Sobre a necessária distinção entre responsabilidade tributária e desconsideração da personalidade jurídica

Em que pese a sua importância e a gravidade das consequências que implica, a responsabilidade tributária continua a ser objeto de pouca atenção doutrinária e, por conseguinte, de tratamento confuso na jurisprudência. Infelizmente encontram-se consolidadas em ambas as searas concepções equivocadas, como a denominada responsabilidade do 'sócio-administrador', assim como a falsa ideia de que a prática conjunta de fato gerador enseja a responsabilidade tributária do grupo econômico ou quanto à possibilidade de a confusão patrimonial acarretar a responsabilidade tributária. Tais imprecisões têm como origem fundamental a ausência da necessária dissociação dos conceitos jurídicos da responsabilidade tributária e da desconsideração da personalidade jurídica, emaranhando seus pressupostos e atribuindo-lhes consequências indevidas. Longe de analisar pormenorizadamente a matéria,[1] este artigo propõe-se a apontar alguns argumentos básicos para demonstrar a importância do seu correto tratamento, evidenciando ilustrativamente o descabimento daquelas concepções acima referidas.

É sabido que a responsabilidade tributária e a desconsideração da personalidade jurídica servem à pretensão de redirecionar a obrigação tributária para indivíduo que inicialmente não figura no seu polo passivo, porém deve ser chamado a assumir o ônus tributário em razão de determinadas circunstâncias. Tal atribuição a terceiro do dever de pagar tributo constitui medida grave, que implica alcançar o patrimônio de indivíduo que até então não participava da relação, isto é, que não assumia a posição daquele que efetivamente praticou o fato gerador. Dito isso, é evidente a necessidade de lei que expressamente preveja tais hipóteses, a qual, no caso da responsabilidade tributária, deve ter hierarquia de norma nacional, a fim de garantir a uniformidade dos conceitos fundamentais de contribuinte e responsável a ser empregado em todas as esferas da federação pelas disposições normativas que versem sobre tributos. Tal reserva de lei complementar está prevista no art. 146, III, 'a' da CF/88, e é desempenhada pelo Código Tributário Nacional nos seus arts. 121 a 138.

Já no que diz respeito à ficção da personalidade jurídica, deve-se ter em conta que é o Código Civil que estabelece os seus contornos essenciais, inclusive no que diz respeito aos limites que a sua proteção outorga aos sócios, o que, por evidente, não inclui o seu emprego abusivo. Com efeito, o art. 50 do CC/02 fixa as hipóteses em que a personalidade jurídica é suspensa, ocasionando a possibilidade da obrigação alcançar os indivíduos que compõem o quadro societário.

Tais lições sumárias já são capazes de demonstrar o equívoco do recorrente emprego da expressão 'sócio-administrador' na atribuição de responsabilidade tributária. Isso porque ela simplesmente inexiste no CTN, tanto literalmente quanto conceitualmente. Na realidade, o que prevê o código é a responsabilidade do administrador (diretor, gerente, representante, etc), sendo absolutamente irrelevante a sua eventual condição de sócio, ou seja, o art. 135 do CTN prevê a responsabilidade tributária do administrador, seja ele sócio ou não. De fato, salvo as hipóteses de responsabilidade dos sucessores, sequer há no CTN a possibilidade de responsabilização de terceiro em função da sua condição de sócio de pessoa jurídica de responsabilidade limitada.[2] Basta analisar para isso as hipóteses dos arts. 134 e 135 do CTN, os quais compõem a seção do código sobre a responsabilidade de terceiro. Em sendo assim, além de carente de fundamento normativo, o emprego do termo 'sócio-administrador – ou equivalentes – faz supor a existência de hipótese de responsabilidade tributária incompatível com a legislação tributária, de modo que, além de não contribuir para a precisão dos conceitos jurídicos, ainda prejudica a adequada apreensão das hipóteses de responsabilidade tributária de terceiros, aproximando-a indevidamente da desconsideração da personalidade jurídica.

Fenômeno semelhante ocorre quando se busca encontrar fundamentos para a responsabilidade tributária do grupo econômico lançando-se mão do argumento de que os indivíduos que o compõem têm interesses imbricados e praticaram de forma conjunta determinado fato gerador. Para garantir algum fundamento legal a essa hipótese, em geral é referido o art. 124, I ou, eventualmente, II, do CTN, agregando-se ainda a solidariedade tributária à miscelânea de institutos jurídicos. Uma análise precisa dos elementos envolvidos, contudo, é suficiente para ver através da turbidez: se dois ou mais indivíduos praticaram em conjunto ato que caracteriza fato gerador de tributo, não há que se falar em responsabilidade tributária, em grupo econômico ou solidariedade, pois aqueles que o praticaram são tão somente contribuintes. Nesse caso, o indivíduo deve arcar com a obrigação tributária pela sua relação pessoal e direta com o fato gerador (art. 121, I, do CTN), independentemente de integrar grupo econômico. Tampouco é necessário recorrer à solidariedade tributária – que, diga-se, destina-se à regulação da distribuição do ônus tributário, não da sua imputação – para demandar o recolhimento do tributo daquele que pratica o fato gerador. Nesse caso, sequer há ato ilícito para que se suscite alguma das hipóteses de responsabilidade de terceiro previstas pelo CTN. Por outro lado, se uma sociedade é chamada a arcar com o tributo devido por outra apenas em função de ambas integrarem grupo econômico, isto é, sem que se constate o efetivo exercício conjunto de fato gerador, então tem-se a violação da autonomia patrimonial dessas entidades ou, na realidade, uma intolerável espécie de confusão patrimonial 'por imposição fiscal' ensejadora da desconsideração indevida da personalidade jurídica dessas sociedades. Eis o prejuízo à compreensão da matéria ocasionado pelo emprego indistinto dos conceitos em apreço, o qual, por sua vez, gera danos aos direitos fundamentais dos particulares quando a caracterização do grupo econômico retira na prática o ônus do Fisco de comprovar o exercício comum de fato gerador.

A singela distinção apresentada acima entre desconsideração da personalidade jurídica e responsabilidade tributária torna evidente, por fim, a incompatibilidade dessa última com a condição da confusão patrimonial, seja no plano lógico, seja no dogmático. Além da legislação civil prevê-la como requisito da desconsideração e da legislação tributária dela não se ocupar, não se pode perder de vista que a confusão patrimonial, como já referido, acarreta a suspensão da personalidade jurídica, de modo que os atos praticados em nome da sociedade passam a ser atribuídos à pessoa daqueles que a compõem. Nesse caso, uma vez levantada a 'fachada' da personalidade jurídica, quem incorreu no fato gerador foi logicamente o próprio sócio, isto é, ele o praticou de forma pessoal e direta e, portanto, é contribuinte, não responsável. Essa é a consequência necessária da desconsideração da personalidade jurídica, a qual se mostra adequada ao caso em que a personalidade jurídica representa mera formalidade e, consequentemente, deve ser abstraída, uma vez que, na prática, os patrimônios do sócio e da pessoa jurídica se confundem. Ademais, em função da reserva de lei complementar, cabe ao CTN e não ao Código Civil dispor sobre as hipóteses de responsabilidade tributária. Tendo o CTN fixado as hipóteses de responsabilidade tributária de terceiro, não pode a lei ordinária dispor de forma distinta e ampliar tais hipóteses, sob pena de inconstitucionalidade. Como consequência, da mesma forma em que a confusão patrimonial não configura hipótese de responsabilidade tributária, inexiste previsão de responsabilidade tributária de terceiro que alcance sócio de sociedade de responsabilidade limitada, os quais somente podem ser colocados no polo passivo da obrigação tributária por meio da desconsideração.

Como resta evidente, a discussão posta de forma alguma é estéril. Afora as controvérsias já elencadas, cabe ainda referir, a título de exemplo, a sua importância para a exigência de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137 do CPC/15) nos casos em que se constata confusão patrimonial, sistemática que não encontra o mesmo expresso fundamento normativo nas hipóteses de responsabilidade tributária, embora sua aplicação analógica fosse recomendável também nesses casos. Da mesma forma, pode-se aludir à inconstitucionalidade do art. 30, XI, da Lei nº 8.212/91, a qual não pode ser superada pela referência a eventual constatação de confusão patrimonial ou de prática conjunta de fato gerador. De qualquer sorte, não remanescem dúvidas quanto à necessidade da distinção e do apuro técnico no emprego dos conceitos de responsabilidade tributária e desconsideração da personalidade jurídica.

Rafael de Souza Medeiros

Doutorando em Direito Tributário (Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha). Mestre em Direito Tributário e Teoria do Direito (UFRGS). Especialista em Direito Tributário Empresarial (FGV). Graduado, com láurea acadêmica, em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS). Professor-convidado (Dozent) na graduação da Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg. Associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Steuerrechtswissenschaftliche Vereinigung Heidelberg e.V. (StRWV). Autor do livro 'Responsabilidade Tributária de Grupo Econômico' e de artigos em periódicos de circulação nacional. Advogado em Porto Alegre-RS.

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[1] Em detalhes, cf. MEDEIROS, Rafael de Souza. Responsabilidade tributária de grupo econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

[2] A ressalva à responsabilidade limitada se dá em razão da previsão do art. 134, VII, que prevê a responsabilidade tributária do sócio em caso de liquidação de sociedade de pessoas.


MEDEIROS, Rafael de Souza Medeiros. Sobre a necessária distinção entre responsabilidade tributária e desconsideração da personalidade jurídica. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1523, 17 de Junho de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/sobre-a-necessaria-distincao-entre-responsabilidade-tributaria-e-desconsideracao-da-personalidade-juridica.html
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Editores: 
José Maria Tesheiner
(Prof. Dir. Proc. Civil PUC-RS Aposentado)

Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha

Advogada e Professora Universitária

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