Episódio 39 - Justiça e Escravos
Texto e narração:Sophia Salerno Peres | |
Apresentação: | Bruno Jardim Tesheiner e Júlio Jardim Tesheiner |
Publicação: | 28/08/2014 |
Duração do episódio: | 13 minutos e 45 segundos |
Música: | Julians Auftritt, de :Christoph Pronegg, :Klassik - Album 2008 |
Edição de áudio: | André Luís de Aguiar Tesheiner |
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Ações judiciais no Brasil escravocrata
O Código Criminal de 1830 previa severas penas aos escravos, como as galés perpétuas e a pena capital. De grande aplicação era a pena do artigo 60, que consistia no açoite e no uso de gargalheiras como penas decorrentes da prática de atos previstos como crime. Esta pena deveria ser fixada judicialmente, por ação judicial do senhor contra o seu escravo. Cabia ao juiz fixar o número de açoites e o tempo pelo qual o escravo teria que usar a gargalheira, conforme previsão expressa do referido artigo: “O numero de açoutes será fixado na sentença: e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta.”. Ilustra-se o teor das decisões judiciais proferidas naquele período com sentença a seguir reproduzida, proferida pelo Juiz substituto da comarca de Piratini em Cangaçu (RS) no ano de 1871.
“Condeno cada um dos ditos réus a sofrer duzentos açoites, e a trazer uma gargalheira de ferro, singela, ao pescoço, de polegada e meia de largura, e de quatro linhas de espessura, pelo tempo de seis meses, devendo os mencionados réus sofrer os açoites nas grades da cadeia pública desta Villa, em razão de 50 por dia: depois do que serão entregues á seus senhores, que assinarão termo de obrigação de trazê-los com a gargalheira de ferro pelo tempo e maneira designados nesta sentença, devendo apresentá-los ao Juiz-Municipal deste Termo uma vez em cada mês, afim de verificar-se se é, ou não, cumprida a dita obrigação, até findar-se os seis meses marcados nesta mesma sentença.”
A Lei do Ventre Livre também embasou diversos pleitos judiciais, e, contrariamente ao que ocorria nas ações penais, não apenas os senhores figuravam como autores, mas também os seus escravos. O artigo 8° determinava que todos os proprietários de escravos tinham o dever de inscrevê-los na “Matrícula de escravos”, reforçando que os mesmos tinham a condição de objeto, de bem, de propriedade: “O Govèrno mandará proceder à matrícula especial de todos os escravos existentes do Império, com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se fôr conhecida.” Os escravos que não fossem matriculados em tempo hábil seriam considerados libertos. :  : Aos senhores omissos, havia previsão de pena de multa e eventual pena pelo crime de fraude.
Apesar desta presunção de liberdade em favor dos escravos não matriculados, o Judiciário ainda poderia socorrer os interesses dos proprietários de escravos, pois os senhores eram legitimados a requerer a propriedade do escravo em juízo através de ação ordinária, desde que comprovassem a ausência de omissão em relação à matrícula, através da chamada “Ação de Escravidão”, legitimada pelo artigo 19 do Decreto n° 4.835 de 1871:
Art. 19. Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados á matricula até o dia 30 de Setembro de 1873, serão por este facto considerados libertos, salvo aos mesmos interessados o meio de provarem em acção ordinaria, com citação e audiencia dos libertos e de seus curadores:
1º O dominio que têm sobre elles:
2º Que não houve culpa ou omissão de sua parte em não serem dados á matricula dentro dos prazos dos arts. 10 e 16.
Neste tipo de demanda aplicava-se o disposto no artigo 7° da Lei 2.040 de 1871, de caráter abolicionista, o qual atestava que em todas as causas em que fosse discutida a liberdade do escravo o processo judicial era summario e haveria a obrigatoriedade de apelação : ex-officio : quando as decisões fossem contrárias à liberdade.
Um dos modos de balizar a procedência das ações de escravidão consistia na propositura das “Ações declaratórias de Liberdade” ou “Ações de Manutenção da Liberdade”. Nelas, o escravo não matriculado buscava a declaração judicial da sua situação de liberto. A ação não poderia ser proposta pelo escravo, mas apenas por um cidadão livre ou pelos promotores de justiça.
Afora os casos de ausência de matrícula, outros fatos davam origem aos pleitos dos escravos nas “ações cíveis de liberdade”. Consistiam em ações judiciais nas quais os escravos postulavam sua liberdade com base, principalmente, na Lei do Ventre Livre, cujas disposições permitiam que os escravos buscassem a declaração judicial de sua liberdade mediante pecúlio e com base no abandono. A Lei Eusébio de Queiróz, de 1850, proibiu o tráfico negreiro. Apesar de ter ficado conhecida como “lei para inglês ver”, em razão de sua ineficácia, pode-se dizer que no âmbito do Judiciário a lei produziu efeitos, pois diversas ações judiciais de liberdade tiveram por base a invocação do tráfico ilegal.
Nas ações de liberdade, os escravos gozavam de certos benefícios processuais, previstos no artigo 81 do Decreto 5.135 de 1872. Os escravos estavam isentos de pagamento de custas, ao passo que os senhores tinham o dever de pagá-las. Essa ações não admitiam conciliação, tendo em vista que nelas não se discutiam meros direitos patrimoniais disponíveis, mas sim, o direito fundamental à liberdade. O ônus da prova competia ao réu (o senhor), e não ao autor (o escravo). Esta inversão do ônus da prova justificava-se na medida em que a liberdade era considerada um direito natural, motivo pelo qual o direito do autor era presumido, admitindo-se, no entanto, prova em contrário.
A tendência abolicionista que se espalhava no Poder Judiciário passou a preocupar os interessados na manutenção da escravidão. Assim, no âmbito legislativo passou-se a buscar “soluções” para os supostos “abusos” cometidos pelos magistrados nas ações de liberdade, principalmente em relação ao arbitramento do valor da liberdade do escravo. Mendonça (2001, p.87) relata que o Deputado Rodrigues Peixoto, em1884, inclusive pediu a intervenção do Ministro da Justiça no Poder judiciário para conter seus “abusos”. Segundo o parlamentar, “não se podia mais ignorar o fato de estarem promovendo ações judiciais escravos que não depositaram um pecúlio razoável (...) e, principalmente, a importância a que se liga suas informações, muitas vezes infundadas e caluniosas, o que tem concorrido para torná-los insubordinados, com risco para os distritos agrícolas”.
A partir disto, alguns membros do Poder Legislativo passaram a propor projetos de lei para a criação de uma tabela de preços fixos para a alforria dos escravos, que variava conforme a sua idade. Pode-se dizer que a tabela representaria um limite para os excessos cometidos no processo de arbitramento, tanto para prejudicar o escravo quanto para favorecê-lo. Joaquim Nabuco defendia que a tabela de valores significava a revogação de um direito adquirido dos escravos, qual seja, o direito à avaliação.
De um destes projetos derivou a chamada Lei Saraiva-Cotegipe, ou Lei dos Sexagenários, a Lei n°3.270 de 1885. A lei trazia uma tabela de preço dos escravos dividida por faixas-etárias, até o máximo de idade de 60 anos. Por um lado, a lei constituiu um grande avanço, pois concedia liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade, mas, por outro lado, constituiu um retrocesso, pois tentou retrair a atuação de escravos, advogados e magistrados engajados na causa abolicionista, uma vez que a tabela de preços preserva a escravidão, institucionalizando-a e evitando as discussões e os conflitos. Este cenário abolicionista de avanços e retrocessos no âmbito dos poderes legislativo, executivo e judiciário permaneceria até a abolição da escravatura no Brasil, em 1888.
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
NEQUETE, Lenine. Escravos e Magistrados no 2° Reinado. Brasília: Fundação Petrônio Portella, 1988.
Exposição: A justiça no cotidiano dos escravos. Memorial do Judiciário – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2014. :