Episódio 66: Primeiras Linhas de Processo Civil. 23 – Dos instrumentos
Texto:José Caetano Pereira e Sousa e José Tesheiner
Apresentação:Bruno Jardim Tesheiner
Narração:José Tesheiner e Sophia Salerno Peres
Duração do episódio: 15 minutos e 16 segundos
Música:Julians Auftritt, de Christoph Pronegg, Klassik - Album 2008:Siciliana, de Schumann, por Marco Tezza
Edição de áudio:André Luís de Aguiar Tesheiner
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Comentários às Primeiras Linhas de José Joaquim Caetano Pereira e Sousa
Dos instrumentos
Iniciamos este episódio com um texto de Adelto Gonçalves: Nos séculos XVIII e XIX, reis, rainhas, nobres e muitos daqueles revolucionários que, mais tarde, viraram “pais” da pátria eram quase todos desdentados. Nesse aspecto, não eram diferentes da rude gente da plebe. Se não os vemos assim nas pinturas que procuraram imortalizá-los e, hoje, estão expostas em palácios e museus, é porque os artistas sempre se preocuparam em retratá-los de boca fechada. Se sorrissem, seria um vexame: veríamos falhas enormes. E, provavelmente, não os levaríamos muito a sério. Um desdentado é sempre motivo de riso.Na verdade, a dor de dentes é um dos flagelos que atravessaram o século XVIII. Não havia quem, de qualquer posição social que fosse, não se queixasse do mal. Em cartas pessoais e nos relatórios burocráticos que repousam em arquivos, há sempre esse tipo de queixa. Como lembra o historiador Robert Darnton, nem mesmo monarcas estavam imunes à dor de dentes. Os médicos de Luís XIV quebraram sua mandíbula na tentativa de extrair molares apodrecidos. Claro, não havia equipamentos adequados nem qualquer tipo de anestesia. Acostumados às comodidades oferecidas pela tecnologia odontológica que surgiu já na segunda metade do século XX, não somos hoje capazes de imaginar o terror que representou para o homem do século XVIII a dor de dentes.Quando pesquisamos a documentação da capitania de Moçambique, Rios de Sena e Sofala, que está guardada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, encontramos extensas cartas do governador e capitão-general dom Diogo de Sousa ao Reino rogando o seu retorno. Pouco mais de um ano depois de instalado no Palácio de São Paulo, na ilha de Moçambique, capital das possessões portuguesas na contra-costa africana até 1897, dom Diogo, àquela altura ao redor dos 29 anos de idade, já implorava à rainha a sua volta a Lisboa, embora por lei não pudesse fazê-lo sem uma ausência de cinco anos.Dom Diogo até anexou a um relatório o atestado de um cirurgião-mor confirmando que padecia de “uma afecção escorbútica” que lhe fizera cair os dentes. Reclamava que tinha as gengivas inchadas e a sangrar constantemente, o que lhe teria “degenerado uma lassidão, debilidade nos joelhos, o corpo com escamas, sintomas de afecção leprosa”, como se pode ler no documento.Se a vida já era difícil para um nobre, como dom Diogo de Sousa, que podia reunir em torno de si o que houvesse de melhor no burgo acanhado que comandava, imagine o que passavam os demais. http://www.filologia.org.br/adelto_goncalves/html/Sofrer%20dos%20dentes%20no%20século%20XVIII%20-%20ADELTO.htm. Acesso em 17/08/2014.
Deixamos, agora, Adelto Gonçalves, para conversar com Joaquim José Antônio Pereira e Sousa, que lá pelo ano de 1814, dizia:
Instrumento é a escritura feita para comprovação dos fatos que se deduzem em juízo.
Instrumento, aí, é a escritura pública, ou particular que tende ao fim da prova (nota 449).
Diz Moacyr Amaral Santos que instrumento é prova preconstituída de um ato, no que se distingue de documento em sentido estrito, que constitui prova casual de um fato ou ato. (p. 61). Assim, a procuração é o instrumento do mandato, isto é, um escrito produzido para prova do mandato: os e-mails são documentos em sentido estrito, porque, de regra, não são redigidos e enviados para servir de prova. Em sentido amplo, qualquer escrito é um documento. Em sentido ainda mais amplo, documento é tudo o que transmite um registro físico de um ato, como fotografias, desenhos, filmes, etc.Divide-se o instrumento, em razão de sua causa eficiente, em público, e particular, e em razão da sua forma em original, e traslado.
Diz-se instrumento público o que é munido com a autoridade pública, e feito por oficiais para isso designados, como os tabeliães. É preciso, porém, que o ato seja lavrado no território para o qual o oficial foi designado, pois, fora daí, ele atua, não como oficial público, mas como simples particular (nota 450).Instrumento particular é o que não tem fé pública (nota 451).Moacyr Amaral Santos define o instrumento público como “o ato feito, com as formalidades requeridas, por um tabelião ou oficial público autorizado, no lugar em que o ato é lavrado, com o fim de atribuir-lhe fé pública” (p. 67): traslado é a copia fiel de nota lançada no livro de notas de oficial pública (p. 341).
São requisitos do instrumento público: I, que ele seja feito por oficial público: II, que o mesmo oficial seja rogado para fazer o instrumento: III, que o faça no território para que foi criado: IV, que se faça de coisas perante ele praticadas: V, que seja extraído do protocolo, ou livro de notas: VI, que intervenham nele as solenidades legais.
Eram oficiais públicos para esse efeito o tabelião e o escrivão (nota 453).Por necessitar ser “rogado”, não podia o oficial lavrar instrumento público de seus próprios contratos (nota 454).Contavam-se entre as solenidades legais, a indicação do lugar, dia e ano em que praticado o ato, a assinatura das partes, admitindo-se, porém, assinatura a rogo, e duas testemunhas (nota 458).Não vale como instrumento público o lavrado por oficial fora de seu território ou por oficial que haja sido suspenso de suas funções (nota 455).
Pertencem à classe dos instrumentos públicos: I, os atos judiciais: II, as certidões dos escrivães tiradas dos autos: III, as escrituras extraídas da nota do tabelião: IV, os livros das Alfândegas, e outras estações fiscais: V, os instrumentos guardados no arquivo público: II, os livros Eclesiásticos a respeito dos batismos, casamentos, e óbitos.
Os instrumentos públicos podem ser classificados em administrativos e judiciais: administrativos os que provêm de autoridades, funcionários e empregados da administração pública, autenticando atos do poder público ou assentos das repartições: judiciais os que, provindo de oficiais da justiça, se refiram a atos processados em juízo, tais os atos judiciais e as certidões dos escrivães, extraídas dos autos (Moacyr Amaral Santos, p. 76-7).Tem fé pública a certidão do escrivão que é narrativa do que se passou na sua presença tocante ao seu ofício (nota 460).Faz plena prova o instrumento: I, sendo solene e autêntico: II, sendo original, e não traslado.O instrumento público só faz prova contra os que nele intervieram, não contra terceiro.
Entendia-se, porém, que fazia prova plena o traslado, se passado pelo mesmo tabelião que escreveu a nota (nota 466).Fazia prova também contra os herdeiros e sucessores. Mesmo contra terceiro, o instrumento público provava rem ipsam. Assim, a escritura de compra e venda de um prédio provava, ainda contra terceiro, que houvera o contrato de compra e venda (nota 468).Ensina Moacyr Amaral Santos que o instrumento público faz prova suficiente não somente entre as partes como em relação a terceiros, quanto à existência do ato jurídico e aos fatos certificados pelo oficial público. Isso significa que o instrumento público faz em juízo prova bastante não só do ato ou convenção, como também dos fatos declarados pelo oficial público e que se passaram em sua presença. Observa, porém, que a eficácia probatória em relação a terceiros não derroga o princípio de que os atos das partes não beneficiam nem prejudicam terceiros. Esse princípio permanece inalterado, porque os terceiros não incorrem em obrigações nem adquirem direitos em virtude de o negócio jurídico estar comprovado por um instrumento público, mas somente não poderão desconhecer a realidade história do negócio realizado. (p. 119-21).
O instrumento particular não prova a favor de quem o escreveu. Prova porém contra ele se o produz em juízo, ou o reconhece.
Contudo, os livros dos negociantes e mercadores, observados os requisitos legais, faziam prova semi-plena em seu favor (nota 469).A comparação de letras era admitida, mas era semi-plena a prova assim produzida, dada a arte que alguns têm de imitar a letra dos outros (nota 470).
Produzem-se os instrumentos dentro da dilação, ou depois dela até a conclusão da causa.
Havia, contudo, muitas exceções, entre elas a dos mencionados no libelo, que deviam ser desde logo exibidos (nota 471).O Código vigente estabelece que compete à parte instruir a petição inicial, ou a resposta, com os documentos destinados a provar-lhe as alegações, sendo lícita, porém, a juntada aos autos, em qualquer tempo, de documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados, ou para contrapô-los aos que foram produzidos (arts. 396 e 397).Deve produzir-se escritura pública para prova de todos os contratos cujo objeto exceder o valor de sessenta mil réus nos bens imóveis, e de quatro mil réis nos bens de raiz.
Diziam as Ordenações: E em tais casos, em que segundo disposição desta Lei se requer escritura pública, não será recebida prova de testemunhas: e se forem recebidas testemunhas, tal prova será nenhuma, e de nenhum efeito, ainda que a parte não se oponha (Livro III, 59, pr).O Código Civil vigente estabelece que a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País (art. 108).
Infringe-se a fé do instrumento pelos seus vícios: I, ou internos, e invisíveis: II, ou externos, e visíveis
Eram vícios externos, entre outros, a cancelação, a rasura, a riscadura, a interlinha, a diversidade de tinta. Eram vícios constatáveis à primeira vista. Mais difícil a prova de vicio interno, como a desconformidade entre a vontade declarada e a constante do instrumento (notas 473 e 472).
Reforma-se o instrumento perdido, se de outro modo se puder provar o contrato, ou ato que ele continha.
Diziam as Ordenações: E se acontecer que a nota seja perdida, e quiser o autor provar por testemunhas, como o instrumento foi notado, e a dita nota e instrumento perdidos, será recebido e ouvido, com a parte, a que pertencer. E provando-o por homens discretos e entendidos, que declaradamente digam o teor do instrumento, e como foi notado e perdido, tal prova faça fé, assim como se o dito instrumento fosse oferecido (Livro III, 60, 6).Pois é. Enquanto isso, em 1814, Joseph von Fraunhofer construía um espectroscópio aperfeiçoado e estudava sistematicamente as linhas escuras no espectro solar. Utilizando um feixe de luz solar, descobriu as primeiras 547 linhas do espectro do Sol, conhecidas como “raias de Fraunhofer” ou “de absorção”.
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e comercial. São Paulo: Max Limonad, 1966. v. IV.