Episódio 67: Primeiras Linhas de Processo Civil. 24 – Das testemunhas
Texto:José Caetano Pereira e Sousa e José Tesheiner
Apresentação:Bruno Jardim Tesheiner
Narração:José Tesheiner e Sophia Salerno Peres
Duração do episódio: 16 minutos e 53 segundos
Música:Julians Auftritt, de Christoph Pronegg, Klassik - Album 2008:Siciliana, de Schumann, por Marco Tezza
Edição de áudio:André Luís de Aguiar Tesheiner
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Comentários às Primeiras Linhas de José Joaquim Caetano Pereira e Sousa
Das testemunhas
Iniciamos este episódio com uma notícia a respeito da Lei da Boa Razão, valendo-nos de um escrito de José Fábio Rodrigues Maciel.Em meados do séc. XVIII, com a forte atuação política do Marquês de Pombal (1699-1782), Portugal recebeu grande influência das correntes doutrinárias que, desde o século XVI, estavam a construir a moldura político-jurídica da Europa moderna, ou seja, o Estado iluminista, caracterizado pelo absolutismo político do monarca e pelas reformas política, social, cultural, econômica e religiosa, com o objetivo de reorganizar a sociedade em conformidade com normas racionais. Com um espírito contrário à tradição e laico, acreditando no poder da razão e na capacidade da lei para reformar a sociedade, surgiu a obra modernizadora de Pombal. Expoente maior desse processo transformador, no que se relaciona ao mundo jurídico, foi a Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, elaborada no processo da reforma pombalina e o mais importante documento dessa era. Redefiniu a teoria das fontes do direito, tornando-se documento chave para a compreensão do bacharelismo liberal na cultura jurídica brasileira do século XIX, com conseqüências até a atualidade.O Título 64 do Livro Terceiro das Ordenações Filipinas determinava que eventuais conflitos deviam ser julgados em conformidade com as leis (atos do príncipe), estilos (jurisprudência determinada e aceita pela Casa de Suplicação) ou costumes do reino. Para as lacunas, caso fosse matéria que trouxesse pecado, caberia o direito canônico, caso contrário seria julgado pelas leis imperiais (direito romano). Na falta também de leis imperiais, eram as glosas de Acúrsio e as opiniões de Bártolo, comentadores do Corpus Iuris Civilis, que deveriam ser utilizadas. Na falta de qualquer solução deveria o caso ser remetido ao rei, cuja decisão valeria a partir de então para os casos semelhantes. : Foi esse sistema de fontes do direito o principal objeto da reforma levada a cabo por Marquês de Pombal, que fixou os limites de aplicação subsidiária do direito romano em Portugal. Esse direito, que até então era utilizado para suprir as lacunas, não mais poderia ser invocado a não ser em sua forma pura, tendo em vista a exclusão tanto dos textos de Acúrsio como de Bártolo.A utilização do direito romano foi minimizada, continuando a ser aplicado apenas pela boa razão dele, mas a Lei de 1769 mudou o conceito de 'boa razão' para '...aquela boa razão, que consiste nos primitivos princípios, que contém verdades essenciais, intrínsecas, e inalteráveis, que a ética dos mesmos romanos havia estabelecido, e que os direitos divino e natural, formalizaram para servirem de regras morais e civis entre o cristianismo: ou aquela boa razão, que se funda nas outras regras, que de universal consentimento estabeleceu o direito das gentes para a direção, e governo de todas as Nações civilizadas: ou aquela boa razão, que se estabelece nas leis políticas, econômicas, mercantis e marítimas que as mesmas nações cristãs têm promulgado com manifestas utilidades, do sossego público, do estabelecimento da reputação e do aumento dos cabedais dos povos, que com as disciplinas destas sábias, e proveitosas leis vivem felizes à sombra dos tronos, e debaixo dos auspícios dos seus respectivos monarcas, príncipes soberanos: sendo muito mais racionável, e muito mais coerente, que nestas interessantes matérias se recorra antes em casos de necessidade ao subsídio próximo das sobreditas leis das nações cristãs, iluminadas, e polidas, que com elas estão resplandecendo na boa, depurada, e sã jurisprudência: em muitas outras erudições úteis, e necessárias: e na felicidade: do que ir buscar sem boas razões, ou sem razão digna de atender-se, depois de mais de dezessete séculos o socorro às leis de uns gentios...'.Percebe-se que a força do pombalismo estava na libertação do direito laico da influência do direito canônico, a reinterpretação do direito romano, ainda em vigor, no sentido que lhe era dado nos países do centro da Europa, e a instauração da filosofia política racionalista como a linha mestra da formação intelectual dos juristas.A Lei da Boa Razão, ao rever todo o sistema de fontes do direito, fez com que se abandonassem os textos de autoridade dos grandes juristas medievais, como Bártolo e Acúrsio, o mesmo se dando com o direito canônico. O que se buscava era o monopólio da edição do direito pela lei do soberano, com raras exceções, como a possibilidade de invocar os princípios de direito natural, especificamente aqueles que tinham sido incorporados à legislação dos novos Estados iluministas.
MACIEL, José Fábio Rodrigues. A Lei da Boa Razão e a formação do direito brasileiro (em 3/6/2008). http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/a-lei-da-boa-razao-e-a-formacao-do-direito-brasileiro/1668. Acesso em 23/08/2014.
Retomamos agora nossa conversa com José Joaquim Caetano Pereira e Souza, que diz:Testemunha se diz a pessoa que é chamada a juízo para declarar o que sabe a respeito do fato controverso entre as partes.
Todas as pessoas de um, e outro sexo podem ser testemunhas, não sendo expressamente proibidas.
Lê-se nas Ordenações: Todo homem pode geralmente ser testemunha... salvo nestes casos, que se seguem”.Vem a seguir o rol dos que não podem ser testemunhas:-  :pai e a mãe, nos feitos dos filhos: o avô e o bisavô, pelo neto ou bisneto:-  :irmão, nos feitos do irmão:-  :escravo:-  :judeu e o mouro:-  :desassisado sem memória:-  :menores de 14 anos:-  :inimigo capital:
O artigo 405 do Código vigente estabelece que são incapazes de depor o interdito por demência: o que, acometido por enfermidade, ou debilidade mental, ao tempo em que ocorreram os fatos, na?o podia discerni-los: ou, ao tempo em que deve depor, na?o esta? habilitado a transmitir as percepc?o?es: o menor de 16 (dezesseis) anos: o cego e o surdo, quando a cie?ncia do fato depender dos sentidos que Ihes faltam.
Os defeitos das testemunhas podem provir: I, da falta de razão: II, da falta de boa fama: III, da suspeita de parcialidade: IV, da suspeita de suborno.
Eram testemunhas defeituosas por falta de boa fama: os condenados por crime de falsidade: os infames: o ébrio habitual: os jogadores por ofício.Eram testemunhas defeituosas por suspeita de parcialidade: os que tivessem interesse pessoal na causa, como o fiador na causa do devedor: o prelado na causa da sua igreja: o vendedor, na causa do comprador que o chamara à autoria: os membros de uma corporação nas causas a ela concernentes: os compadres e padrinhos: os amigos íntimos: os domésticos e os criados: etc.O artigo 405 do Código vigente estabelece que são impedidos de depor: o co?njuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou colateral, ate? o terceiro grau, de alguma das partes, por consangu?inidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse pu?blico, ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, na?o se puder obter de outro modo a prova, que o juiz repute necessa?ria ao julgamento do me?rito: o que e? parte na causa: o que interve?m em nome de uma parte, como o tutor na causa do menor, o representante legal da pessoa juri?dica, o juiz, o advogado e outros, que assistam ou tenham assistido as partes. Sa?o suspeitos: o condenado por crime de falso testemunho, havendo transitado em julgado a sentenc?a: II - o que, por seus costumes, na?o for digno de fe?: o inimigo capital da parte, ou o seu amigo i?ntimo: o que tiver interesse no liti?gio.
Regularmente duas testemunhas constituem legítima prova.
Estabeleciam as Ordenações que fazia meia prova a testemunha sem suspeita, que depusesse cumpridamente do caso sobre que era a contenda. (Livro III, 52).A exigência de no mínimo duas testemunhas para se ter como comprovado um fato tinha fundamento bíblico, além de suporte na constatação dos riscos de um julgamento baseado em uma testemunha única, que pode ser falsa. Lê-se no Livro do Deuteronômio (19:15):“Não valerá contra alguém uma só testemunha, qualquer que for ou delito ou o crime: mas tudo será verificado sobre o depoimento de duas ou três testemunhas. Se se apresentar uma testemunha falsa contra um homem, acusando-o de prevaricação, ambos os contendores comparecerão diante do Senhor na presença dos sacerdotes e juízes que forem naqueles dias. E quando estes, depois dum diligentíssimo exame, conhecerem que a testemunha falsa disse uma mentira contra o seu irmão, far-lhe-ào o que ele tinha intenção de fazer ao seu irmão, e tirarás o mal do meio de ti, para que os outros, ouvindo isto, tenham medo, e de nenhum modo se atrevam a fazer tais coisas. Não terás compaixão dele, mas exigirás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé.”Preconizava, pois, a Bíblia a aplicação da pena de talião à testemunha falsa, que haveria de sofrer o dano que seu depoimento falso iria provocar.Uma norma lamentavelmente abandonada em nossos dias.
Não basta porém que as testemunhas sejam hábeis, e em numero legitimo. Elas devem ser: I, juradas: II, contestes: III, individuais: IV, e concludentes.
A testemunha prometia dizer a verdade do que soubesse, e lhe fosse perguntado, e não ocultar coisa alguma por interesse, ou por ódio, ou por amizade de alguma das partes.Era testemunha singular a que depusesse sobre fatos de que as demais não falassem.Individual era a testemunha que individuava as circunstâncias substanciais do fato, como o lugar, o modo e o tempo. (nota 486)Não era concludente a testemunha que não sabia do fato por ciência própria ou que não desse suficiente razão de sua ciência. (nota 487)Devem as testemunhas ser produzidas dentro da dilação probatória.
Admitia-se, contudo, por exceção, o testemunho ad perpetuam memoriam, quando admitido. (nota 488).
São regularmente as testemunhas perguntadas pelo inquiridor do juízo.
Havia casos, porém, em que as testemunhas precisavam ser ouvidas pelo próprio julgador (nota 489).
Devem as testemunhas ser inquiridas de viva voz, e não por escrito: II, cada uma separada, e secretamente, e não em turma nem na presença da parte: III, especificamente sobre cada um dos artigos: IV e escrever-se os seus ditos por extenso: e não remissivamente.
Eram por isso obrigadas as testemunhas a comparecer pessoalmente em juízo. (nota 490).Dispõe o artigo 413 do Código vigente que o juiz deve inquirir as testemunhas separada e sucessivamente: primeiro as do autor e depois as do réu, providenciando de modo que uma não ouça o depoimento da outra.Observa Moacyr Amaral Santos que a separação das testemunhas corresponde à elementar garantia da veracidade do testemunho e obstáculo aos conluios e perigos da ignorância, da estupidez, da volubilidade, ou de outras más qualidades do testemunho (p. 517).
Sendo as testemunhas defeituosas podem ser contraditadas.
Diziam as Ordenações: Tanto que o juramento for dado à testemunha, ou ao outro dia, a mais tardar, sendo a parte presente no lugar, onde se a testemunha houver de perguntar, dirá logo ao tabelião, ou escrivão que a tirar, que lhe tem contradita, especificando a causa dela. (Livro III, 58).Contradita, diz Moacyr Amaral Santos, é a impugnação oposta à testemunha pela parte, com a afirmação de motivos que impedem ou infirmam o depoimento. Na primeira hipótese, a parte argui matéria que importa na necessidade de resolver-se sobre a admissão da testemunha: na segunda hipótese aduzirá motivos que influirão tão somente na apreciação do depoimento. (p. 476).
Na colisão das testemunhas entre si preferem as mais verossímeis.Havia colisão de testemunhas quando por elas tanto provava o autor a sua intenção quanto o réu a sua defesa (nota 495).Diz Moacyr Amaral Santos que, ao apreciar a prova testemunhal, cumpre ao juiz encará-la em face da lei os dois aspectos: quanto ao sujeito do testemunho e quanto à admissibilidade da prova.Pergunta se o juiz não está assim sendo influenciado pelo sistema da prova legal, como sustenta Lessona.E responde que, se a lei proíbe o depoimento de certas testemunhas ou não admite prova exclusivamente testemunhal para a demonstração de certos fatos, o que se proíbe é que o juiz possa apreciar prova que a experiência tem demonstrado, em razão das pessoas ou da relação jurídica, não merecer acolhida.
Pois bem. Enquanto isso, em 1814, Pierre Simon Laplace já havia publicado 4 volumes de “A mecânica celeste”. Faltava ainda um quinto, que só seria publicado em 1825.
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no crime. 3. Ed. São Paulo: Max Limonad, s/d.