A constitucionalidade da preferência dos honorários advocatícios em face de créditos tributários
É cediço que ao legislador incumbe editar normas que regerão as relações dos indivíduos entre si, bem como com o Estado. Para tanto, o legislador determina, segundo a sua percepção dos valores constitucionais, de que modo serão solucionados os conflitos de interesse, o que faz por meio de disposições abstratas consubstanciadas em normas gerais e prévias. O exercício desse poder implica escolhas, as quais, pela sua própria natureza, representam necessariamente benefícios a determinados bens e indivíduos em detrimento de outros, o que, se dentro do esquadro constitucional, de forma alguma implica privilégio indevido ou 'injusto', mas tão somente decisões próprias do desempenho da representação democrática exercida pelo legislador. Eis a sociedade definindo como se darão as relações entre os seus partícipes.
Isso posto, por meio da edição do Código de Processo Civil de 2015, o legislador, no exercício da sua competência constitucional, entendeu por bem atribuir aos honorários advocatícios preferência em relação aos créditos tributários, equiparando-os aos créditos trabalhistas e decorrentes de acidente do trabalho (art. 85, § 14). Trata-se de disposição consoante com a Súmula Vinculante nº 47, a qual declarou a natureza alimentar dos honorários advocatícios. Essa previsão, contudo, tem sido controvertida pela Fazenda Pública, a qual, em síntese, a considera inconstitucional por violação à reserva de lei complementar prevista no art. 146, III, 'b', da CF/88, de modo que a preferência do crédito tributário prevista no art. 186 do CTN não poderia ser afastada por meio de lei ordinária. Tal compreensão tem encontrado acolhida em parte dos tribunais,[1] razão pela qual o presente artigo se propõe a trazer alguns pontos de reflexão.
Em primeiro lugar, antes de adentrar na extensão dos efeitos da natureza alimentar dos honorários de advogado, cumpre dar um passo atrás e analisar as premissas da controvérsia: não se pode aceitar irrefletidamente a pressuposição de que há reserva de lei complementar acerca da preferência do crédito tributário. O art. 146, III, 'b', da Constituição dispõe que 'cabe à lei complementar [...] estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre [...] obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários'. O enunciado normativo em apreço estabelece a regra de que o 'crédito tributário' será objeto de regulação exclusivamente por meio de lei complementar, ou seja, cria reserva de lei complementar quanto a aspectos intrínsecos ao crédito tributário. Em sendo assim, as normas previstas no CTN sobre natureza (arts. 139 a 141), suspensão (arts. 151 a 155), extinção (arts. 156 a 174) e exclusão (arts. 175 a 182) do crédito tributário foram recepcionadas como lei complementar em função da reserva prevista no art. 146, III, 'b', da CF/88.
Uma vez que as características essenciais do crédito tributário, que o estruturam internamente, submetem-se exclusivamente às disposições de lei complementar, infere-se a contrario[2] que as matérias que, embora sejam relacionadas ao crédito tributário, não o definem, devam ser reguladas por meio de lei ordinária. Isso porque a reserva de lei complementar deve ser expressa, alcançando tão somente as hipóteses em que a Constituição assim especificamente determina.[3] Com efeito, os aspectos extrínsecos ao crédito tributário não estão submetidos à reserva de lei complementar, de modo que, por exemplo, a ordem de preferência dos créditos tributários pode ser estabelecida mediante lei ordinária. A relação de preferência entre créditos de diferentes naturezas não é algo que diz respeito apenas a uma das espécies, mas é externo a elas. Não é a ordem de preferência do crédito trabalhista ou do tributário que os definem, tratando-se de aspecto não essencial e, no caso do tributário, não sujeito à reserva de lei complementar.
Em sendo assim, é possível afirmar que regra reconstruída a partir do disposto na Constituição Federal atribui à lei complementar a regulação do crédito tributário, não dos trabalhistas, cíveis, criminais, advocatícios etc, tampouco a relação entre eles. De qualquer sorte, para fins argumentativos, cabe averiguar as consequências lógicas decorrentes da adoção da hipótese fazendária. Por um lado, todas as demais espécies de créditos estariam sujeitas à reserva de lei complementar caso concorressem com o crédito tributário, pois somente mediante lei complementar seria possível a sua regulação, pois a sua própria preferência teria que ser estabelecida mediante lei complementar. Assim, ter-se-ia inversamente uma expansão indevida do âmbito de aplicação da reserva de lei complementar, o que não se coaduna com a Constituição, como já referido. Por outro lado, acolhida a premissa fazendária, então a Constituição preveria simultaneamente que à lei ordinária e à lei complementar incumbe dispor sobre ordem de preferência de créditos. Isso porque se a interação de determinada espécie de crédito com as demais constitui aspecto intrínseco seu, idêntica concepção deve ser aplicada aos demais, e reciprocamente. Em outras palavras, se 'crédito tributário' pressupõe, por exemplo, 'relação de crédito tributário com crédito trabalhista', então 'crédito trabalhista' também implica necessariamente 'relação de crédito trabalhista com crédito tributário'. Nesse caso, ao mesmo tempo haveria e não haveria reserva de lei complementar, pois, se à lei complementar compete dispor sobre 'crédito tributário', à lei ordinária cabe tratar das demais espécies, constituindo assim contradição incompatível com o sistema constitucional tributário. Por conseguinte, revela-se falsa a premissa de que a ordem de preferência integra o âmbito do crédito tributário (e se submete assim à reserva de lei complementar) e não dos demais créditos, inclusive dos honorários de advogado, regidos por lei ordinária.
Em segundo lugar, o argumento fazendário pressupõe hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. Isso porque, se à lei ordinária compete dispor sobre créditos de honorários advocatícios e à lei complementar sobre o crédito tributário, então por que as disposições da segunda prefeririam à primeira? Pressupõe-se uma hierarquia entre lei complementar e ordinária, a qual há muito foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal.[4] Insista-se que a Constituição não previu reserva de lei complementar quanto à relação entre créditos de diferentes origens, ou seja, não há regra constitucional que demande lei complementar para dispor sobre a relação do crédito tributário com as outras espécies de créditos. Em sendo assim, se a matéria em questão (preferência de créditos) foi regulada por diplomas legislativos distintos e se a Constituição não exige expressamente a reserva de lei complementar, logo a mais recente (art. 85, § 14, do CPC/15) revoga a anterior ou, no caso dos autos, amplia o escopo da exceção prevista no art. 186 do CTN.
Em terceiro lugar, cabe suscitar a possibilidade de superação da regra de preferência do crédito tributário diante de verbas de caráter alimentar. Ainda que careça de expresso supedâneo legal, a jurisprudência tem ampliado o alcance da exceção prevista no art. 186 do CTN, segundo a qual apenas os créditos trabalhistas e originados de acidente do trabalho poderiam preferir aos tributários, flexibilizando assim tal taxatividade.[5] Isso ocorre porque as verbas alimentares, sejam elas oriundas de pensão, do trabalho ou de honorários advocatícios, estão vinculadas à subsistência do indivíduo, sendo percebidas como garantidoras do mínimo existencial. Nesse compasso, é possível fundamentar tal abertura interpretativa do art. 186 do CTN, verificada tanto no âmbito dos tribunais superiores quanto em tribunais de segunda instância, na previsão dos arts. 1º, III, 5º, caput, 6º e 133 da Constituição Federal. Consequentemente, por destinarem-se à subsistência do indivíduo, as verbas alimentares preferem ao crédito tributário, sob pena de se colocar o Estado antes da vida do particular, ou seja, a arrecadação antes da sobrevivência. Desse modo, por força da sua natureza, os créditos alimentares gozam de condição constitucionalmente privilegiada em relação aos demais créditos, inclusive sobre os tributários, sendo prescindível previsão legal nesse sentido. Considerando que a expansão interpretativa do alcance da exceção do art. 186 do CTN promovida jurisprudencialmente decorre da destinação da verba à sobrevivência do indivíduo, então deve-se estendê-la aos honorários de advogado, os quais decorrem do labor do profissional liberal e garantem a manutenção da sua subsistência e continuidade da sua fonte de renda profissional, seu escritório.
Em quarto lugar, cabe refletir sobre a plena vinculatividade decorrente do precedente consubstanciado na Súmula Vinculante nº 47 do STF e dos conceitos jurídicos consolidados. Tal discussão mostra-se oportuna em razão da tentativa de restrição dos efeitos do reconhecimento do caráter alimentar dos honorários advocatícios, já demonstrado acima. Conforme se depreende de julgamentos favoráveis à Fazenda Pública,[6] em função do conteúdo do art. 85, § 14, do CPC/15 e da Súmula Vinculante nº 47 reconhece-se o caráter alimentar dos honorários advocatícios, porém não lhes são conferidos os efeitos característicos, isto é, é declarado que se está diante de verba alimentar, porém as respectivas consequências jurídicas não são reconhecidas. Ao assim proceder, amputa-se o conceito de 'verba alimentar', tornando-o vazio na prática. Ilustrativamente, está-se diante de hipótese como simplesmente reconhecer a imunidade do livro, mas exigir ICMS do comerciante pela sua venda. Ou reconhecer a inconstitucionalidade de determinado exação, porém permitir que o Fisco continue a exigi-la. Não basta declarar que o crédito ostenta natureza alimentar, é preciso que lhes sejam atribuídas as respectivas consequências jurídicas.[7] Conforme demonstrado, parcelas com caráter alimentar escapam à preferência do crédito tributário, uma vez que necessários à subsistência do indivíduo. Sendo alimentar, não se pode ignorar a sua intrínseca primazia e urgência. Nesses termos, é incabível a restrição do âmbito de proteção inerente à natureza alimentar dos honorários de advogado, sob pena de descaracterizá-la como tal ou ainda dar-lhe contornos de verba alimentar 'de segunda classe' ou 'imperfeita' ou 'não plena'. Em síntese, ou é verba alimentar e, por conseguinte, tem preferência em face inclusive dos créditos tributários, ou não é e não prefere.
Os pontos elencados no presente artigo convergem no sentido da preferência lógica e normativa dos honorários de advogado em face dos créditos tributários. Nesse sentido, insista-se que, para além da inexistência de reserva de lei complementar sobre a ordem de preferência de créditos, o caráter alimentar dos honorários advocatícios é inerente à sua natureza e não pode ser reconhecido apenas parcialmente. Ademais, a própria lei atribuiu expressamente aos honorários advocatícios tal natureza, a teor do disposto no art. 85, § 14, do CPC/15. Com efeito, a sua preferência é impositiva, equiparando-se em qualquer aspecto aos créditos trabalhistas, contemplados no art. 186 do CTN como preferenciais aos tributários. É incabível, portanto, reconhecer apenas para outros fins a natureza alimentar dos honorários de advogado.
Rafael de Souza Medeiros
Doutorando em Direito Tributário (Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha). Mestre em Direito Tributário e Teoria do Direito (UFRGS). Especialista em Direito Tributário Empresarial (FGV). Graduado, com láurea acadêmica, em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS). Professor-convidado (Dozent) na graduação da Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg. Associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Steuerrechtswissenschaftliche Vereinigung Heidelberg e.V. (StRWV). Autor do livro 'Responsabilidade Tributária de Grupo Econômico' e de artigos em periódicos de circulação nacional. Advogado em Porto Alegre-RS.
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[1] Pela relevância, cita-se exemplificativamente arguição de inconstitucionalidade do TRF da 4ª Região: TRF4 5068153-55.2017.4.04.0000, CORTE ESPECIAL, Relatora LUCIANE AMARAL CORRÊA MÜNCH, juntado aos autos em 20/03/2020.
[2] MEDEIROS, Rafael de Souza. Responsabilidade tributária de grupo econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 74 ss.
[3] ADI 2010 MC, Relator Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 30/09/1999, DJ 12-04-2002.
[4] ADI 2110 MC, Relator Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 16/03/2000, DJ 05-12-2003.
[5] A título de exemplo, cite-se as seguintes decisões: REsp 1128792/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/11/2009, DJe 02/12/2009: AgRg no REsp 1208803/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/05/2011, DJe 20/05/2011: TRF4, AG 5038477-57.2020.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relator GIOVANI BIGOLIN, juntado aos autos em 28/01/2021.
[6] A título de exemplo, TRF4, AG 5046327-65.2020.4.04.0000, PRIMEIRA TURMA, Relator ALEXANDRE GONÇALVES LIPPEL, juntado aos autos em 15/04/2021: TRF4, AG 5002560-40.2021.4.04.0000, SEGUNDA TURMA, Relatora MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, juntado aos autos em 09/03/2021.
[7] Nesse sentido, cite-se as seguintes decisões: TRF4, AG 5020270-10.2020.4.04.0000, SEGUNDA TURMA, Relator ALEXANDRE ROSSATO DA SILVA ÁVILA, juntado aos autos em 01/03/2021: TRF4, AG 5034896-68.2019.4.04.0000, TERCEIRA TURMA, Relator ROGERIO FAVRETO, juntado aos autos em 08/07/2020.
MEDEIROS, Rafael de Souza Medeiros. A constitucionalidade da preferência dos honorários advocatícios em face de créditos tributários. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1516, 19 de Mai de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/a-constitucionalidade-da-preferencia-dos-honorarios-advocaticios-em-face-de-creditos-tributarios.html