O TRIBUNAL DO JÚRI: UMA ABORDAGEM DA INSTITUIÇÃO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CONSTITUCIONAL
1. Introdução
A instituição do tribunal do júri possui em si, antes mesmo de qualquer adjetivo que lhe seria atribuível, a forma mais antiga da garantia da prestação da justiça operada pelos próprios cidadãos da comunidade (EL TASSE, 2018, p.2). O processo de formação deste ritual de julgamento - em que os pares julgam os seus – se dá, segundo narram os historiadores, como produto da luta entre o povo (governados) e os imperadores (governantes) – detentores do poder, com o propósito de um julgamento justo (GOMES, 2010, p.21).
A instigação sobre as origens do tribunal do júri vincula-se ao formato e ao propósito da instituição, haja vista a peculiaridade do julgamento, sui generis, em todo os sistema jurídico, despertando todas as paixões não somente aos atores processuais, mas da comunidade de maneira geral. Delimitando a história do júri no ocidente, percebe-se as influências do velho continente principalmente no formato fundamental do rito, no Brasil e na maioria dos países europeus e colonizados por estes.
2. As origens do Tribunal do Júri no Ocidente.
Não há pacificação doutrinária quanto ao tempo, lugar e, por conta disso, o povo (ou sociedade) precursor(a) do atual formato de julgamento do tribunal do júri. Ainda assim, em comum senso, pesquisadores remetem suas origens à idade antiga. Segundo Viveiros (2003) há grandes possibilidades da origem do tribunal do júri, pela presença dos traços embrionários na lei mosaica, nos dikanstas, na Heliéia (tribunal dito popular) ou, até mesmo, no Aerópago Grego: nos centeni comites, primitivos germanos: ou ainda na Inglaterra e, a partir daí, para os continentes Americano e Europeu.
Entretanto, há quem defenda a origem do júri no sistema romano, como na lição de Tucci (1999, p.15), em destaque ao sistema penal acusatório, consubstanciado nas quaestones perpetuae, mantém traços que denotam a evolução do processo penal e consequentemente, ao tribunal do júri. A isto se atribui, segundo o jurista, alguns pontos de contato ao modelo atual, como a denominação vocabular jurados, a caracterização dos membros do órgão julgador, a formação do corpo do conselho de sentença via sorteio, a possibilidade de recusas imotivadas, o juramento firmado pelos jurados, a votação secreta, a decisão por maioria, como também, entre as simples respostas (votação) sim e não, na mesma linha que compreende Gomes (2010, p. 22).
Posicionamento diverso apresenta a doutrina de Almeida (2005), que não reconhece, ao menos em sua essência, as origens nas culturas jurídicas anglo-saxã ou romana, elegendo, para tanto, as práticas e pensamentos do povo grego antigo, como marco referencial inicial do tribunal do júri. Em sendo os gregos os patriarcas do desenvolvimento do pensamento filosófico ocidental (qualidade atribuída segundo a corrente majoritária que se ocupa do estudo filosófico), difundiam a práxis da busca perene pela utilidade prática do direito, desenvolviam-na, portanto, em espaços amplos e públicos, o aprimoramento da democracia, prática serve de inspiração, sobretudo a atenção despendida aos interesses coletivos.
Por seu turno, Fernandes (2007, p. 185) destaca que anteriormente ao reinado do Rei João Sem Terra – em que a Inglaterra inda curvava-se ao Rei Henrique I, havia uma outorga real com a promessa de cumprimento ao estabelecimento do tribunal do Júri. Tal como prometido o fez. O tribunal popular foi instituído e as pessoas da comunidade eram convocadas à apreciação das causas relativas a matérias criminais locais. O mesmo Autor, filiando-se ao pensamento de José Frederico Marques, salienta que este período representou enorme evolução em relação ao Sistema das Ordálias (ou juízos divinos), vez que, desde então, a vizinhança passou a ser julgadora de seus pares, garantia esta, que foi promulgada pelo rei inglês João Sem Terra, nos anos de 1215.
Pacificada na doutrina, portanto, a existência de características essenciais do tribunal do júri, desde as civilizações dos tempos mais longínquos, semelhantes, em determinados aspectos, às peculiaridades atuais deste procedimento. No sistema feudal, por exemplo, houve o desenvolvimento de uma forma de julgamento por classe, em que os senhores eram julgados pelos seus iguais (status social) - por exemplo, os senhores, e os vassalos, cada qual pelos seus.
Todavia, constata-se que, a julgar pelas múltiplas contribuições ritualísticas à instituição, originárias dos povos antigos, a configuração moderna a qual se esquadrejou o rito é, em sua maior parte, produto da influência inglesa. O IV Concílio de Latrão foi determinante à abolição das Ordálias (juízos de Deus), cuja formatação de julgamento submetia o acusado a diversas formas de torturas, além de desafios físicos extremos. Nestas circunstâncias, em eventual êxito (entenda-se: sobrevivência), o acusado seria considerado inocente (por Deus). Na obra de Marques estão questão é muito bem explicada:
'Nascido na Inglaterra, depois que o Concílio de Latrão aboliu as Ordálias e o juízo de Deus, ele guarda até hoje a sua origem mística, muito embora ao ser criada retratasse o espírito prático e clarividente dos anglo-saxões. Na terra da common law onde o mecanismo das instituições jurídicas, com seu funcionamento todo peculiar, tanto difere dos sistemas dos demais países onde impera a tradição romanística, é o júri um instituto secular e florescente, cuja prática tem produzido os melhores resultados.' (MARQUES, 1997, p.20).
Já no século XII, os ingleses sob o reinado do rei Henrique II, nos anos de 1166, havia a figura do sheriff. A este era incumbida a tarefa de reunir doze homens da comunidade, cujo objeto deliberativo deste grupo tinha como finalidade decidir sobre a efetividade do desapossamento de queixoso por parte do detentor da terra. O júri decidia sobre basicamente sobre o direito possessório, portanto. As matérias de ordem criminal, algum tempo depois, passaram a ser submetidas à apreciação do júri, notadamente quando versavam sobre a liberdade individual e a vida (RANGEL, 2007, p. 43).
A doutrina mais antiga de Barbosa (1958, p. 15), no mesmo sentido, também destaca ter sido na Inglaterra (nos anos de 1215), em que a Magna Carta Libertatum previu (desta vez de maneira expressa) o tribunal do povo, através do ato promulgado pelo Rei João em Terra, que tratou de estabelecer, no item 48, a impossibilidade de detenção, prisão, perda de bens, costumes ou liberdades, segundo as Leis e sob o julgamento pelos seus pares.
A partir da sua implantação e consolidação nos sistema jurídico inglês, o tribunal do júri foi estendido a outros países da Europa, Estados Unidos da América do Norte e ao Brasil. Não houve igual prestígio ao tribunal do júri nos demais países da Europa, como o tinha na Inglaterra, restando em muitos estados europeus o sistema de escabinado (sistema misto), como aponta Bonfim (2008), em que os juízes togados presidiam as sessões e, em alguns casos, decidiam o mérito, colegiadamente, juntamente aos juízes do povo (leigos). Este modelo, resguardadas algumas pontuais características, persiste aos dias atuais na Espanha, Bélgica, Dinamarca, Suécia, Escócia, Suíça, Itália, Alemanha e França, entre outros.
Nos Estados Unidos da América o júri firmou-se como ideal de justiça democrática, tendo o seu paradigma o modelo inglês, é visto, desde sempre como uma forma comunitária da prestação judicial (GOMES, 2010, p. 23). É bem verdade que o sistema norte-americano guarda peculiaridades próprias em seu sistema de justiça, cuja matéria merece maiores aprofundamentos, sob os aspectos de complexidade e importância (por sua peculiaridade), merecendo ponto específico que ultrapassaria os limites deste ensaio. Entretanto, registra-se que a justiça norte-americana é configurada de forma a ampliar da competência do tribunal do júri, não somente em matéria criminal, mas, em diversos estados americanos, matérias cíveis (e suas subdivisões), como leciona Nucci (2015, p.58).
No Brasil, o Tribunal do Júri sempre esteve presente, desde o Império, pautado nas mesmas características, ao menos em termos gerais vistas aqui, em todas as Constituições, com mais ou menos soberania ao longo do tempo, foi partícipe da história democrática brasileira.
3. O Júri no Brasil: uma perspectiva histórico-Constitucional.
No Brasil, instituição do tribunal do júri foi herdada das Ordenações Filipinas, ainda no período do Brasil Colônia, criado pelo Decreto Imperial em 18 de junho 1822, havia sido concebido com o propósito de julgar as matérias relativas aos crimes de imprensa (ou de opinião), como explica Streck (2001, p.87). Instituído pouco antes da independência brasileira (ocorrida em 7 de setembro de 1822), sua composição se dava ao número de vinte e quatro julgadores, denominados como juízes de fato. Estes eram selecionados conforme os critérios do que se entendia como homens bons, honrados, inteligentes e patriotas. Aponta Streck (2001, p. 186) que naquela época as decisões (ou seja, o mérito das causas) poderiam ser atacadas por recurso denominado Apelação ao Príncipe.
Neste quadro, constata-se, sob os aspectos históricos ampliados, qual se insere a relação entre a instituição do tribunal do júri e o próprio estudo do direito no País, a sua implantação antecessora, não somente à primeira Constituição brasileira (que viria a ser outorgada pouco mais de um ano e meio depois), mas, inclusive, aos primeiros cursos de direito no País, inaugurados nas metrópoles de São Paulo e Olinda – nos moldes da Lei de 11 de agosto de 1827.
Como já era esperado, sobreveio o reconhecimento do tribunal do júri na Constituição Federal do Império, de outorga em 25 de março 1824, em que previu em seu Título VI, a composição do Poder Judicial por juízes de direito e jurados (vide os artigos 151 e 152 daquela Constituição), questão bem abordada por Nassif (2001, p. 15), sendo estes competentes para manifestarem-se acerca dos fatos, e aqueles da aplicação das leis ou direito (FERNANDES, 2007, p. 186).
A tomar por empréstimo as lições Nassif (2001, p. 15), ressalta-se a conturbação política da época, e a percepção de que os matizes da Carta Imperial foram impulsionados pela arbitrariedade do Poder Executivo – o detentor da força. Dom Pedro I, ao perceber o exponencial crescimento do ideal constitucionalista no País, investiu contra tudo aquilo que afetava as conveniências do Imperador. Neste quadro tensional, as generalizadas disputas entre o Chefe do Estado (de interesses puramente imperialistas), os Andradas, e até a própria Assembleia Constituinte (que havia sido dissolvida em 12 de outubro de 1823) culminaram na promulgação da Carta Constitucional, naquele conflitante momento político nacional (NASSIF, 2001). O Brasil, portanto, agraciava-se de sua primeira Carta Magna, e nela, como visto, o tribunal do júri.
Pode-se destacar que, ainda que influenciada pelos ideais libertários, sobretudo pelo movimento revolucionário francês, a Constituição foi impositivamente adaptada às vontades do império – sufocando os ideais Republicanos. A Carta Imperial de 1824 consagrou os direitos e garantias fundamentais, normatizados em seu artigo 179, que dispunha sobre a inviolabilidade dos direitos civis e políticos baseados na liberdade, na segurança individual e no direito de propriedade. Nassif aponta que a história do início do tribunal do júri no Brasil atrela-se ao primeiro movimento emancipacionista nacional (NASSIF, 2001, p. 16).
Já nos anos de 1832, em 29 de novembro mais precisamente, houve a bipartição do julgamento, dividindo-o em Júri de Acusação e Júri de Julgação, a partir da primeira legislação processual penal brasileira, nominada Código de Processo Penal do Império. O rito se assemelhava estruturalmente aos procedimentos norte-americano e anglo-saxão, analogamente a estes sistemas seriam o jury e grand jury. Para o Júri de Acusação havia a composição de vinte e três membros (artigo 238), para o Júri de Sentença (ou julgação), doze (artigo 259).
Esta dupla configuração do conselho tinha uma razão, para além da diferença quantitativa de jurados, como o próprio nome dá a entender, o júri de acusação decidia sobre a admissibilidade acusatória, enquanto o de sentença (julgação, como diziam), na etapa posterior, o mérito (FERNANDES, 2007, p. 185). Contrastando ao rito atual, o júri de acusação, exercia seu mister analogamente ao juiz togado na primeira fase, e sua sentença, se assemelharia com a decisão de pronúncia. Enquanto o segundo, julgação, o mérito (veredicto). A Escolha dos jurados respeitava os critérios das qualidades pessoais de bom senso e probidade, a serem selecionados dos quadros de eleitores (FERNANDES, 2007, p. 186).
Este formato vigeu durante nove anos, passando a sofrer alterações em 1841, por força da Lei n. 261, de 3 de dezembro do mesmo ano, quando então retraído, somente a júri (e não mais acusação e julgação), de características mais exíguas, em que os jurados eram convocados para decidir somente o mérito das causas, em uma formatação voltada a um julgamento mais objetivo, como retrata Gomes, (2010, p. 24).
Naquela época houve, inclusive, dado o novel procedimental emergente, uma ampliação da competência da autoridade policial, em que lhe foram atribuídas, além das suas atividades funcionais antecessoras, a formação da culpa dos acusados durante a investigação – em termos comparativos, como hoje, similar ao caderno de peças do inquérito policial. Na seara jurisdicional, a principal mudança, de cunho procedimental, ocorreu na incorporação à autoridade judicial municipal: a sua competência da decisão de pronúncia (FERNANDES 2007) - até então incumbida, visto anteriormente, ao júri de acusação.
Estes fatos marcaram, num viés histórico, a decisão de pronúncia como uma etapa judicial (a cargo do juiz de direito) ao acolhimento da pretensão acusatória. A este tema, Rangel (2007, P. 65) demonstra que o período imperial, respeitada as peculiaridades da sociedade à época, promoveu a maior democratização da instituição do júri no Brasil até então, por conta de sua origem inglesa que, para o autor, esta é homenageada como o 'berço dos direitos e garantias individuais'.
Passados cinquenta anos, e ocupando respeitável lugar no rol das garantias e direitos individuais e coletivos, a instituição foi inserida na Constituição Republicana de 1891, desta vez, em destaque nunca antes percebido, assim se manteve, durante todo o período de vigência daquela Magna.
Na Carta Constitucional de 1934 não foi diferente. Com o tribunal do júri mantido, a novidade, no entanto, era sua integração no capítulo que o integrava ao Poder Judiciário, e não mais dos direitos e garantias dos cidadãos, como anteriormente assentado.
Três anos mais tarde, momento em que o País era comandando por Vargas (Estado Novo), a Constituição de 1937 previu o Júri, mas como regra geral, e não mais de forma expressa. Decorrente deste retrocesso, a supressão da soberania dos veredictos, operada através do Decreto n. 167 de 1938, configurou, aponta Gomes (2010), o maior golpe à instituição desde a Constituição Imperial (de 1824), como aborda Gomes (2010, p. 24). Com esta alteração, um dos pilares, do tribunal do júri havia sucumbido.
Percebeu-se, com efeito, a ampliação das margens de possíveis erros judiciários (o mérito, propriamente dito), exemplificado pelo célebre caso de erro judicial dos Irmãos Naves, paradigma jurídico, citado amplamente pela maioria dos pesquisadores que se debruçam sobre este tema. Neste período - e nos moldes da política do Estado Novo - os veredictos do tribunal do povo (então despidos de soberania) poderiam ser reformados pela instância superior (Tribunal de Apelação), procedimento este mantido até os anos de 1946.
Mais além, o júri como garantia individual ressurgiu na Constituição de 18 de setembro de 1946, desta vez, com o expresso reconhecimento dos principais pilares que sustentaram a instituição até a consagrada Constituição Cidadã (que sobreviria em 1988): o sigilo das votações, a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e a competência mínima para julgar os delitos dolosos contra a vida (GOMES, 2010, p. 25).
Neste intervalo (1946-1988), a Constituição promulgada em 1967 manteve o tribunal do júri, é claro que com expressiva redução textual à anterior, mas ainda assim reconhecendo-o como direito individual. Todavia, na contramão das vias constitucionais garantidoras que antes trilhava, como narra a história, notadamente pelo cerceamento da vontade popular daquele momento político, por infletir à legislação ao prumo das diretrizes governamentais, acabavam por aplicar medidas restritivas às liberdades individuais.
Cenário este que se atribuiu ao regime ditatorial brasileiro como a principal causa da divisão de opinião entre estudiosos da época, tanto na doutrina, como na jurisprudência, em relação à soberania dos veredictos. No ponto, a (im)possiblidade de (re)apreciação (ou reforma) de mérito em segunda instância - os tribunais. Tudo leva a crer, ancorando-se novamente de Gomes (2010, p. 25), tal dissenso espelhava os ideais opostos, tanto contra, como ao favor, daquele regime político-governamental. No contexto geral, não seria de todo equivocado afirmar que a prevalência da soberania dos veredictos, de certa maneira, operava-se como manifestação pró e contra o regime militar.
Em outras palavras, aos que apoiavam o governo (e seu regime) militavam a favor da reforma dos veredictos, mantendo-se assim, o Estado como detentor da última palavra sobre determinada questão judicial - condenatória e absolutória: por outro lado, a parcela contra (o regime) manifestava a favor da soberania dos veredictos, com efeito, em repudio à reforma pelo colegiado das decisões populares - composta por juízes (desembargadores) togados, ou seja, o Estado.
Passado o período ditatorial, sobreveio a sétima Constituição brasileira. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Vigente até os dias atuais, a instituição do Tribunal do Júri alcançou o patamar de cláusula pétrea - por força do artigo 60, §4º- ou seja, a elevação do status constitucional da instituição. E ainda, no lugar nobre do ordenamento jurídico, o das garantias e direitos fundamentais.
O artigo 5º, XXXVIII, alíneas a, b, c e d, estabelece os seus princípios norteadores e inexoráveis, a servir de paradigma às normas infraconstitucionais que regulariam (e regulam até hoje) todo o procedimento deste rito, nos seguintes enunciados:
Art. 5º, XXXVIII: é reconhecida e instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa:
b) o sigilo das votações:
c) a soberania dos veredictos:
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Os princípios de defesa plena (alínea a) e competência (d) são proposições normativas que, para muito além de abrir e fechar, meramente por uma questão de ordem textual, encabeçam os vários debates jurídicos (doutrinários e jurisprudenciais) divergentes (em sentidos múltiplos) desta instituição.
A competência privativa de julgamento dos crimes dolosos contra a vida ao julgamento do tribunal do povo, na doutrina de Lopes Junior (2016), é muito bem delimitada, porquanto definida no artigo 74, §1º, do Código de Processo Penal, eis que, segundo o doutrinador, tal dispositivo descreve de forma taxativa os delitos, sem admitir analogias ou interpretações extensivas (LOPES JUNIOR, 2016, p. 797).
Neste sentido, parece correto afirmar que a previsão constitucional estabelece o objeto (os crimes dolosos contra a vida), e o código de processo penal a descrição e delimitação deste objeto (o seu rol). Ou seja, o constituinte deixou a cargo do parlamento a definição dos crimes atentatórios à vida, e claro, os elementos configuradores do dolo (intenção).
Outros delitos, ainda que os resultados afetem à vida humana, por exemplo, o latrocínio, a extorsão mediante sequestro, e o estupro com resultado morte, não estão inscritos neste rol, portanto, a estes a competência não recai sobre o tribunal popular, porque há classificação diversa pelo legislador ordinário dos bens jurídicos afetados (patrimônio, liberdade sexual, etc).
Não resta qualquer margem às dúvidas ou qualquer possibilidade de lacunosa (neste raciocínio, é claro) entre a vontade do constituinte e a delimitação do legislador ordinário, quanto à definição da competência. O Tribunal do Povo definitivamente a assumiu, a fim julgar (ratione materiae) as causas que envolvam os crimes dolosos contra a vida no Brasil.
Vista a sua ascensão ao topo normativo, consagrada ainda pela sua inexorabilidade, o tribunal do júri, dadas as suas múltiplas peculiaridades, promove inesgotáveis investidas doutrinárias e jurisprudenciais, que vão desde a sua interpretação constitucional, às regras processuais regulatórias de todo o seu procedimento.
Isto porque, a julgar pela sua hierarquia normativa em um sistema jurídico complexo, ainda, inserida como cláusula pétrea, eventuais alterações legislativas que por ventura impliquem no rito tribunal do júri, necessariamente, deverão partir de suas premissas, estampadas nos quatro incisos constitucionais, como uma espécie quádrupla de filtros, a cada um dos preceitos inscritos na Carta da República.
Na mesma reflexão, utilizando-se da lição de Marques (2009, p. 26), em que leciona com firmeza acerca do consenso doutrinário desta importante questão legislativa, no sentido da possibilidade de promoção melhoras no procedimento ou, para até mesmo a sua compatibilização às outras garantias fundamentais, em nenhum grau, poderá contrariar os ditames constitucionais, sob pena do perecimento da essência do tradicional tribunal.
Como última alteração, registra-se a Lei n. 11.689/2008, em larga escala (re)estruturou o procedimento, o que de fato, promoveu substanciais modificações nas questões procedimentais - como por exemplo, a extinção do libelo acusatório, a inclusão do quesito genérico absolutório e a proibição de argumento de autoridade, entre outros.
4. Considerações conclusivas.
O tribunal do júri, de fato é uma das instituições jurídicas que mais desperta interesse geral. Oriundo como uma forma de garantia a julgamento justo, normativamente instituído na Inglaterra em 1.215, influenciou a maior parte dos países ocidentais e, posteriormente, os colonizados americanos. Em que pese divergência de suas origens mais remotas, entre gregos e romanos, pacificada a sua formatação principal e seus propósitos a partir destas culturas.
No Brasil, sempre resistiu o júri aos percalços políticos de cada época, desde a Constituição de 1824. Neste breve panorama histórico-constitucional do tribunal do júri no Brasil, chegou-se à Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro 1988, vigente até os dias atuais. Assim, a Carta Política Brasileira, apelidada por notáveis de a Constituição Cidadã, no que compete ao tribunal popular, inseriu no artigo 5º, inciso XXXVIII, e suas quatro alíneas, os seus princípios regentes.
Homenageado pelo constituinte como integrante dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição, e paradigma à legislação infraconstitucional que o regula, o procedimento do júri estrutura-se essencialmente no determina o seu inciso constitucional. Em todos os períodos e Estados em que a história ao tribunal do júri se refere, há um ponto comum a todas as épocas: o busca da justiça promovida pelo povo.
5. REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Ricardo Vital de. O júri no Brasil – aspectos constitucionais: soberania e democracia social. Equívocos propositais e verdades contestáveis. São Paulo: Edijur, 2005.
BARBOSA, Ruy. O júri sob todos os aspectos. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1950.
BONFIM, Edilson Mougenot. No tribunal do Júri. São Paulo: Saraiva, 2000.
El TASSE, Adel. Júri: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2018.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GOMES, Márcio Schlee. Júri: limites constitucionais da pronúncia. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2010.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MARQUES, Jader. Tribunal do júri: considerações críticas à Lei n. 11.689/2008 de acordo com as Leis 11690/08 e 11.719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Campinas: Bookseller, 1997.
NASSIF, Aramis. O júri objetivo. 2. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
NUCCI, Guilherme de Souza. O tribunal do júri. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: visão linguística, histórica, social e dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
VIVEIROS, Mauro. Tribunal do júri – na ordem constitucional brasileira: um órgão de cidadania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.
TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
Éder Renato Martins Siqueira - Doutorando em Filosofia (UFPel), Mestre em Direito na FMP, Pós-Graduado em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS, graduado em Direito pela PUCRS. Colunista da www.paginasdedireito.com.br e membro do Gurpo de Estudos Araken de Assis (GEAK). Advogado Criminalista. Endereço eletrônico: eder@eder.rs / www.eder.rs
SIQUEIRA, Éder Renato Martins Siqueira. O TRIBUNAL DO JÚRI: UMA ABORDAGEM DA INSTITUIÇÃO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CONSTITUCIONAL. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 21, nº 1533, 21 de Julho de 2021. Disponível em: https://paginasdedireito.com.br/component/zoo/o-tribunal-do-juri-uma-abordagem-da-instituicao-sob-a-perspectiva-historico-constitucional.html