decadência, porquanto não transcorrido o prazo de 90 (noventa) dias. Portanto, independentemente de se reconhecer a suspensão ou a interrupção da noventena legal, o prazo foi efetivamente “obstado” pela reclamação formalizada pela notificação extrajudicial da recorrida.
(...)
Desse modo, afasto a decadência do direito potestativo de reclamar os eventuais vícios do vestido de noiva, reputado impróprio ao uso (arts. 18, § 6º, e 20, § 2º, do CDC), equivocadamente declarada pelo Tribunal de origem, por incidir, no caso concreto, o prazo de 90 (noventa) dias pertinentes aos 'bens duráveis', nos termos do art. 26, inciso II, do CDC.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial e determino o retorno dos autos às instâncias de origem, para que analise o mérito do pedido de indenização material e moral como entender de direito.
E essa foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça.
 :(STJ, 3a. Turma, REsp. 1.161.941, Min. Ricardo Villas Boas Cueva, rel., j. 5/11/2013).
Veja-se que apenas foi afastada a preliminar de decadência. Na verdade, o processo estará recém começando.
Falta apurar se os fatos ocorrer como narrado e se deles decorrem as conseqüências pretendidas pelas autoras.
Uma longa história, que ainda não terminou.