Decisões judiciais paradigmáticas e a sua vinculatividade na esfera administrativa fiscal

Embora tenha surgido na primeira década do século corrente e tenha se intensificado na segunda, especialmente a partir da promulgação do CPC/15, continua intensa no âmbito do processo civil brasileiro a discussão acerca da eficácia das decisões judiciais paradigmáticas e da técnica de julgamento dos precedentes vinculantes. Isso se deve em grande medida ao avanço na doutrina nacional de concepções sobre as teorias do Direito e das normas que abandonam o paradigma da univocidade dos textos legais, isto é, de que a atividade interpretativa se resume ao emprego de um silogismo lógico-formal[1] calcado na tipicidade cerrada e no refinamento linguístico como elementos capazes de 'extrair' a norma da legislação. Partindo de uma concepção argumentativa da interpretação, que não nega a intrínseca indeterminação da linguagem,[2] o Código de Processo Civil de 2015 consolidou e ampliou a tendência já presente no ordenamento brasileiro do emprego de teses jurídicas paradigmáticas, estruturando a sistemática dos precedentes, técnica de julgamento que fixa o papel vinculante de decisões especialmente dos tribunais superiores. Isso posto, faz-se necessário questionar se esses novos paradigmas alcançam – e se devem alcançar – a esfera administrativa fiscal, pautada tradicionalmente na legalidade estrita e na aversão ao emprego de entendimentos judiciais como critério de decisão.

Em primeiro lugar, é oportuno destacar a importância do processo administrativo fiscal no contexto jurídico brasileiro. Trata-se de meio voltado à averiguação pela própria Administração, com auxílio do contribuinte, da higidez do poder de tributar exercido, no que se compreende como um controle prévio de legalidade dos seus próprios atos. Ademais, pela composição dos seus órgãos julgadores, o processo administrativo fiscal permite que questões técnicas sejam discutidas de forma mais rigorosa. Além de reforçar a correção do ato administrativo e a sua legitimidade, o processo administrativo fiscal contribui para reduzir os litígios submetidos à apreciação do Poder Judiciário. Todavia, o âmbito de análise administrativo não se equipara ao judicial, estando vinculado de forma estrita à legislação tributária, condição que colabora para uma postura defensiva quando se discute temas que envolvem a sua superação, ainda que parcial, não obstante eventual consolidação do entendimento judicial em determinado sentido. Nesse contexto é que se deve averiguar a pertinência do debate sobre os precedentes no processo administrativo fiscal.

Em síntese, a questão pode ser analisada por duas perspectivas: a formal e a material. Como provimentos judiciais formalmente vinculantes compreende-se aqueles listados na legislação (especialmente no art. 927 do CPC/15) e denominados 'precedentes'. Com efeito, a sua vinculatividade (horizontal e vertical) decorre de previsão normativa nesse sentido, de modo a conferir hierarquia e coerência ao sistema jurídico. A eficácia de parte desses precedentes tem fundamento constitucional e expressamente obriga a Administração (Súmulas Vinculantes e decisões do STF proferidas no exercício do controle concentrado de constitucionalidade), não remanescendo discussão quanto à submissão dos órgãos julgadores administrativos. Quanto aos demais precedentes, a sua vinculatividade na seara administrativa fiscal tem fundamento legal. Nesse sentido, as decisões exaradas em sede de recursos repetitivos foram incluídas na legislação que disciplina o processo administrativo fiscal como vinculantes (art. 26-A do Decreto nº 70.235/72), enquanto as demais espécies têm a sua observância baseada na aplicação supletiva e subsidiária do Código de Processo Civil no processo administrativo fiscal (art. 15 do CPC/15), inexistindo incompatibilidade normativa para o seu emprego nessa esfera. Cabe salientar, ademais, que se os julgadores do Poder Judiciário estão formalmente submetidos aos precedentes, não faz sentido – jurídico ou econômico – excluir do seu escopo os julgadores administrativos.

Sob uma perspectiva material, pode-se igualmente sustentar a vinculatividade de provimentos judiciais paradigmáticos na esfera administrativa. Isso porque a atividade interpretativa desempenhada no processo administrativo fiscal é delimitada por conceitos fixados por meio de decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Através delas consolidam-se determinados conceitos mínimos e, por conseguinte, fixa-se o conteúdo dos enunciados normativos, o que necessariamente conduz à redução da liberdade de conformação da Administração.[3] Restringe-se assim âmbito de incerteza quanto ao conteúdo do texto da legislação tributária, de tal sorte que se torna incabível ao julgador administrativo – ou a qualquer outro indivíduo – interpretar de forma distinta. Em sendo assim, a vinculatividade não depende de determinação positiva, mas é inerente à própria normatividade, de modo que os precedentes judiciais exigem respeito também no âmbito administrativo pela sua natureza.

O efeito vinculante de decisões judiciais na esfera administrativa depende, contudo, do grau de observância e definitividade que lhe é outorgado pelo próprio Judiciário. Nesse ponto, cabe questionar a oportunidade de uma ampla e automática submissão dos órgãos de julgamento administrativo aos precedentes. Isso porque não é desprovido de razão o argumento de que, se os julgadores do próprio Poder Judiciário não observam os precedentes, por que haveriam os julgadores administrativos de ter tal apego? A legitimidade dessa exigência depende essencialmente da estabilidade dos entendimentos jurisprudenciais, que tornaria improfícua eventual divergência na seara administrativa e dispensaria a ela apenas a análise de questões mais consentâneas com o seu caráter técnico. Com efeito, contribuiria sobremaneira para a natural assimilação pelas instâncias administrativas das decisões paradigmáticas exaradas pelo Judiciário a estabilidade dos entendimentos jurisprudenciais ou, de forma mais clara, o respeito dos tribunais aos próprios precedentes e à hierarquia inerente ao sistema jurídico.

Rafael de Souza Medeiros - :Doutorando em Direito Tributário (Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha). Mestre em Direito Tributário e Teoria do Direito (UFRGS). Especialista em Direito Tributário Empresarial (FGV). Graduado, com láurea acadêmica, em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS). Professor-convidado (Dozent) na graduação da Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg. Associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Steuerrechtswissenschaftliche Vereinigung Heidelberg e.V. (StRWV). Autor do livro 'Responsabilidade Tributária de Grupo Econômico' e de artigos em periódicos de circulação nacional. Advogado em Porto Alegre-RS. :rafael@welschmedeiros.com.br :www.welschmedeiros.com.br :@welschmedeiros

[1] ÁVILA, Humberto. Subsunção e Concreção na Aplicação do Direito. In: Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros (Org.). Faculdade de Direito: o ensino jurídico no limiar do novo século. 1ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, v. 1, p. 438.

[2] HEY, Johanna. Steuerplannungssicherheit als Rechtsproblem. Köln: O. Schimidt, 2002, p. 588: GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffrè, 2011, p. 39.

[3] GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffrè, 2011, p. 61: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 53.


MEDEIROS, Rafael de Souza Medeiros. Decisões judiciais paradigmáticas e a sua vinculatividade na esfera administrativa fiscal. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1499, 19 de Abril de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/decisoes-judiciais-paradigmaticas-e-a-sua-vinculatividade-na-esfera-administrativa-fiscal.html
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Editores: 
José Maria Tesheiner
(Prof. Dir. Proc. Civil PUC-RS Aposentado)

Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha

Advogada e Professora Universitária

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