Episódio 10: Competência jurisdicional na tutela coletiva (perguntas e respostas)
Texto: Marcelo Hugo da Rocha Apresentação:Marcelo Bopp Tesheiner Narração: Marcelo Hugo da Rocha e Sophia Salerno Peres Duração do episódio: 16 minutos e 24 segundos Música:J.S.Bach, Concerto para violino em lá menor, por Zimbalista (www.jamendo.com) Edição de áudio:André Luís de Aguiar Tesheiner :e Bruno Jardim Tesheiner |
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Competência jurisdicional na tutela coletiva (perguntas e respostas)
Dentre os temas mais debatidos no processo civil coletivo está, sem dúvida alguma, a competência. Para compreender melhor e refletir com o que se passa quando os legitimados estão diante da posição em distribuir suas ações coletivas, apresentamos perguntas com as respectivas respostas pelos tópicos que mais geram controvérsias, seja para jurisprudência, seja para doutrina especializada.
1 – A competência no processo coletivo se equivale aos processos individuais?
Não. A competência no processo coletivo apresenta peculiaridades em relação às demandas de jurisdição singular, cuja referência legal é o Código de Processo Civil. A regra geral, conforme consta no CPC, é que a demanda seja ajuizada no domicilio do réu quando verse sobre direito pessoal (art. 94). Por outro lado, para as ações coletivas, a regra geral é que o foro seja do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano. Apesar de ambas seguirem um critério territorial, enquanto que a regra do CPC é de competência relativa para as ações de direito pessoal, a outra é funcional, ou seja,absoluta.
Ademais, a competência absoluta na jurisdição coletiva pode ser modificada, por exemplo, pela conexão, de acordo com a Lei da Ação Civil Pública (art. 2º, parágrafo único), ao contrário do que determinam as regras do CPC.
A própria prevenção, em que se verifique a necessidade de reunião de processos para julgamento conjunto, é distinta, pois no processo individual se dá ou pela citação (art. 219, CPC) ou pelo primeiro despacho (art. 106, CPC), já nas ações coletivas a propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto (art. 2º, parágrafo único, Lei 7.347/1985). :
2 – Onde se encontra a regulamentação da competência jurisdicional para o processamento e julgamento das ações coletivas?
A base legislativa está ancorada no art. 93 do Código de Defesa do Consumidor, no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, no art. 209 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 80 do Estatuto do Idoso, no art. 5º da Lei de Ação Popular, entre outros.
3 – Há compatibilidade entre as regras legais citadas para as ações coletivas?
Até a publicação do CDC em 1990, a regra do art. 2º da Lei da Ação Civil Pública era interpretada literalmente, ou seja, “as ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa”. Disso, mesmo que houvesse os motivos para que ação fosse deslocada para uma vara federal, caso no local do dano não a tivesse, competia ao juiz estadual sua resolução.
O STJ, através da Súmula 183, concluiu que competia ao Juiz Estadual, nas Comarcas que não sejam sede de vara da Justiça Federal, processar e julgar ação civil pública, ainda que a União figure no processo. Porém, as regras do CDC puseram novas luzes ao tema da competência, incluindo o resguardo da competência da Justiça Federal, bem como Supremo Tribunal Federal afastou o entendimento da referida súmula, aplicando-se a regra geral que traz o art. 109 da Constituição Federal.
Com o advento do CDC e a sua regra normativa do art. 93 e seus dois incisos a respeito da competência, houve o implemento de uma “categorização” dos danos que originassem as demandas coletivas. A partir de então, passou a ser competente para a causa a justiça local no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local e no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do CPC aos casos de competência concorrente.
A aparente sobreposição das normas comentadas não gerou a revogação legislativa do artigo da Lei da Ação Civil Pública, visto que o CDC é uma norma posterior e integrativa, nem mesmo os tribunais superiores avalizaram por uma revogação tácita. A doutrina tende pela convivência de ambas as regras, embora haja críticas quanto à confusão que se tornou o tema sobre a fixação de competência para as ações coletivas.
Em relação ao Estatuto do Idoso, prevê que as suas ações serão propostas no foro do domicílio do idoso, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores. Interpreta-se, diante das outras regras, que em se tratando de ação coletiva proposta em proteção aos direitos do idoso, o local do dano, da ofensa às garantias ou da omissão lesiva ou ao oferecimento insatisfatório é o local onde vive o idoso. Essa posição é resistida por parte da doutrina (Elpídio Donizetti e Marcelo Malheiros Cerqueira) que entende como aplicáveis, em preponderância, a Lei da Ação Civil Pública e o CDC.
Quanto à Lei da Ação Popular, apesar de cuidar da competência em razão do juízo conforme se estabelece em seu art. 5º (“Conforme a origem do ato impugnado, é competente para conhecer da ação, processá-la e julgá-la o juiz que, de acordo com a organização judiciária de cada Estado, o for para as causas que interessem à União, ao Distrito Federal, ao Estado ou ao Município”), é aplicável a regra da competência territorial absoluta do foro do local do dano.
4 – A doutrina aponta esse tema como “calcanhar de Aquiles” do processo coletivo brasileiro, por quais razões?
Consta que quem trouxe essa expressão foi Athos Gusmão Carneiro e depois repetida pela doutrina em outras oportunidades, como por Elton Venturi “seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta” (in “Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos”, RT, 2007, p.96).
De fato, a falta de conceitos legais a respeito do alcance das locuções “dano local”, “dano regional” e “dano nacional” permitem que grande parte dos debates tenha como foco a indeterminação da competência da jurisdição coletiva, gerando insegurança e instabilidade na sua fixação através de uma afirmação jurisdicional que pode levar muitos anos até o seu deslinde, ao passo que o conteúdo é de grande relevância social e coletivo e que, geralmente, exige uma decisão breve, como, por exemplo, em questões ambientais.
O próprio princípio do juiz natural, garantia constitucional, acaba sendo prejudicado pela falta de critérios objetivos que se deseja quando se trata de competência, deixando certa discricionariedade a quem definirá, principalmente, se o dano é regional ou nacional. A prática tem demonstrado que juízes de comarcas do interior têm julgado competentes para causas de interesse nacional, deferindo, inclusive liminares com abrangência erga omnes.
De outra banda, a crítica doutrinária se faz para a transferência aos foros das capitais dos Estados federativos ou do Distrito Federal em caso de dano regional ou nacional, tendo em vista da distância, em todos os aspectos, de quem irá julgar e das provas técnicas, periciais e testemunhais colhidas a que se refere o local do dano, regra originária da Lei da Ação Civil Pública em privilégio ao princípio da imediação. Por ainda dizer, a defesa de relevante doutrina (Ada Pellegrini Grinover) de que os danos de âmbito nacional deveriam ser julgados exclusivamente no foro do Distrito Federal quanto à interpretação do inciso II do art. 93 do CDC.
5 – Como se diferencia, então, a extensão dos danos?
Conforme foi referido anteriormente, não há uma definição legal do que seja dano local, regional ou nacional, deixando a amplitude conceitual para o debate doutrinário e ao julgamento caso a caso devido aos elementos envolvidos da realidade. Diante dessa incerteza que envolve esses conceitos jurídicos indeterminados, parece mais próximo afirmar que o dano de âmbito local seria aquele a atingir a jurisdição de uma comarca ou de algumas delas contíguas.
Já o dano de âmbito regional cresce em relação ao número considerável de cidades envolvidas em todo um Estado, por exemplo, um rio poluído que atravesse diversos municípios com populações ribeirinhas atingidas pela contaminação, ou mesmo, na divisa de dois Estados alcançados. O dano de âmbito nacional supera a fronteira de um Estado e o interesse é de amplitude também nacional.
6 – Qual a posição do STJ em razão da competência referente às ações coletivas?
De acordo com o STJ, o “CDC traz vários critérios de definição do foro competente, segundo a extensão do prejuízo. Será competente o foro do lugar onde ocorreu – ou possa ocorrer – o dano, se este for apenas de âmbito local (art. 93, I). Na hipótese de o prejuízo tomar dimensões maiores - dano regional ou dano nacional-, serão competentes, respectivamente, os foros da capital do Estado ou do Distrito Federal (art. 93, II). Ainda que localizado no capítulo do CDC relativo à tutela dos interesses individuais homogêneos, o art. 93, como regra de determinação de competência, aplica-se de modo amplo a todas as ações coletivas para defesa de direitos difusos, coletivos, ou individuais homogêneos, tanto no campo das relações de consumo, como no vasto e multifacetário universo dos direitos e interesses de natureza supraindividual” (REsp 448470 / RS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 15/12/2009).
Em decisão tomada em Ação Civil Pública ajuizada com a finalidade de discutir a prestação de serviço de telefonia para a defesa de consumidores de todo o Estado do Rio Grande do Sul, o STJ entendeu que como “a potencial lesão ao direito dos consumidores ocorre em âmbito regional, a presente demanda deve ser aplicado o inciso II do art. 93 do CDC, mantido o aresto recorrido que determinou a competência da Vara da Capital – Porto Alegre – para o julgamento da demanda. Precedente do STJ” (REsp 448470 / RS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 15/12/2009).
Houve quem interpretasse o inciso II do art. 93 do CPC que em caso de dano nacional a competência seria apenas restrita ao foro do Distrito Federal, no entanto, o STJ vem mantendo a posição de que “tratando-se de dano de âmbito nacional, que atinja consumidores de mais de uma região, a ação civil pública será de competência de uma das varas do Distrito Federal ou da Capital de um dos Estados, a escolha do autor” (CC 112235 / DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe 16/02/2011).
Outra questão relevante trata da competência absoluta, mas que pelas características próprias das ações coletivas, pode ser flexionada, como se dá pela conexão. Diante disso, o STJ tem firmado que “pela leitura do art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 7347/85 deve ser fixado como foro competente para processar e julgar todas as ações o juízo a quem foi distribuída a primeira ação (...)” e que apesar do enunciado Sumular 235/STJ - a conexão não determina a reunião dos processos, se um deles já foi julgado – “se o conflito decorre de regra de competência absoluta (art. 93, inciso II, do CDC), como no presente caso, não há restrição a seu conhecimento após prolatada a sentença, desde que não haja trânsito em julgado” (CC 126601 / MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 05/12/2013).
Por fim, quanto à categorização dos danos, o STJ já decidiu, quando da privatização da ELETROPAULO S/A e os empréstimos concedidos pelo BNDES em favor das empresas interessadas, que o “caráter nacional dos danos causados ao erário - se ratifica também em face dos vultuosos valores que são objeto da presente lide, sendo certo que o processo de privatização de uma empresa estatal de energia elétrica não se restringe aos limites territoriais de um determinado Estado por envolver interesses de investidores não só nacionais mas também internacionais. Assim, não há como negar a amplitude nacional dos danos ao erário que foram causados em decorrência da suposta fraude investigada no âmbito da referida ação civil pública” (REsp 1320693 / SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 05/12/2012).
Em outra oportunidade, o STJ afirmou competente o foro da capital do Rio de Janeiro, mantendo a decisão do Tribunal de Justiça do RJ, em ação coletiva envolvendo dano ao consumidor, por entender o interesse de âmbito nacional em relação a dados não verdadeiros de rótulos da embalagem de diversos produtos, dentre eles, de uma fabricante gaúcha. Essa recorreu, alegando que seus produtos eram comercializados somente no Estado do Rio Grande do Sul e que os danos eventualmente causados seriam, portanto, de âmbito regional, sendo incompetente o juízo do Rio de Janeiro (AgRg no Ag 1405578 / RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 25/06/2012).
Também se entendeu que “tratando-se de dano de âmbito nacional, que atinja consumidores de mais de uma região, a ação civil pública será de competência de uma das varas do Distrito Federal ou da Capital de um dos Estados, a escolha do autor” ao que se pretendia em ação civil pública proposta para o pagamento de diferenças de correção monetária expurgadas de cadernetas de poupança em decorrência da implementação do Plano Bresser (STJ, CC 112235 / DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe 16/02/2011).
Nesse sentido, o STJ tomou que “o alegado dano ao consumidor que compra veículo automotor, com cláusula de garantia supostamente abusiva, é de âmbito nacional,porquanto a garantia de que se cogita é a fornecida pela fábrica, não por concessionária específica, atingindo um número indeterminado de consumidores em todos os Estados da Federação” (REsp 712006 / DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 24/08/2010).
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BIBLIOGRAFIA
DIDIER JR., Fredie: ZANETI JR., Hermes. Curso de Processo Civil. Processo Coletivo. 8.ed. Bahia: Jus Podivm, 2013.
DONIZETTI, Elpídio: CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de Processo Coletivo. São Paulo: Atlas, 2010.
GOZZOLI, Maria Clara: outros. (coord.). Em defesa de um novo sistema de processos coletivos. Estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010.
GRINOVER, Ada Pellegrini: outros. (coord.). Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: RT, 2007.
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 2. Ed. São Paulo: RT, 2011.