Episódio 40 - O judiciário perante as leis abolicionistas no Brasil
Texto e narração:Sophia Salerno Peres | ||
Apresentação: | Bruno Jardim Tesheiner e Júlio Jardim Tesheiner | |
Duração do episódio: | 08 minutos e 39 segundos | |
Música: | Julians Auftritt, de :Christoph Pronegg, :Klassik - Album 2008 | |
Edição de áudio: | André Luís de Aguiar Tesheiner |
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A Lei do Ventre Livre :
A Lei do Ventre Livre, ou Lei Rio Branco, constituiu relevante lei abolicionista, inclusive no que diz respeito ao acesso do escravo à Justiça. Outorgada pela Princesa Isabel, a Lei n. 2.040/1871 : declarava que :os filhos de mulher escrava que nascessem no Império a partir da data da lei seriam considerados libertos. Sendo menores os filhos, ficariam em poder dos senhores de suas mães, os quais tinham a obrigação de criá-los até que completassem a idade de oito anos. Chegando o filho da escrava a essa idade, o senhor tinha duas opções: entregá-lo ao Estado e receber uma indenização ou utilizava-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos. :Os filhos das escravas cedidos ou abandonados pelos senhores ficariam sob responsabilidade do governo, :que os entregaria a associações. :
Os artigos 4° e 8° tratavam da possibilidade de compra da liberdade por meio de pecúlio e da obrigatoriedade da inscrição de todos os escravos na chamada “Matrícula de Escravos”, semelhante a uma matrícula de imóveis. :
Nota-se que o escravo tinha a condição de objeto, e não se sujeito de direitos. Contudo, a Lei Do Ventre livre gerou diversas demandas judiciárias propostas por escravos contra os seus senhores. Neste momento, a alforria do escravo, que antes era ato privativo dos seus “proprietários”, passou a sofrer intervenção do Estado, principalmente por meio de decisões judiciais. Iniciou-se o processo de relativização da propriedade exercida pelos senhores sobre seus escravos, que antes pertencia exclusivamente à esfera privada, mas aos poucos foi-se estendendo para a esfera pública. :
As ações judiciais nas quais os escravos postulavam sua liberdade com base na Lei do Ventre Livre eram chamadas de “ações cíveis de liberdade”, uma vez que nelas discutia-se matéria cível, qual seja, o direito de propriedade do senhor sobre o seu bem: o escravo, como dito, era considerado um objeto, uma coisa. As principais leis que na época embasavam as ações eram as Ordenações Filipinas, o Código Criminal de 1830 e a própria Lei n. 2.040, alem os costumes. :
Várias ações derivaram da Lei do Ventre livre, como por exemplo: ações de liberdade mediante pecúlio: questões envolvendo a matrícula dos escravos: manutenção da liberdade, entre outras. O pecúlio representava um importante passo rumo à liberdade. A possibilidade de formação de pecúlio para a compra da liberdade estava prevista no artigo 4° da lei, que assim dispunha:
Art. 4.º - É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O govêrno providenciará nos regulamentos sôbre a colocação e segurança do mesmo pecúlio. :
Como os escravos não eram reconhecidos como sujeitos de direito, não tinham legitimidade ativa para propor ações judiciais em nome próprio. Por isso, o juiz nomeava um curador, pessoa livre a quem incumbia postular em juízo em nome do escravo. O magistrado também nomeava pessoa livre e idônea para atuar como depositária do escravo durante o curso da ação judicial. O depósito do escravo tinha por objetivo mantê-lo afastado de seu proprietário, uma forma de proteção às eventuais retaliações que poderia sofrer do seu senhor em razão da ação. :
Inicialmente, o juiz tentava a conciliação das partes com base na quantia que o escravo entendia ser “o seu valor”. Inexistindo acordo, iniciava-se o processo de arbitramento para fixação do preço da liberdade por três árbitros que estipulavam o valor da liberdade com base em critérios como a idade, a aptidão profissional e a aparência do escravo. Se as partes concordassem com o valor arbitrado, e este fosse pago de forma integral, o escravo recebia sua carta de alforria. Caso contrário, as partes podiam impugnar o valor mediante recurso ao Tribunal de segunda instância. :
Outra demanda comumente proposta na época era a ação de liberdade com base no abandono. A Lei do Ventre Livre concedia a liberdade aos escravos que fossem abandonados por seus senhores, o que deveria ser declarado por sentença. Caso o abandono decorresse de invalidez do escravo, o seu senhor era obrigado a pagar-lhe alimentos, conforme a previsão legal:
Art. 6.º - Serão declarados libertos: :
§ 4.º - Os escravos abandonados por seus senhores. Se êstes os abandonarem por inválidos, serão obrigados a alimentá-los, salvo o caso de penúria, sendo os alimentos taxados pelo juiz de órfãos. :
Para ilustrar o que foi dito, referimos a decisão proferida no ano de 1878, pelo juiz da comarca de Cannguçu, Rio Grande do Sul, na ação de liberdade em favor do escravo Apolinário, com pedido de liberdade fundado em abandono e de alimentos fundado em invalidez:
“Tendo se apresentado neste juízo o preto Apolinario, pertencente à herança de Anna Maria Soares, dizendo-se abandonado por seus senhores, há dois anos aproximadamente, e declarando querer obter, por isso, carta de liberdade: mando que se notifique ao Sr. Francisco Teixeira Guimarães para servir de curador ao vosso escravo, requerendo o que for bem de seu direito e em juízo requerendo e propondo a competente ação. O escrivão, que neste juízo serve passe mandado para ser depositado o escravo em mão do Sr.Domingos José Borges, [que] nomeio depositário. O que cumpra. :
Juiz municipal, 19 de fevereiro de 1878.” :
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. :
SÁ, Gabriela Barreto de. História do direito no Brasil, escravidão e arquivos judiciais: análise da ação de liberdade de Anacleta. Revista Justiça &: História, v. 10, n. 19/20, 2010. :
Exposição: A justiça no cotidiano dos escravos. Memorial do Judiciário – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2014.  :