Tratado da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca: Resenha
Fábio José Rauen - Possui graduação em Letras Português/Inglês pela Fundação Educacional do Norte Catarinense: mestrado e doutorado em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina: e pós-doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
RESUMO
A razão pós-cartesiana, reduzida à lógica formal, fez irracionais a imaginação, a sugestão e a intuição. Ora, se quisermos postular uma teoria da argumentação que admita a razão para dirigir a ação de influenciar, isso é inconcebível. Portanto, a idéia da evidência como característica intrínseca da razão deve ser posta em questão. A qualidade de uma argumentação é função das consciências convencidas. Argumentar visa à adesão e se desenvolve em função do auditório, seu elemento fundante. Ela pressupõe a dialética, enquanto arte de raciocinar a partir de opiniões aceitas, e se constrói no seio da retórica. Sob este prisma Perelman e Olbrechts-Tyteca em “Tratado da Argumentação: a nova retórica” analisam o texto escrito visando aos recursos discursivos e aos meios pelos quais o discurso condiciona o auditório.
The post-Descartes reason, restrict to a formal logic, qualifies as illogical the imagination, the suggestion and the intuition. If we want to postulate a theory of the argumentation, that admits the reason to direct the act of influence, this assumption is inaccetable. Therefore, the idea of the evidence as intrinsic characteristic of reason must be questioned. The quality of a argumentation is function of the convinced consciences. The argumentation intends to the adhesion and develops beyond the audience notion. It presuposes the dialectics, at the sense of art of reasoning about accepted opinions, and structures itself in the rhetoric environment. On this approach Perelman and Olbrechts-Tyteca in “Tratado da Argumentação: a nova retórica” analyse the writing text in order to perspective the discours resourses and to detach how the discours influences the audience.
UNITERMOS
Lingüística, Teoria da Argumentação, Retórica
Os âmbitos da argumentação
É preciso contraporem-se argumentação e demonstração. O lógico é livre para conceber sistemas axiomáticos desde que sejam coerentes e evitem dúvidas ou ambigüidades. Esta univocidade levou os formalistas a esquecerem os sentidos das expressões, visto serem tarefas daqueles que aplicam os sistemas. Todavia, isso não é possível no âmbito da argumentação, onde há um contato intelectual e algo a se debater. :Se a argumentação visa à adesão consciencial, é preciso ter, além do domínio de técnicas ou da linguagem, apreço por esta adesão. Não basta escrever ou falar, mas é fundamental ser lido ou ouvido. É na instância do “outro” que há a possibilidade do convencimento. É mister reconhecer que é honroso ser convencido e aceitar limitações convencer. A arrogância é fruto da subestimação do “outro”. :Diferente de pessoas avistadas por um orador, auditório é “o conjunto daqueles a quem o orador quer influenciar com sua argumentação”. Isso implica que deve ser uma construção consciente do orador. É necessário conhecer quem nos ouve, identificar suas condicionantes sociais. Em função desse conhecimento, o orador deve saber influenciar grupo por meio de técnicas externas e internas ao próprio discurso. Neste processo auditório e orador se transformam dialeticamente.
A questão dos auditórios
A dimensão do auditório põe em questão a distinção de persuasão e convencimento. Se por um lado concebemos a argumentação como resultado, onde a ação é o alvo do processo, persuadir é maior do que convencer. Se por outro, visamos à racionalidade (perceba-se a importância da noção de razão!), convencer é maior do que persuadir. Para os autores esta distinção tem a ver também com a amplitude do auditório. A persuasão vale-se de um auditório particular: o convencimento visa à adesão de todo o ser racional. :A noção de um auditório universal surge em defesa do orador. A necessidade de se adaptar ao auditório implica a possibilidade de superestimar grupos que não são de fato representativos. A conseqüência são paradoxos e contradições ante a contra-argumentação alheia. É para isso que se cria uma imagem de um auditório que englobe a totalidade dos seres. :Dado que é uma construção imaginária, este auditório universal se conforma em função dos indivíduos que o criam. Se é certo que ao nos conformar com a maioria podemos qualificar a minoria como recalcitrante: não é menos certo que ao considerar uma minoria como universal, criamos uma auditório de elite, dotado de conhecimentos excepcionais e infalíveis. Neste caso, o auditório de elite é universal para quem o reconhece, embora aos excluídos, trate-se de um mero auditório particular. :Um cientista pode até se dirigir a um auditório particular (de elite) como se fosse universal. Quem não acompanha o faria se obtivesse igual informação ou igual competência. Em outras palavras, não é auditório universal apenas porque há pessoas que estão despreparadas para integrá-lo. :Isso posto, auditórios concretos concebem auditórios universais próprios. Paradoxalmente, é o estatuto de “auditório universal” que julga a concepção de auditório universal próprio de cada auditório concreto.
Argumentar e dialogar
A argumentação ante o outro (dialética) é superior àquela que se dirige a vários (retórica), uma vez que são as contraposições dos outros que nos impõem retomadas e esforços em prol da verdade. A adesão de uma personalidade (diferente da de uma pessoa em particular) ocorre porque ela tem de inclinar-se ante a evidência da verdade, visto que a convicção advém do confronto rigoroso de seu pensamento com o do orador. :Neste contexto pressupõe-se a noção de diálogo, como uma discussão que visa à melhor solução para um problema polêmico e que leva a uma conclusão inevitável e universalmente aceita: e, evita-se a noção de debate, que consiste na luta em defesa de convicções estabelecidas e opostas no qual cada um usa argumentos favoráveis à sua tese e refuta o alcance daquilo que não lhe é favorável. :Frise-se que esta distinção teórica é complexa na prática, dado que dificilmente chegamos a uma discussão sem defender pontos de vista e sem nos convencermos que a vitória do nosso ponto de vista é o triunfo de uma causa justa. Por outro lado, consiste numa distinção de extremos que delimitam diálogos habituais, dentro dos quais a verdadeira argumentação ocorre. :Aquele que questiona a si mesmo encarna simultaneamente o orador e o auditório universal, uma vez que ele não pode deixar de ser sincero consigo mesmo. Nunca devemos esquecer que ao sermos convencidos, somos vencidos por nós mesmos, pelas nossas idéias. Quando somos persuadidos sempre o somos pelos outros. Assim, um acordo consigo mesmo é uma espécie de acordo com os outros e a análise de como argumentamos com os outros é parâmetro para conhecermos a análise de nós mesmos.
Argumentação e violência
Em tese, argumentar é renunciar à força como solução única. Quando se dá apreço à adesão do outro, obtida pela persuasão racional, temos que aceitar nos pormos no ponto de vista do interlocutor. Entretanto, há argumentações que são dissimulações – o orador impõe ao auditório a obrigação de ouvir: ou, o auditório finge fazê-lo. :O recurso à unanimidade é violência porque não há como a dúvida se instaurar. Mesmo assim, há momentos em que a argumentação deve cessar – quando a ação se impõe, quando um veredicto se instaura. Nestes casos a noção de objetividade e de imparcialidade são úteis. :Neste contexto podem ser detectados dois extremos: o do fanatismo e o do cepticismo, ambos cerceadores do exercício argumentativo. Ser fanático é aderir à tese contestada e para a qual uma prova indiscutível não pode ser fornecida, recusando-se a discuti-la. Ser céptico é exigir provas coercivas e demonstrativas para aderir a uma tese. :O indivíduo deve aderir à tese pelo envolvimento responsável. Para Perelman e Olbrechts-Tyteca, o fanático o faz como se ela fosse absoluta ou irrefragável: o céptico se recusa ao envolvimento, dado que ela nunca é definitiva. Esquecem ambos que argumentar é escolher entre possíveis. São ambos focos de violência. :O acordo :O exercício da argumentação deve ser feito a partir do acordo com o auditório. O objeto de um acordo pode se dar no campo do real (fatos, verdades e presunções) ou no campo do preferível (valores, hierarquias e lugares). Os primeiros implicam a adesão de um auditório universal: já os segundos visam aos auditórios particulares. :A noção de fato em argumentação é um gênero de acordo. Trata-se de algo comum a vários entes pensantes, que poderia ser comum a todos, cuja adesão é uma reação subjetiva e que se impõe a todos. Qualquer fato, quer de observação, quer de suposição, deixa de sê-lo quando é posto em dúvida ou quando o grupo aumenta inserindo pessoas que não o admitem como tal. Isso posto, não há critérios objetivos nas condições que favorecem os acordos. :As verdades são sistemas complexos relativos a ligações entre fatos, quer científicos, filosóficos ou religiosos que transcendem a experiência. :A presunção, cuja adesão não é máxima, é uma noção que se vincula ao verossímil ou normal. Diferente da probabilidade estatística, uma presunção é vista sempre a partir de grupos de referência e sujeita a mudanças de prisma. Quando tentamos justificar uma presunção podemos fortalecê-la, quando o fazemos diante de fatos e verdades, podemos enfraquecê-los. :A noção de valor surge devido à multiplicidade dos grupos. Ela tem um caráter precário e indispensável. Os valores são os fundamentos dos conceitos embora em política, direito e filosofia intervenham no desenvolvimento. :Há valores concretos e abstratos. Os primeiros são aqueles que se vinculam a um ser vivo, grupo determinado, objeto particular examinados em sua unicidade. Certos comportamentos só são virtuosos dentro de valores concretos (fidelidade, lealdade, solidariedade, disciplina). Valores concretos tendem ao conservadorismo, enquanto valores abstratos geram a inovação. :As hierarquias são princípios de ordenação de valores e podem ser de ordem concreta, homens superiores aos animas, ou de ordem abstrata, justo superior ao útil. :Os lugares ou topoi designam as rubricas nas quais se podem classificar os argumentos. Sua principal função é fundar as hierarquias e os valores. São deles que se derivam os tópicos ou tratados consagrados ao raciocínio dialético. :Os lugares podem ser comuns ou específicos conforme sirvam indiferentemente a qualquer ciência e não dependam de nenhuma: ou, que sejam próprios seja de uma ciência, seja de um gênero de discurso em particular. :Há vários lugares como os da ordem (anterior superior ao posterior): os da essência (o essencial superior à encarnação): os da presença (o real, atual superior ao eventual). Entretanto, há dois tipos que se destacam, os da quantidade e os da qualidade. :Os lugares da quantidade afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitativas. Eles fundam valores como a democracia, o senso comum, a normalidade (donde o excepcional é visto com desconfiança até que prove seu valor). :Os lugares da qualidade trabalham de forma inversa, valorizando o diferente como precioso, único, inavaliável, já que o único não é o corriqueiro, o vulgar, o comum, mas o original, o digno de nota. :A escolha dos dados e sua adaptação à argumentação :A escolha e adaptação dos dados é essencial à argumentação, conferindo a eles um caráter de presença. Isso evidencia que toda argumentação é seletiva, logo parcial e tendenciosa. :Enquanto a demonstração exige a univocidade dos elementos, a argumentação nos obriga a levar em conta não só a seleção dos dados, mas o modo como eles são interpretados, o significado que se resolveu atribuir-lhes. :Isso posto, coloca-se o problema da interpretação. Ora, um ato pode ser considerado em si ou interpretado como símbolo. Argumentar implica jogar com inumeráveis interpretações e vivenciar a luta ora pela supressão, ora pela supremacia de determinadas interpretações. :Tal luta coloca em arena signos e indícios. Para Perelman e Olbrechts-Tyteca signo é todo fenômeno suscetível de provocar outro fenômeno dado que são usados num ato de comunicação com vistas a esta evocação. O indício permite evocar outro fenômeno de uma forma objetiva, independentemente de qualquer intencionalidade. :Todavia, a incompreensão é condição da linguagem. Para Richards, a retórica pode ser um estudo do mal-entendido e das maneiras de saná-lo. A técnica da interpretação consiste em buscar um sentido próximo daquele que o orador atribuiria a suas palavras se ele próprio pudesse observar o seu discurso. A justa interpretação seria a que o autor poderia aprovar, levando-se em conta o contexto. :Frise-se que todo autor deve poder contar com a boa vontade do outro dado que a coerência provém de critérios vindos do intérprete. Assim, o texto deve traduzir o conjunto das intenções do autor o que implica dizer que há uma argumentação implícita que constitui o seu essencial. :A argumentação não só depende da interpretação mas também da apresentação de certos aspectos (qualificações) e não de outros. Nos epítetos, por exemplo, enfatiza-se uma qualidade sombreando-se as demais. Ora, qualificar e classificar são dois aspectos da mesma atividade, a aplicação de noções. Contudo, a passagem unívoca da palavra à idéia é um mito. No mundo real há sempre margem para o indeterminado. :Isso posto, uma noção só pode ser perfeitamente dada no seio de um sistema formal. A clareza de uma noção depende do contexto porque o seu sentido depende do sistema no qual ela é utilizada. Algo é claro se não se vêem situações em que se admitiriam interpretações diferentes. Logo, uma noção pode ser obscurecida se novos dados lhes forem agregados. Portanto, se há conceitos congelados mais facilmente podemos refutá-los ou invalidá-los, uma vez que eles são ultrapassados e inadaptáveis. :Apresentação dos dados e forma do discurso :Para o conteúdo das premissas se destacar sobre o pano de fundo dos acordos disponíveis, é preciso pensar na forma da apresentação. Contudo é incoerente separar forma de fundo, ver estruturas ou figuras de estilo divorciadas da meta argumentativa. :Neste sentido, os autores focalizam os meios que possibilitam a apresentação dos dados dentro certo nível, imprimindo certa intensidade nas consciências enfatizando determinados aspectos. :Quem visa à persuasão deve organizar seu tempo em função da atenção dos ouvintes. Quando uma premissa é conhecida por todos não se deve enunciá-la, embora não seja fácil por vezes conhecê-la, mesmo porque às vezes ela não é evidente. :Oradores rápidos e concisos favorecem o raciocínio embora pouco penetrem pelas emoções. Oradores lentos favorecem a emoção, daí a ênfase na repetição, na acumulação, na insistência, na evocação de detalhes, técnicas que assinalam a presença. : Uma intenção argumentativa é normalmente notada a partir do afastamento da linguagem habitual. Nenhuma escolha é neutra embora existam as que perecem sê-la. O estilo neutro (aquele que passaria desapercebido) atesta credibilidade. O estilo afirmativo, por exemplo, cola-se à realidade enquanto o negativo liga-se à argumentação. O estilo sindético (greco-romano) se presta mais ao argumento do que o assindético (hebraico). A subordinação implicaria hierarquia de valores. :As figuras são modos de expressão que não se enquadram no comum. Para surgirem fazem-se necessários uma estrutura discernível e um emprego anormal. Só há uma figura quando se pode operar uma dissociação entre o uso normal de uma estrutura e seu uso no discurso, quando o ouvinte distingue forma de fundo. :As figuras podem ser de escolha, de presença e de comunhão. As primeiras visam a impor ou sugerir a escolha (definição, perífrase, sinédoque, metonímia, antecipação, retificação, etc.). As segundas objetivam a realçar a presença (onomatopéia, repetição, amplificação, sinonímia, etc.). As últimas almejam a comunhão (alusão, citação, apóstrofe, enálage de pessoa ou número de pessoas).
As técnicas argumentativas
Há dois grupos principais de processamento argumentativo: os de ligação que visam à aproximação de elementos distintos estabelecendo laços de solidariedade (argumentos quase-lógicos, argumentos baseados na estrutura do real, as ligações que fundamentam a estrutura do real): e, os de dissociação que visam a técnicas de ruptura onde se almeja dissociar, separar ou desunir. Vejamos cada grupo em particular.
Os argumentos quase-lógicos
Os argumentos quase-lógicos pretendem certa força de convicção por semelhança a raciocínios lógicos. Vejamos alguns casos. :Duas proposições são contraditórias num sistema formalizado quando, sendo uma a negação da outra, supõe-se que cada vez que se aplica uma a dada situação a outra o pode. Isso é possível em um mesmo objeto ou pessoa em tempos diferentes tomados como se o fossem em um mesmo tempo.
Nesse particular há o caso da autofagia segundo a qual se aplicarmos uma mesma regra se exceção, essa regra se destruiria a si mesma. Na retorção um argumento que tende a mostrar que o ato empregado para atacar uma regra é incompatível com o princípio que sustenta este ataque (interromper para proibir algo não programado sendo que a interrupção é algo não programado). Na auto-inclusão a regra se opõe a ela mesma (positivistas afirmam que toda proposição é analítica ou experimental, mas essa afirmação é analítica e experimental?).
O ridículo se instala quando uma afirmação entra em conflito com o aceito. O princípio fundamenta a ironia que visa a dar a entender o contrário do que se diz. Seu papel é análogo ao absurdo na demonstração.
Uma das técnicas essenciais é a identificação dos diversos elementos que compõem o discurso. Seu procedimento mais característico é a definição. Embora não formais as definições quase-lógicas visam a identificar definiens e definiendum. :Nem sempre a redução é total, mas parcial, o que permite a intercambialidade. A regra da justiça é uma redução parcial que permite tratar elementos intercambiáveis sob um determinado ponto de vista. Já as de reciprocidade visam a dar o mesmo tratamento a duas situações correspondentes.
A regra de transitividade é a propriedade formal de certas relações que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos “A e B”, “B e C” e “A e C”. Trata-se do silogismo retórico.
Nas relações de inclusão distinguem a inclusão de partes no todo e os que demonstram a divisão do todo em suas partes e as relações das partes daí resultantes.
Os argumentos de divisão ou de participação partem da concepção do todo como soma de suas partes.
Os argumentos de comparação cotejam objetos para avaliá-los uns em relação aos outros visando a oposição (leve e pesado), o ordenamento (mais leve que) e a quantificação (o quanto mais leve).
Os argumentos de sacrifício ressaltam o que se está disposto a se sujeitar para obter certo resultado.
Por fim, há os argumentos de probabilidade que pressupõem que seres e objetos são semelhantes de certa forma e diferentes sob outros aspectos.
Argumentos baseados na estrutura do real
Os argumentos baseados na estrutura do real valem-se da realidade para estabelecer solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura promover.
As ligações de sucessão pressupõem um vínculo casual quer pela relação de dois acontecimentos sucessivos por meio de certo vínculo: pela descoberta de uma causa: ou, pela evidência de um efeito.
Um argumento pragmático permite apreciar se um todo acontece consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis. Inclusive, a interpretação ou valorização será diferente conforme a idéia que se forma do caráter deliberativo ou involuntário das conseqüências.
Na prática, há uma interação entre objetivos perseguidos e os meios empregados para realizá-los. Há casos em que o meio pode ser um fim em si mesmo. Transformar um fim em meio é útil para desvalorizá-lo. Sabemos que os fins valorizam os meios mas nem sempre os justificam. Daí ser interessante substituir fins para valorizar os meios.
Há também o argumento do desperdício segundo o qual faz-se certa coisa ou função de seu aproveitamento (voto útil, terminar o que se começa).
No argumento de direção se a passagem de “A” a “C” é conturbada, o orador passa para “B” donde a perspectiva de “C” é mais favorável. Esse tipo de argumentação pode as formas da propagação (multiplicação e contágio), da vulgarização (senso comum), da consolidação (inverso da vulgarização) e o da mudança de natureza. Observe-se que cada concessão acarreta outra e que um fenômeno inserido em dada dinâmica é diferente de um fenômeno isolado.
Por fim, há o argumento da superação que visa a antever um ponto mais ao longe sem que se veja um limite. Neste sentido trabalham a hipérbole, cuja expressão exagerada visa à amplificação e à atenuação e a litotes, que é uma forma de expressão enfraquecedora.
As ligações de coexistência
As ligações de coexistência unem duas realidades de nível desigual sendo que uma é mais fundamental e explicativa do que a outra. A ligação fundamental é a da essência (integrante) com a suas manifestações (transitório). Veja-se a distinção entre o ato (norma, regra) e a pessoa (mérito, culpabilidade) em direito e moral.
A pessoa em argumentação é considerada suporte de qualidades, autora de atos e juízos, objeto de interpretações, um ser duradouro em cuja volta há uma série de fenômenos aos quais ela dá coesão e significado. Atos são emanações da pessoa, sejam ações, modos de expressão, reações emotivas, cacoetes involuntários ou juízos.
Os atos servem de premissas das pessoas desde que sejam característicos (independentemente de serem raros ou habituais). Eles formam um ativo (boa reputação). Por vezes o que sabemos das pessoas julga os seus atos.
A intenção é presumida naquilo que sabemos ser duradouro nas pessoas. A idéia depende do que conhecemos dos agentes. Como se prova a intenção? Correspondendo vários atos de uma mesma pessoa a uma mesma intenção.
Neste sentido chegamos a questão do argumento de autoridade. A palavra de honra depende da opinião que temos sobre a honra do agente. Quanto mais importante a autoridade, mais sério o testemunho. No auge da importância encontramos a divindade. É por isso que ao haver conflito de autoridade há conflitos de fundamentos.
Quando há incompatibilidade entre pessoa e ato fazemos uso de técnicas de ruptura e de refreamento. Par impedir que o ato reaja sobre o agente consideramos o agente como um ser perfeito, deus ou demônio. No caso inverso, consideramos o ato como verdadeiro ou factual. São as técnicas de ruptura.
Para refrear podemos julgar o ato em função do agente mantendo a coerência por meio do preconceito ou da prevenção. Ou ainda, usar de técnicas que visem a diminuir a solidariedade de ato e pessoa, como a noção de exceção, do acaso, ou do uso de recursos de impessoalidade.
Para muitos, o discurso é a manifestação do orador, da excelência da pessoa. Isso posto, as mesma palavras possuem efeitos diferentes conforme quem as pronuncia. A vida do orador é o preâmbulo de seu discurso. Fazer-se elogios é deplorável.
A noção de grupo é mais complexa visto que grupos são mais indeterminados e mesmas pessoas podem pertencer a diferentes grupos. Logo, a interação indivíduo e grupo serve para valorizar ou desvalorizar, seja um seja outro. A academia dá lustre a seus membros e vice-versa. Nesse contexto, as regras de ruptura ocorrem quando se exclui o membro e regras de refreamento agem quando há preconceito, exceção, solidariedade do indivíduo com outro grupo.
As mesmas interações entre ato e pessoa são encontradas quando acontecimentos, objetos, seres, instituições são agrupados de uma forma abrangente e considerados característicos de uma época, estilo, regime ou estrutura. Cada evento passa a ser acontecimento de uma determinada essência. O uso normal confirma a essência, o abuso é deformação, a falta designa o quanto deve ser feito e a qualificação da essência, determina o quanto o relato se afasta dela (alusão, ironia, personificação). :No que se refere à ligação simbólica, há uma transferência entre símbolo e simbolizado. O que se diz do símbolo, diz do simbolizado. O símbolo é diferente do signo porque não é puramente convencional, já que ele se integra com o simbolizado, há uma realidade mítica e especulativa. As técnicas aqui são as da metonímia e da sinédoque.
Ligações que fundamentam a estrutura do real
Esses tipos de argumentos se fundamentam pelo caso particular e os raciocínios de analogia. Entre os primeiros, destacam-se o exemplo, a ilustração e o modelo/antimodelo.
O exemplo é um caso particular, ou seqüência de casos, que aparece sob certa lógica. A tendência é concluirmos outro caso particular. Se um caso é invalidante de uma regra é o único meio de explicitar uma regra ainda implícita. :A ilustração é o uso de um exemplo para fundamentar uma regra como elemento de uma indução. Sua função é reforçar a regra conhecida e aceita fornecendo casos particulares esclarecedores.
O modelo/antimodelo é usado dada nossa tendência à imitação e a processos de identificação. O modelo indica ou cauciona uma conduta. O antimodelo funciona às avessas. Contudo, há o inconveniente se nosso modelo possui pontos críticos ou se nosso antimodelo apresenta virtudes. A saída é a criação de arquétipos ou mitos, postulando-se seres perfeitos.
A analogia implica uma semelhança de estruturas, onde “A” está para “B” assim como “C” está para “D” tal que se “A” e “B” são o tema “C” e “D” são o foro. Em vez de ser uma relação de semelhança é uma semelhança de relação. Uma analogia possui quatro termos complexos, mas pode haver três, “B” está para “A” assim como “C” está para “B” ou “A” para “B” como está para “C”. O estatuto da analogia é instável dado que ela pode sofrer duas espécies de objeção. Para adversários pode não existir: para partidários pode ser maior do que se afirma.
Toda metáfora implica uma mudança bem sucedida de significação e trabalha num processo de analogia condensada: “A” ? “B” :: “C” ? “D” tal que a expressão “C” de “D” é usada para designar “A”. Quando adormece o elo de ligação significante/significado, expressão/sentido, há um desgaste da metáfora. Ela só despertará se fizermos uma nova analogia.
A dissociação das noções
O processo de dissociação visa a recusar a existência de uma ligação dada a sua incompatibilidade. O par prototípico é a distinção aparência e realidade, mas há inúmeros pares filosóficos dissociados: meio/fim: conseqüência/fato/princípio: ato/pessoa: acidente/essência: ocasião/causa: relativo/absoluto: subjetivo/objetivo: multiplicidade/unidade: normal/norma: individual/universal: particular/geral: teoria/prática: linguagem/pensamento: etc.. O emprego argumentativo dos pares filosóficos visa a tirar partido das dissociações, introduzir dissociações ad hoc, apresentar dissociações de outros auditórios e lembrar uma dissociação presumivelmente esquecida. Há várias técnicas para ressaltá-los. Vejamos algumas delas. A técnica da inversão “a/b”? “b/a”: “comer para viver e não viver para comer”. A técnica de valorizar o meio para transformá-lo em fim e de desvalorizar o fim para transformá-lo em meio. Uso de enunciados que incentivam a dissociação tal como a tautologia, paradoxos, metáteses, antimetáboles. Há ainda definições dissociadas que inserem nova noção de noções primitivas. “Esta é, não lei escrita, mas lei natural”. Cumpre-se destacar a questão da qualificação dos argumentos como retóricos. Fazer isso é desqualificá-los como artificiais, formais e verbais, opostos a naturais, de fundo e reais. Um discurso refletido percebido como expediente é preterido por um discurso expontâneo mas cheio de erros. Como se prevenir de se ver o discurso como expediente? Adequar o estilo ao objeto do discurso implica verdade, daí: elogiar as qualidades oratórias do adversário e minimizar as próprias: jamais lhe refutar os argumentos: evitar tudo o que denuncia talento: usar elementos de espontaneidade: mostrar indícios de inabilidade, de sinceridade e de paixão: argumentar contra a própria tese como expressão de sinceridade: e, conjecturar verossimilhança.
A interação dos argumentos
Para analisar argumentos devemos respeitar seu caráter esquemático e arbitrário. O estudo pode ser feito por uma análise mais profunda dos enunciados, por uma análise mais acurada, ou pela consideração do número crescente de argumentos espontâneos tendo o discurso como objeto. Embora imprecisas, as interações são determinadas pela escolha dos argumentos, pela amplitude e pela ordem da argumentação.
Todo orador usa uma noção confusa de força dos argumentos para guiar o empenho argumentativo. Essa força é função da adesão do ouvinte e depende das reações e das objeções, ou melhor, dos auditórios e do objetivo da argumentação. :Argumentos fortes são os eficazes ou os válidos. Os autores afirmam que isto depende de uma certa regra de justiça dado um contexto tradicional sempre presente. Superestimá-los implica aumentar a sua força, atenuá-los implica ponderação e sinceridade. Se vários argumentos convergem à mesma conclusão se fortalecem, mas se isso é demasiado gera-se desconfiança.
A amplitude da argumentação é capital porque quanto mais ampla maior a chance de erros. Os paliativos para este perigo são: renuncia ao argumento fraco, uso de reticências, o anúncio inconclusivo do argumento, declaração de solidariedade, uso de concessões ao adversário e negação.
No que se refere à ordem da argumentação vemos que depende da situação argumentativa, do condicionamento e reações do auditório. Há três formas básicas de ordenação: em ordem crescente, que pode indispor a audiência: em ordem decrescente, cuja última impressão pode ser desfavorável: e, em ordem nestoriana (homérica) argumentos fortes, fracos e fortes, considerada a mais adequada.
Considerações Finais
Nas 650 páginas de “Tratado da argumentação: a nova retórica”, Perelman e Olbrechts-Tyteca enfatizam que somente a existência de uma argumentação não coerciva e não arbitrária confere um sentido à liberdade humana, condição de exercício de uma escolha racional. Se liberdade é aderir a uma ordem dada a priori não haveria escolha. Se não fosse fundamentada em razões, seria irracional e arbitrária. :Tal paradoxo não foi resolvido com uma lógica de juízos de valor. Para os autores, erigir uma teoria da argumentação deve ser a alternativa mais adequada para resolver esta lacuna que, embora fundamental, foi menosprezada pelos lógicos e teóricos pós-cartesianos.
Referência Bibliográfica :Perelman, Chaïm &: Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. [prefácio Fábio Ulhôa Coelho: tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira]. São Paulo : Martins Fontes, 1996.
RAUEN, Fábio José Rauen. Tratado da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca: Resenha. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 8, nº 752, 14 de Abril de 2008. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/tratado-da-argumentacao-de-perelman-e-olbrechts-tyteca-resenha.html

