Episódio 08 - Introdução à Lei Sálica
| Texto e Narração: | Sophia Salerno Peres | |
| Apresentação: | Maurício Krieger | |
| Publicação: | 17/04/2014 | |
| Música: | Julians Auftritt, de :Christoph Pronegg, :Klassik - Album 2008 | |
| Edição de áudio: | André Luís de Aguiar Tesheiner |
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'O acusado devia colocar sua mão em uma caldeira com água fervente...'
Durante o século III, os bárbaros, sofrendo constante pressão de povos vindos da Ásia, provocaram a primeira grande onda de invasões, deslocando-se ao território até então pertencente ao Império Romano. No século IV, o Império Romano dividiu-se em Império Romano do Ocidente, com capital situada em Roma, e Império Romano do Oriente ou Império Bizantino, com sede em Constantinopla.
Fatores de cunho político, religioso, militar e, principalmente econômico, tais como a dificuldade de administração do império e de suas fronteiras, bem como a crise da mão de obra escrava, culminaram com o evento denominado Queda do Império Romano do Ocidente, no século V. Este cenário, ao mesmo tempo que provocado pelas primeiras invasões bárbaras, acabou por favorecer novas invasões. Ao longo de todo o período transcorrido entre os séculos III e V, estes povos penetraram no Império Romano lá estabelecendo seus reinos. O reino franco tem origem no noroeste da Gália, sob controle do rei Clóvis I.
O povo romano encontrava-se em situação precária, explorado e submisso ao controle de uma minoria detentora do poderio econômico, fator este que levou parcela da população a buscar refúgio junto aos invasores bárbaros. Salviano explicita esta cumplicidade entre os povos: “São diferentes dos povos onde buscam refúgio: nada têm de suas maneiras, nada têm de sua língua e, seja-me permitido dizer, também nada têm do odor fétido dos corpos e das vestes dos bárbaros: mas preferem sujeitar-se a essa dissemelhança de costumes a sofrer, entre Romanos, a injustiça e a crueldade.”
As terras invadidas não eram ocupadas apenas por estes povos germânicos, mas também pelos romanos que permaneceram em seu território. Por este motivo, agregado à sofisticação da lei romana, parte do direito romano foi conservado, formando o que a doutrina denomina lex romana barbarorum (direito romano dos bárbaros), que passou a conviver paralelamente com as lex barbarorum (leis dos bárbaros).
Em regra, as leis eram pessoais – aplicava-se a lei dos francos ao povo franco, e, aos galo-romanos que habitavam o território franco, aplicava-se o direito romano. Como observa Montesquieu “bem longe de se cogitar, naqueles tempos, de tornar uniformes as leis dos povos conquistadores, não se pensava nem mesmo em ser legislador do povo vencido”. Em caso de conflito entre pessoas que viviam segundo direitos diferentes, aplicava-se como regra geral a lei do réu. Apontam-se algumas exceções a esta regra, tais como: quando a controvérsia versava sobre casamento, a lei aplicada era a do marido: em matéria de propriedade, a do proprietário ou possuidor aparente: quando se tratava de sucessão, a do lei prevalente era a do de cujus.
Os povos germânicos se baseavam no direito consuetudinário. Somente a partir das invasões passaram a reduzir seus costumes a escrito. Uma das consolidações de costumes germano-barbáricas mais antigas de que se tem notícia é a Lei Sálica. Acredita-se que o conteúdo da lei já era conhecido e utilizado pelo povo, mas que somente em um segundo momento tornou-se positivada.
Calcula-se que a Lei Sálica, em sua forma originária, chamada “Pactus legis salicae” tenha sido produzida no período compreendido entre 481 – data em que Clóvis se torna rei dos francos sálios - e 511 – data da morte do soberano. Clóvis I converteu-se ao catolicismo em 496, e, não havendo qualquer influência da religião católica na lei, alguns doutrinadores estimam que a mesma tenha sido elaborada após esta data. Ainda, existem especulações de que a Lei Sálica possivelmente tenha nascido entre os anos de 508 e 511, período em que Clóvis se tornou rei de todos os francos, uma vez que a lei acentua a unidade da monarquia franca.
A aplicação da lei sálica ocorria no âmbito da atuação dos tribunais da monarquia franca, que, como descreve Gilissen, funcionavam da seguinte forma: em cada pagus (condado) havia pelo menos um tribunal, chamado mallum, composto por homens livres e presidido pelo conde (comes), que era assessorado pelos rachimburgii que eram chamados a “dizer o direito” (legem dicere). A seguir, os homens livres aprovavam ou não a solução proposta.
O prólogo da Lei Sálica, além de remeter a estes órgãos, indica a forma como a lei foi redigida: “A lei sálica foi ditada por quatro (homens) que foram eleitos pelos principais do povo, (...), os quais, tendo-se reunido em três mallus e tendo aí tratado cuidadosamente da origem de todos os conflitos, julgaram como se segue.” É possível que a lei tenha sido escrita na língua dos francos para apenas em um segundo momento ser traduzida para o latim, uma vez que existem expressões na lei que não constam na língua latina, mas remanescem do texto original, pois não puderam ser traduzidas.
A lei sálica não distinguia o direito material do processual, e nem mesmo as matérias de Direito Penal e Direito Civil, mas a maior parte de seus dispositivos tratava de matéria penal. A violação de grande parte de suas normas causava o dever de reparação através do pagamento de indenização ou multa. Este valor deveria ser pago em favor da vítima ou de seus familiares, dos quais o condenado comprava o direito de vingança.
Da leitura de seus dispositivos constata-se, entre outros aspectos: o alto grau de violência praticado na época (previsão de penas corporais) e a importância que atribuíam tanto à propriedade (furto e roubo são as figuras de maior incidência na lei) quanto à família (disposições acerca de punições por adultério, estupro e defesa das mulheres férteis). Além disto, é notável a desigualdade social e as rígidas distinções entre romanos, desfavorecidos, e francos, privilegiados, que, nada importando se figuravam na posição de acusados ou vítimas, recebiam tratamento desigual – os romanos, quando condenados, tinham o dever de pagar indenização de valor mais elevado do que os francos em semelhante situação, e, quando vítimas, tinham direito ao recebimento de indenização em valor menor do que a devida aos francos.
No sistema processual, atenta-se ao fato de que a lei impunha uma punição pecuniária àquele rachimburgii, assessor do juiz, que desse causa à morosidade do julgamento.
Com relação ao sistema probatório, a regra era a de que aquele que alegava um fato deveria comprová-lo. A afirmação de um antrustião, espécie de vassalo do rei, merecia fé, em razão do cargo por ele ocupado.
O acusado podia eximir-se da prova da água quente, trazendo testemunhas que afirmassem que ele não havia cometido o fato, e pagando uma quantia a titulo de indenização.
A prova da água fervente era o único tipo de ordália prevista no Pactus Legis Salicae. As ordálias consistiam em um gênero probatório que buscava a revelação da verdade através de um “juízo de Deus”. Neste caso específico da Lei Sálica, o acusado deveria colocar sua mão em uma caldeira com água fervente, que após o término da prova era enfaixada. Passados três dias, o acusado seria absolvido no caso de não possuir marcas de queimadura, caso contrário, era condenado. Montesquieu contextualiza a prova da água fervente com os costumes da época, dizendo: “Quem não vê que, a um povo habituado a manejar armas, a pele rude e calosa não devia receber tanta impressão da água fervendo que não desaparecesse três dias após? Se aparecesse, era sinal de que não passava de um afeminado a pessoa que se sujeitava ao experimento.”
BibliografiaBRUNNER, Heinrich. Historia Del Derecho Germánico. Rio de Janeiro: Editorial Labor, 1936.GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.GUIZOT, François. The History of Civilization: From the fall of the Roman Empire to the French Revolution. New York: D. Appletone &: Company, 1858, v.3.LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, v.1.LE GOFF, Jacques. The Birth of Europe: 400 – 1500. Oxford: Blackwell Publishing, 2005.LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. São Paulo: Editora Max Limonad, 2002.MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Nova Cultural Ltda., 1997, v.2.SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. São Paulo: Saraiva, 1983.TOURS, Gregory of. A History of the Franks. United Kingdom: Acheron Press, 2012.

